quinta-feira, 23 de junho de 2011

DEPOIS DA TEMPESTADE

                                              

A RENOVAÇÃO é um dos mais intrigantes e misteriosos poderes da Natureza. Percebi isso ainda criança, quando brincava nas enxurradas que se formavam após a chuva, sulcando as ruas de terra do bairro pobre onde morava. Às vezes, o ar estava denso pela fumaça e poeira dos carros e chaminés; o calor sufocante tornava o ruído metropolitano ainda mais agudo e cacofônico, aumentando o mau-humor das apressadas almas viventes envolvidas na rotineira e penosa corrida do ouro.

De repente, o céu escurecia e, dentro em pouco, a chuva despencava das alturas, cobrindo com sua poderosa voz, entremeada a ribombos de trovões, as vociferações dos insatisfeitos.
Majestoso espetáculo; luminosos rabiscos traçados pelos raios, o forte clarão dos relâmpagos e riachos instantâneos lavando o chão. Latas vazias, caixas de papelão, pedaços de madeira e detritos de toda sorte, levados de roldão pelas águas vermelhas pelo contato com a terra!

E quando a chuva terminava, já de tardezinha, o mundo estava literalmente limpo. A leveza e o frescor da brisa mansa embalando as copas das árvores, para onde regressavam os pássaros, em alegre cantoria; o cheiro de terra molhada, uma inexplicável sensação de paz!..
Até o Sol parecia ter sido banhado pela chuva; seus reflexos vermelhos e amarelos brilhavam com mais intensidade, iluminando o cenário crepuscular!

Apreciei muitas vezes a força renovadora da Natureza quando, por certo tempo, vivi em um lugar onde a água potável era colhida de uma nascente a certa distancia de uma estrada. Em algumas ocasiões a encontrava toldada por animais ou pessoas que ali bebiam e depois chafurdavam, levantando o limo e tornando a água momentaneamente imprestável para o consumo. Mas eu esperava pacientemente, porque sabia que dali a pouco a nascente, jorrando sempre, já teria expulsado toda sujeira, retornando à sua pureza natural.
Descobri também que nos charcos e pântanos, onde há pouca ou nenhuma circulação da água, ocorre a estagnação, formando-se o berço ideal para a proliferação de insetos nocivos e focos de doenças.
Dessas observações compreendi que a chave deste grande mistério da renovação está no movimento que a Natureza imprime aos elementos. Faz com que a água circule, os ventos soprem, o fogo consuma, processando a transformação da matéria e das condições. A vida em si revela-se pelo movimento!
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Alguém já disse que somos parte da Natureza; sendo assim, certamente existirão leis interiores a reger nossos destinos, à semelhança das que regulam as relações entre os elementos. Não será a densidade da atmosfera pessoal o produto da fumaça gerada pelas frustrações e desejos insatisfeitos, além da poeira levantada pela ansiedade em superar as próprias carências? Não serão as viciações físicas e morais que adotamos, justapondo nosso conceito de prazer às normas e convenções, a lama que impede o acesso à pureza de “Deus em nós”?
Não será o fracasso repetido o resultado de voluntária estagnação ante o imperativo do progresso?
Existirá, porventura, chuva, fogo ou vento que possa renovar-nos o coração?

Seguindo o exemplo da Natureza, entreguemos-nos aos elementos; se magoados pela saudade, mortificados pelo apego, deixemos que a chuva da razão se derrame sobre as lembranças, lavando e arrastando toda recordação inútil para a Paz interior. A chuva respeitará o sacrário dos verdadeiros afetos.
Se acossados pela incerteza, se frustrados pelo insucesso, se feridos na auto-estima, permitamos que sopre fortemente o vento da sensatez, que derrubará os castelos de cartas, espalhando toda fantasia apaixonante. Ficará em pé apenas o que se construiu em base sólida.
Se confusos em nossos conceitos, se envergonhados de nossos pensamentos, se em guerra desigual com os instintos, aceitemos que o fogo do espírito crepite, luminoso e voraz, queimando toda inutilidade acumulada nos porões da alma, consumindo as mentiras e sutilezas de concepções egoísticas e tacanhas. Poderá ser doloroso, mas o fogo não tocará no que existir de puro, honesto e verdadeiro em nosso coração!

Depois da revolução purificadora da Natureza Interna, nos resta abrir as janelas ao Sol, permitindo que a Luz revele as cores da Alma, como acontece com os cristais. Com essa transcendental paleta, pintemos novos e maravilhosos quadros espirituais, para que a Esperança, a Harmonia e o Amor neles retratados traduzam-se em bênçãos de Paz e Progresso durante a jornada na Terra.
                    
“Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor por longos dias.”                                                                                    (Salmo 23)


Auro Barreiros
Setembro de 2003