sábado, 23 de outubro de 2010

NOITE FELIZ...

A cidade inteira está com um aspecto diferente. Nas ruas, faixas e enfeites relembram o famoso “espírito de Natal”. Nas residências, bolas de vidro espelhadas, coloridas e brilhantes, em sugestivos arranjos, podem ser vistas à porta de entrada.

Mas é nas lojas que o clima natalino se faz mais evidente, pela decoração e as frases convidativas, entre brilhos e purpurinas, lâmpadas que se acendem e apagam intermitentes, curiosos brinquedos eletrônicos movimentando-se nas vitrines, mágico espetáculo para uma sempre renovada platéia de crianças que colam os narizes no vidro, no desejo ardente de tocar seu sonho com as mãos!..
No vai-e-vem dos balcões, somas de dinheiro são trocadas por presentes. O motivo é o Natal, mas as razões ocultas são as mais diversas. Aquele senhor espera reconciliar-se com sua esposa; este outro quer apenas evitar mais uma discussão. O maduro funcionário deseja dividir sua solidão com os colegas do trabalho; aquela jovem pretende reforçar alguns laços, com vistas a um breve matrimônio!

Muitas as razões, diferentes os presentes. Adultos trocam jóias, bebidas, livros, objetos que julgam necessários ou de bom-gosto. E as crianças ganham brinquedos que tanto podem despertar virtudes e induzir saudáveis costumes como réplicas perfeitas de armas, através das quais o desrespeito à vida se insinua de forma alegre e inocente.

Natal, a data magna da cristandade; Natal, o dia dos mais gritantes contrastes! Ao longo de um ano o homem foi lobo do homem, mas agora se faz uma trégua, marcada por cartões e presentes, ceias e comoventes mensagens reafirmando os ideais do aniversariante, Jesus!..

Natal; dia em que costumamos desejar uns aos outros alegria e paz. Este é o Natal das famílias, com todos os parentes em volta da mesa, compartilhando a reciprocidade dos afetos.

Há, porém, o Natal dos mendigos, nas furnas, ao relento ou debaixo das pontes. É o Natal dos que perderam a estrela guia de sua dignidade pessoal e resignam-se à fome de alimento e solidariedade.
Há o Natal dos encarcerados, que perderam o sol de sua liberdade e remoem nas sombras os endurecidos espinhos da consciência.
Há o natal dos marginais, que perderam o farol da confiança no próximo e perambulam entre a cruz e a espada, no labirinto das emoções, sem direito à paz de um sono tranqüilo.
Há o Natal das meretrizes, que se privaram da luz da honradez e mascaram debaixo de pesada maquiagem sua fome de amor e de respeito, escondendo sob cosméticos as marcas do sofrimento e do desespero das noites insones.
Há o Natal das crianças sem teto, sem o reflexo aconchegante de um lar, que circulam pelos arrabaldes da vida, tentando saciar a fome e fugir do abandono entre marginais e meretrizes!
Há o Natal dos asilos, onde desgastados exemplares da espécie humana foram privados do direito elementar de morrer entre aqueles a quem deram a vida, e consomem-se em silenciosas lágrimas de saudade...
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Eis o Natal de Jesus; o Príncipe da paz, o socorro dos desvalidos, a Luz do Mundo!..
Que nossas preces te encontrem, Jesus; e que, à força de tanto orar, nos façamos melhores.
Pode ser que, trabalhando, orando e amando, permitiremos  acontecer a Paz na Terra, aos homens de Boa Vontade!
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Auro
Década de 80                                                                                    

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

CRONOS E EU (O memorável encontro)

                  

Eu gostava muito de filosofar. Sentencioso, meu prazer maior consistia em tornar públicas minhas conclusões quanto a questões ainda insolvidas, como a origem da vida, a natureza do espírito, os limites do Universo e a existência de Deus. Horas insones mergulhava eu no milenar, insondável e caótico  oceano das empoeiradas tradições místicas, esotéricas e religiosas, questionando Hermes (o Três Vezes Grande), justapondo Tomás de Aquino a Eliphas Levi, ponderando gravemente sobre Zoroastro (ou Zaratustra, se preferirem), ou anatematizando o Corão e algumas duvidosas doutrinas orientalistas, para depois reunir a platéia e proferir o “meu” veredito sobre o trabalho de meus velhos e ilustres colegas de arte.
Tanto os elogios quanto as inevitáveis contestações “em nível de” equivaliam  a doces e emplumadas caricias ao meu nada modesto ego.

Mas o tempo passa. Mesmo suspeito de inexistência e rotulado como mero fragmento de percepção objetiva, ele passa. E eu, absorto que estava em profundas indagações quanto à ambigüidade dos postulados filosóficos, pouco ou nada notava da ação envelhecedora, destruidora e mumificante do tempo.
Num dado momento, porém, me ocorreu um estalo. Daqueles estalos que parecem definitivos; insólito como se encerrasse o segredo da Pedra Filosofal. E EU DESCOBRI no tempo a chave que me faltava, para abrir de vez a porta dos mistérios!

Daí, corei de vergonha!..
Corei, a despeito de minha mística palidez, quando o Tempo, de alfanje (foice de ceifar, para os leigos) em punho, me perguntou grave e sério:
- Quanto já praticaste (o Tempo só se dirige aos mortais na segunda pessoa) de toda erudição filosófica com que te empanturraste ao longo de tua ociosa vida?
-Bem, eu...(cof, cof!)
- Quanto imaginas custar à Natureza cada Onça Cúbica (medida alquímica) do ar que respiras?
- (silêncio suspeito)...

- Ouve, pois, ó ignorante: verdade é somente aquilo que permanece incólume diante da perpétua mutação universal, mantendo-se aplicável  a todas as épocas e aberto ao espírito investigador. Tu podes conhecer o peso de uma doutrina ou filosofia, vivenciando-a em tua carne; assim, e somente assim, terás a autoridade moral para pregá-la!

(Humilhante pausa de efeito).

- Portanto, deixa de empáfia, fala com economia e vive de tal forma que tuas palavras não te desmintam os atos!


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01/06/1983
Auro

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O TEMPO E O RIO





AO LONGO DA VIDA freqüentemente nos defrontamos com o imperativo de tomar decisões. Momentos de gravidade, situações constrangedoras, fatos que obrigam a uma escolha, uma definição; ocasiões em que ficamos “entre a cruz e a espada”, como se costuma dizer. Figuradamente, é como se a vida fosse um rio, onde nosso barco navega ao sabor da correnteza, numa linha mais ou menos reta. Da proa do barco vislumbramos um futuro linear, previsível, cujos percalços, por serem facilmente visíveis, podem ser contornados sem maiores tropeços. Entorpecidos pela prolongada tranqüilidade, seguros de que nada se opõe à marcha de nossa nau, adormecemos placidamente, até que os clarões da aurora nos despertem. Então, ao abrir os olhos, nos deparamos com uma novidade: bem ali, à frente, o rio faz uma curva. Já não é possível vasculhar o caminho adiante e o temor do desconhecido começa a invadir-nos o coração.

O que há depois da curva do rio? Uma cachoeira a despencar-se no abismo? Um enorme redemoinho, sugando para as profundezas qualquer coisa que lhe caia no vórtice? Uma corredeira pedregosa e veloz, com força suficiente para despedaçar uma embarcação?
Ou, quem sabe se, após a curva, a vista descortine um imenso lago onde o barco tem seu impulso amortecido e somos brindados com a suavidade e o marasmo próprios das águas paradas; pode ser também que adentremos outro rio, maior e mais veloz, acelerando a viagem. Mas, pode ser ainda que, após a fatídica curva, o rio simplesmente prossiga seu destino, exatamente como antes, e toda a ansiedade, todos os temores e prospecções não passaram de meras conjecturas.

ANSIEDADE; eis a palavra que define o estado do ser humano ante a premissa de alterar hábitos, conceitos, crenças ou convicções. Ansiedade que oprime, sempre que obriga a romper com a rotina mental e emocional que determina o modo de ser e agir. Ansiedade que sugere o medo do futuro!

Mas, afinal, o que é o futuro?

Conte até três. Quando chegar à ultima sílaba dessa curta contagem, toda ela já será passado. No entanto, há três segundos apenas, tratava-se de um projeto cuja execução situava-se no futuro que agora já é passado!

Tente imaginar agora o que pode ter acontecido em todo o planeta enquanto você contava até três; há de convir que se trata de uma tarefa extremamente difícil, senão impossível de ser concretizada. Em três imperceptíveis segundos nasceram centenas ou milhares de crianças, morreram outros tantos indivíduos de todas as idades, navios naufragaram, aviões decolaram, decretos foram assinados, homens de ciência realizaram notáveis descobertas, países entraram em guerra, muitos choraram, muitos sorriram, o impulso afetivo uniu milhares de casais, o egoísmo separou outros tantos; o pensamento girou o mundo em busca de catalogar o maior número possível de eventos. Houve treva e houve luz, e você... bem, você contou até três!

No curso da vida, assim como na física, o futuro depende da ação das leis naturais e universais e sua relação com o arbítrio humano. A gravidade, por exemplo, determina a queda dos corpos; se alguém resolve saltar de um trampolim em uma piscina sem água, nem é preciso ser profeta para adivinhar seu futuro. Juntar fogo à pólvora tem como futuro uma explosão; desrespeitar a liberdade e o direito alheio tem como resultado o conflito e a violência entre indivíduos e nações.

Assim sendo, a sensatez recomenda prudência ao lidar com misturas explosivas, para evitar o risco desnecessário.

Mas evoluir é um impulso interior que nos empurra à frente, na incessante busca de experiências enriquecedoras. Chorando ou sorrindo, errando ou acertando, o ser humano é o que conquista como conhecimento vivenciado.

Fujamos do comodismo e do medo de mudar. Mesmo porque, mudar é lei a que nada resiste no Universo. Ter essa consciência é um excelente antídoto para a ansiedade e um poderoso tônico para a criatividade.

Auro
1998

A EMOCIONANTE SAGA DE INOCÊNCIO DAS DORES (ou Como encurtar a vida sem fazer força)

  
INOCÊNCIO DAS DORES FOI AO MÉDICO. Há dias vinha se queixando de umas dores de cabeça e problemas no estômago; nervos abalados pelos incômodos, irritava-se com facilidade, o que lhe causava ainda mais dor de cabeça e distúrbios estomacais!

Na sala de espera do consultório, folheava uma revista enquanto aguardava a vez. Correndo os olhos pelas páginas coloridas, sua atenção estancou sobre grande foto de uma linda jovem, nua e sorridente. Afivelou ao rosto nova expressão, meio deboche, meio censura e, com uma cotovelada, despertou de um cochilo outro paciente a seu lado. Dedo em riste, mostrou-lhe a foto, exclamando:
- Veja você até onde vai a pouca-vergonha! Imagine se no meu tempo uma despudorada como esta teria tamanho destaque! É o fim dos tempos, meu amigo! A moral do mundo foi por água abaixo!
E o nosso Inocêncio proferiu longo e exaltado discurso contra a liberação dos costumes, não poupando os mais ásperos adjetivos aos que apóiam a nova moralidade. Tão apaixonado estava que nem percebeu que seu ouvinte voltara a cochilar, totalmente desinteressado pelo assunto.
Porém, desde quando vira a foto na revista, sensíveis alterações físicas e emocionais atingiram o estado geral do Inocêncio. Primeiro, uma súbita alta de pressão, devido ao acelerar do batimento cardíaco provocado pela contemplação de um atraente exemplar do sexo oposto. Depois, leve falta de ar, por conta do choque entre o instinto e o preconceito. Congestionados os vasos sanguíneos da região gástrica pela descarga inesperada de hormônios, fruto da exaltação, bloqueiam-se os processos digestivos, cobrando ao cérebro e sistema nervoso providências imediatas para evitar um colapso. Têmporas latejantes, rosto afogueado, mãos frias e suadas, olhos injetados, Inocêncio era o desastre em pessoa!
E tudo por causa de uma simples fotografia...
.....
Em presença do médico, Inocêncio das Dores desfiou um rosário de lamentações. Alegava não entender o porquê de tantos distúrbios, já que levava uma vida bastante comedida e praticamente não tinha vícios. Minutos depois, com a receita nas mãos, deixa o consultório, rumo à farmácia, esbravejando entredentes devido ao preço da consulta.

Depois de algumas dezenas de comprimidos hipotensores, calmantes, soníferos, relaxantes, antiácidos e similares, lá vem o Inocêncio rua acima, jornal debaixo do braço e cara de poucos amigos. Alguém o cumprimenta:
- E aí, tudo bem, Inocêncio?
- Qual nada, rapaz! Como pode alguma coisa andar bem com tanta roubalheira? Veja só esta manchete (agita o jornal); é justo que se permitam ladrões como este no comando? Olha, vou contar pra você só um pouquinho do que eu sei a respeito deste e de outros crápulas de colarinho branco!...
Após meia hora de difamação, Inocêncio faz uma pausa para respirar e o interlocutor pergunta sobre sua saúde.
- Mesma coisa, mesma coisa. Tenho gastado rios de dinheiro com os médicos que, diga-se de passagem, estão metendo a mão, e nada melhora. Parece até coisa feita!
.....
Dia seguinte, encontramos o Inocêncio num bairro de subúrbio, procurando a casa do curandeiro indicado pelo amigo, que lhe garantiu ser o homem bem “entendido nessas coisas”. Não que ele, o Inocêncio, acreditasse em feitiço, encosto, etc, mas, de repente, quem sabe?..
Durante a entrevista com o comerciante de ilusões, outra vez Inocêncio desfia seu rosário de queixas. Uma hora depois, sai dali mais leve, sorridente até, convencido de que fora vítima de bruxaria, mas, nada que sete velas vermelhas e uma galinha preta não resolvessem!
....
Semanas depois, flagramos o Inocêncio e um amigo no seguinte diálogo:
- Mesma coisa, Inocêncio?
- Mesma coisa, meu caro! Não consigo entender; sou até calmo, não tenho grandes vícios e sofro desse jeito!
- Sabe, Inocêncio, tem um especialista amigo meu que sabe das coisas; porque você não o experimenta?..


10/03/1986                                                                                                                      
Auro

A FAMÍLIA DO DIABO



O Diabo (aqui com letra maiúscula, para distingui-lo da expressão popular), também conhecido por Satanás, Capeta, Cão Coxo (nada contra os cachorros), Belzebu e outros apelidos esdrúxulos, tem uma família numerosa e complicada. Paradoxalmente, o ser em questão é casado com uma santa. Santa esta que tem milhões de devotos espalhados pelos continentes afora. Esta donzela recebeu a canonização muito cedo, ainda em vida. Pelo seu incrível dom de nada entender, o maior milagre que realizou e ainda continua fazendo é sobreviver. É a Santa Ignorância, venerada por ricos e pobres, em todas as raças e classes sociais do planeta. Pois bem; deste inusitado casal brotou uma prole não menos inusitada, cujo perfil trataremos de estabelecer.

O Fanatismo é um dos filhos mais velhos; iracundo, tem acessos de cólera sempre que é contradito naquilo que julga ser a verdade. Dono de uma memória prodigiosa, grava livros inteiros, palavra por palavra, deleitando-se com a repetição sistemática de capítulos e versículos que, a seu ver, pulverizam os argumentos de seus adversários de fé. No entanto, é de uma ingenuidade que chega a ser dolorosa; encanta-se com discursos inflamados e promessas mirabolantes que, embora nunca se cumpram, tem para ele peso de sentenças divinas.

Arrogância, sua irmã, o tem como espelho de conduta. Por compactuar com as idéias do Fanatismo, julga-se dona de uma inexplicada superioridade, olhando o mundo de cima para baixo. Acha-se no direito de verberar contra o que bem entender, sem se preocupar com as conseqüências de sua atitude. Mas, apesar dessa pose, é extremamente insegura. Quando lhe falta o recurso verbal e o conhecimento de causa, apela para uma de suas mais truculentas irmãs; a Intolerância.
Esta jovem (a Intolerância) tem sérios problemas mentais. Incapaz de raciocínios mais elaborados, tenta impor à força os argumentos do Fanatismo ecoados na Arrogância. Para ela, toda cor é permitida, desde que seja a vermelha. Padece, porém de uma dicotomia interior, talvez em conseqüência da debilidade mental. Frequentemente se pega em concessões internas que contradizem sua própria postura. Daí se defende com a batida frase: “Faça o que eu mando, não o que eu faço.”

E quando o Fanatismo, a Arrogância e a Intolerância falham em suas investidas contra os inimigos (todo aquele que pensa diferente é inimigo), buscam o concurso do mais intelectualizado de seus irmãos; o Preconceito.

O rapaz costuma ser melhor sucedido onde os irmãos vacilaram. Hábil com as palavras (aprendeu com sua tia, a Maledicência), mascara os argumentos do Fanatismo e da Intolerância com citações e aforismos colhidos aqui e ali, como se o saber do mundo existisse apenas para justificar seus devaneios. À primeira vista, passa a impressão de que tem a melhor das intenções: desmascarar a falsidade, evitar o engano e destruir a mentira. Isso até defrontar-se com quem o conheça de longa data e saiba de seus desvios de conduta. Sim, pois o Preconceito costuma condenar publicamente o que mais deseja em secreto, adotando vida dupla para satisfazer-se sem dar na vista. É como certos personagens da Idade Média, que levavam as bruxas à fogueira mas roubavam-lhes os livros, para depois tentar encantamentos e invocações na calada da noite. Bem por isso, o Preconceito é um forte candidato a sofredor, pois corre o sério risco de lutar contra o que deseja e ficar com o que não quer. Ao ver-se desnudado em suas intenções, falta-lhe a fortaleza moral que permite o sincero reconhecimento dos erros e a dignidade para consertá-los (e consertar-se).

Fanatismo, Arrogância, Intolerância, Preconceito, Maledicência; legítimos descendentes do Diabo. E da Santa Ignorância.


Auro Barreiros - 2008