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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A EMOCIONANTE SAGA DE INOCÊNCIO DAS DORES (ou Como encurtar a vida sem fazer força)

  
INOCÊNCIO DAS DORES FOI AO MÉDICO. Há dias vinha se queixando de umas dores de cabeça e problemas no estômago; nervos abalados pelos incômodos, irritava-se com facilidade, o que lhe causava ainda mais dor de cabeça e distúrbios estomacais!

Na sala de espera do consultório, folheava uma revista enquanto aguardava a vez. Correndo os olhos pelas páginas coloridas, sua atenção estancou sobre grande foto de uma linda jovem, nua e sorridente. Afivelou ao rosto nova expressão, meio deboche, meio censura e, com uma cotovelada, despertou de um cochilo outro paciente a seu lado. Dedo em riste, mostrou-lhe a foto, exclamando:
- Veja você até onde vai a pouca-vergonha! Imagine se no meu tempo uma despudorada como esta teria tamanho destaque! É o fim dos tempos, meu amigo! A moral do mundo foi por água abaixo!
E o nosso Inocêncio proferiu longo e exaltado discurso contra a liberação dos costumes, não poupando os mais ásperos adjetivos aos que apóiam a nova moralidade. Tão apaixonado estava que nem percebeu que seu ouvinte voltara a cochilar, totalmente desinteressado pelo assunto.
Porém, desde quando vira a foto na revista, sensíveis alterações físicas e emocionais atingiram o estado geral do Inocêncio. Primeiro, uma súbita alta de pressão, devido ao acelerar do batimento cardíaco provocado pela contemplação de um atraente exemplar do sexo oposto. Depois, leve falta de ar, por conta do choque entre o instinto e o preconceito. Congestionados os vasos sanguíneos da região gástrica pela descarga inesperada de hormônios, fruto da exaltação, bloqueiam-se os processos digestivos, cobrando ao cérebro e sistema nervoso providências imediatas para evitar um colapso. Têmporas latejantes, rosto afogueado, mãos frias e suadas, olhos injetados, Inocêncio era o desastre em pessoa!
E tudo por causa de uma simples fotografia...
.....
Em presença do médico, Inocêncio das Dores desfiou um rosário de lamentações. Alegava não entender o porquê de tantos distúrbios, já que levava uma vida bastante comedida e praticamente não tinha vícios. Minutos depois, com a receita nas mãos, deixa o consultório, rumo à farmácia, esbravejando entredentes devido ao preço da consulta.

Depois de algumas dezenas de comprimidos hipotensores, calmantes, soníferos, relaxantes, antiácidos e similares, lá vem o Inocêncio rua acima, jornal debaixo do braço e cara de poucos amigos. Alguém o cumprimenta:
- E aí, tudo bem, Inocêncio?
- Qual nada, rapaz! Como pode alguma coisa andar bem com tanta roubalheira? Veja só esta manchete (agita o jornal); é justo que se permitam ladrões como este no comando? Olha, vou contar pra você só um pouquinho do que eu sei a respeito deste e de outros crápulas de colarinho branco!...
Após meia hora de difamação, Inocêncio faz uma pausa para respirar e o interlocutor pergunta sobre sua saúde.
- Mesma coisa, mesma coisa. Tenho gastado rios de dinheiro com os médicos que, diga-se de passagem, estão metendo a mão, e nada melhora. Parece até coisa feita!
.....
Dia seguinte, encontramos o Inocêncio num bairro de subúrbio, procurando a casa do curandeiro indicado pelo amigo, que lhe garantiu ser o homem bem “entendido nessas coisas”. Não que ele, o Inocêncio, acreditasse em feitiço, encosto, etc, mas, de repente, quem sabe?..
Durante a entrevista com o comerciante de ilusões, outra vez Inocêncio desfia seu rosário de queixas. Uma hora depois, sai dali mais leve, sorridente até, convencido de que fora vítima de bruxaria, mas, nada que sete velas vermelhas e uma galinha preta não resolvessem!
....
Semanas depois, flagramos o Inocêncio e um amigo no seguinte diálogo:
- Mesma coisa, Inocêncio?
- Mesma coisa, meu caro! Não consigo entender; sou até calmo, não tenho grandes vícios e sofro desse jeito!
- Sabe, Inocêncio, tem um especialista amigo meu que sabe das coisas; porque você não o experimenta?..


10/03/1986                                                                                                                      
Auro

A FAMÍLIA DO DIABO



O Diabo (aqui com letra maiúscula, para distingui-lo da expressão popular), também conhecido por Satanás, Capeta, Cão Coxo (nada contra os cachorros), Belzebu e outros apelidos esdrúxulos, tem uma família numerosa e complicada. Paradoxalmente, o ser em questão é casado com uma santa. Santa esta que tem milhões de devotos espalhados pelos continentes afora. Esta donzela recebeu a canonização muito cedo, ainda em vida. Pelo seu incrível dom de nada entender, o maior milagre que realizou e ainda continua fazendo é sobreviver. É a Santa Ignorância, venerada por ricos e pobres, em todas as raças e classes sociais do planeta. Pois bem; deste inusitado casal brotou uma prole não menos inusitada, cujo perfil trataremos de estabelecer.

O Fanatismo é um dos filhos mais velhos; iracundo, tem acessos de cólera sempre que é contradito naquilo que julga ser a verdade. Dono de uma memória prodigiosa, grava livros inteiros, palavra por palavra, deleitando-se com a repetição sistemática de capítulos e versículos que, a seu ver, pulverizam os argumentos de seus adversários de fé. No entanto, é de uma ingenuidade que chega a ser dolorosa; encanta-se com discursos inflamados e promessas mirabolantes que, embora nunca se cumpram, tem para ele peso de sentenças divinas.

Arrogância, sua irmã, o tem como espelho de conduta. Por compactuar com as idéias do Fanatismo, julga-se dona de uma inexplicada superioridade, olhando o mundo de cima para baixo. Acha-se no direito de verberar contra o que bem entender, sem se preocupar com as conseqüências de sua atitude. Mas, apesar dessa pose, é extremamente insegura. Quando lhe falta o recurso verbal e o conhecimento de causa, apela para uma de suas mais truculentas irmãs; a Intolerância.
Esta jovem (a Intolerância) tem sérios problemas mentais. Incapaz de raciocínios mais elaborados, tenta impor à força os argumentos do Fanatismo ecoados na Arrogância. Para ela, toda cor é permitida, desde que seja a vermelha. Padece, porém de uma dicotomia interior, talvez em conseqüência da debilidade mental. Frequentemente se pega em concessões internas que contradizem sua própria postura. Daí se defende com a batida frase: “Faça o que eu mando, não o que eu faço.”

E quando o Fanatismo, a Arrogância e a Intolerância falham em suas investidas contra os inimigos (todo aquele que pensa diferente é inimigo), buscam o concurso do mais intelectualizado de seus irmãos; o Preconceito.

O rapaz costuma ser melhor sucedido onde os irmãos vacilaram. Hábil com as palavras (aprendeu com sua tia, a Maledicência), mascara os argumentos do Fanatismo e da Intolerância com citações e aforismos colhidos aqui e ali, como se o saber do mundo existisse apenas para justificar seus devaneios. À primeira vista, passa a impressão de que tem a melhor das intenções: desmascarar a falsidade, evitar o engano e destruir a mentira. Isso até defrontar-se com quem o conheça de longa data e saiba de seus desvios de conduta. Sim, pois o Preconceito costuma condenar publicamente o que mais deseja em secreto, adotando vida dupla para satisfazer-se sem dar na vista. É como certos personagens da Idade Média, que levavam as bruxas à fogueira mas roubavam-lhes os livros, para depois tentar encantamentos e invocações na calada da noite. Bem por isso, o Preconceito é um forte candidato a sofredor, pois corre o sério risco de lutar contra o que deseja e ficar com o que não quer. Ao ver-se desnudado em suas intenções, falta-lhe a fortaleza moral que permite o sincero reconhecimento dos erros e a dignidade para consertá-los (e consertar-se).

Fanatismo, Arrogância, Intolerância, Preconceito, Maledicência; legítimos descendentes do Diabo. E da Santa Ignorância.


Auro Barreiros - 2008