sexta-feira, 9 de março de 2018

CANIS ET CIRCENSIS III - O SONHO






Drica esteve adoentada. Ficou internada por três dias na clínica veterinária, devido a uns problemas hepáticos. Já em casa e de volta à rotina, pergunto-lhe sobre os dias de internação:

- E aí, como você se sentiu? Quero dizer, como você utilizou a inatividade forçada?
Após uma coçada de orelha, ela responde:

- Aproveitei para refletir mais um pouco.

- Refletir é algo muito salutar para a mente. Ajuda a organizar os conceitos e direcionar as atitudes. Mas você está meio séria, quase não tem latido pra vizinhança. Consequência das reflexões?

A  pulguenta levantou-se, deu uma volta em torno de si mesma e tornou a se deitar,  com o olhar perdido no horizonte. Após um intervalo de silêncio, resmungou:

- Tive um sonho.

E eu que achava que cachorro não sonha! Fiquei intrigado e desejoso de saber o que a filósofa de quatro patas havia sonhado e que a deixou tão compenetrada.

- Tenho pensado muito sobre o comportamento dos bípedes ditos racionais. Enquanto eu era tratada com carinho e respeito por uma veterinária, ouvia o noticiário sobre multidões de humanos que estão sendo expulsos de seus lugares e forçados à miséria. As notícias falam de uns poucos bípedes que retém o que jamais vão poder utilizar (ou comer), enquanto muitos outros não têm sequer um osso por dia pra roer. Isso incomoda, pois até um quadrúpede sabe que a vida se sustém no alimento.

Concordei com um balançar de cabeça.

- Pois é, Drica. E isso tem sido assim desde que o homem pisou sobre a Terra.

A cadela sentou-se à moda canina e me encarou com um olhar irônico:

- Mas vocês não são a coroa da Criação? Ou suas cabeças só servem mesmo pra separar as orelhas? Cadê a tal racionalidade? Cadê a superioridade da espécie?

Nem fui doido de querer defender o indefensável. Optei por focar o papo no sonho da focinhuda.

- E o que foi mesmo que você sonhou de tão perturbador?

- Ah, foi tenebroso! (outra coçada de orelha; preciso ver se ela está com pulga)! Lembra da alegoria dos Cabires, do Banquete de Platão? (Claro que me lembro. Fui humilhado no repente!) Pois é. No meu sonho, me vi contemplando aquela cena dos deuses partindo os Cabires em duas partes, como castigo pela arrogância, e que resultou na separação dos gêneros e forçou cada um a buscar o seu complemento. Até ai, tudo bem; seria uma justificativa para o amor e a multiplicação da humanidade, certo?

Quem sou eu pra discordar? Certíssimo!

“Mas daí, prosseguiu ela, o cenário do sonho se atualizou. As guerras e os crimes de toda ordem desfilaram perante meus olhos, como um filme (esqueci-me de dizer que Drica adora filmes de ficção científica e de época). Vi homens fazendo a outros homens o que nem os animais fazem entre si; crueldades até mesmo com os filhotes, que todo mundo sabe que são sagrados perante a natureza”.

Caramba! A pulguenta sonhou o Apocalipse! Prendi a respiração pra continuar acompanhando o relato emocionado daquele sonho terrível.

“Vi os homens divididos por crenças e políticas, de um lado bradando “esquerda!” e do outro “direita!”; e o faziam com tal fúria que chegavam a babar e revirar os olhos”.
Lembrei-me de cachorro louco, mas preferi ficar calado.
“Foi então que ele apareceu (ele quem?). trazia na mão a mesma espada com que havia repartido os Cabires (ah!). Olhou por cima daquela balbúrdia humana e falou, com voz de trovão: “Não tem jeito. Vou ter que repetir o tratamento. Esse povo está demorando demais pra aprender”. E passou a rachar os humanos, que ficaram com uma perna, um braço, um olho e um ouvido. E aí eu entendi como seria a lição: nessas condições, ninguém poderia andar (talvez uns pulinhos, como o saci) e cada um, se quisesse fazer qualquer coisa pra si, teria que se apoiar no outro”.

Tai, uma solução genial para a discórdia! “Vou buscar o lanche, segure aí”!
...

Enquanto dividíamos o lanche, Drica prosseguiu a narrativa.
“Parecia que estava tudo resolvido, que agora a humanidade iria se unir, nem que fosse por sobrevivência. Mas o tempo acelerou-se em meu sonho e eis que vejo o resultado da tentativa: os meio-humanos se uniam para conseguir comida e resolver suas necessidades. Uma vez saciados, a metade “esquerda” passava a agredir a metade “direita”, sem se lembrarem de que, separados, nada seriam. E assim, se trucidaram mutuamente, com a estupidez característica desses bípedes que se creem racionais”

Pega leve, cadela! “Mais um pedaço de bolo?’



Auro
10/2/2018