Drica esteve adoentada. Ficou internada por
três dias na clínica veterinária, devido a uns problemas hepáticos. Já em casa
e de volta à rotina, pergunto-lhe sobre os dias de internação:
- E aí, como você se
sentiu? Quero dizer, como você utilizou a inatividade forçada?
Após uma coçada de
orelha, ela responde:
- Aproveitei para
refletir mais um pouco.
- Refletir é algo muito
salutar para a mente. Ajuda a organizar os conceitos e direcionar as atitudes. Mas
você está meio séria, quase não tem latido pra vizinhança. Consequência das
reflexões?
A pulguenta levantou-se, deu uma volta em torno
de si mesma e tornou a se deitar, com o
olhar perdido no horizonte. Após um intervalo de silêncio, resmungou:
- Tive um sonho.
E eu que achava que
cachorro não sonha! Fiquei intrigado e desejoso de saber o que a filósofa de
quatro patas havia sonhado e que a deixou tão compenetrada.
- Tenho pensado muito
sobre o comportamento dos bípedes ditos racionais. Enquanto eu era tratada com
carinho e respeito por uma veterinária, ouvia o noticiário sobre multidões de
humanos que estão sendo expulsos de seus lugares e forçados à miséria. As notícias
falam de uns poucos bípedes que retém o que jamais vão poder utilizar (ou comer),
enquanto muitos outros não têm sequer um osso por dia pra roer. Isso incomoda,
pois até um quadrúpede sabe que a vida se sustém no alimento.
Concordei com um
balançar de cabeça.
- Pois é, Drica. E isso
tem sido assim desde que o homem pisou sobre a Terra.
A cadela sentou-se à
moda canina e me encarou com um olhar irônico:
- Mas vocês não são a
coroa da Criação? Ou suas cabeças só servem mesmo pra separar as orelhas? Cadê a
tal racionalidade? Cadê a superioridade da espécie?
Nem fui doido de querer
defender o indefensável. Optei por focar o papo no sonho da focinhuda.
- E o que foi mesmo que
você sonhou de tão perturbador?
- Ah, foi tenebroso!
(outra coçada de orelha; preciso ver se ela está com pulga)! Lembra da alegoria
dos Cabires, do Banquete de Platão? (Claro que me lembro. Fui humilhado no
repente!) Pois é. No meu sonho, me vi contemplando aquela cena dos deuses
partindo os Cabires em duas partes, como castigo pela arrogância, e que resultou
na separação dos gêneros e forçou cada um a buscar o seu complemento. Até ai,
tudo bem; seria uma justificativa para o amor e a multiplicação da humanidade,
certo?
Quem sou eu pra
discordar? Certíssimo!
“Mas daí, prosseguiu
ela, o cenário do sonho se atualizou. As guerras e os crimes de toda ordem
desfilaram perante meus olhos, como um filme (esqueci-me de dizer que Drica
adora filmes de ficção científica e de época). Vi homens fazendo a outros
homens o que nem os animais fazem entre si; crueldades até mesmo com os
filhotes, que todo mundo sabe que são sagrados perante a natureza”.
Caramba! A pulguenta
sonhou o Apocalipse! Prendi a respiração pra continuar acompanhando o relato
emocionado daquele sonho terrível.
“Vi os homens divididos
por crenças e políticas, de um lado bradando “esquerda!” e do outro “direita!”;
e o faziam com tal fúria que chegavam a babar e revirar os olhos”.
Lembrei-me de cachorro
louco, mas preferi ficar calado.
“Foi então que ele
apareceu (ele quem?). trazia na mão a mesma espada com que havia repartido os
Cabires (ah!). Olhou por cima daquela balbúrdia humana e falou, com voz de
trovão: “Não tem jeito. Vou ter que repetir o tratamento. Esse povo está
demorando demais pra aprender”. E passou a rachar os humanos, que ficaram com
uma perna, um braço, um olho e um ouvido. E aí eu entendi como seria a lição:
nessas condições, ninguém poderia andar (talvez uns pulinhos, como o saci) e
cada um, se quisesse fazer qualquer coisa pra si, teria que se apoiar no outro”.
Tai, uma solução genial
para a discórdia! “Vou buscar o lanche, segure aí”!
...
Enquanto dividíamos o
lanche, Drica prosseguiu a narrativa.
“Parecia que estava
tudo resolvido, que agora a humanidade iria se unir, nem que fosse por
sobrevivência. Mas o tempo acelerou-se em meu sonho e eis que vejo o resultado
da tentativa: os meio-humanos se uniam para conseguir comida e resolver suas
necessidades. Uma vez saciados, a metade “esquerda” passava a agredir a metade “direita”,
sem se lembrarem de que, separados, nada seriam. E assim, se trucidaram
mutuamente, com a estupidez característica desses bípedes que se creem racionais”
Pega leve, cadela! “Mais
um pedaço de bolo?’
Auro
10/2/2018