quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A FAMÍLIA DO DIABO



O Diabo (aqui com letra maiúscula, para distingui-lo da expressão popular), também conhecido por Satanás, Capeta, Cão Coxo (nada contra os cachorros), Belzebu e outros apelidos esdrúxulos, tem uma família numerosa e complicada. Paradoxalmente, o ser em questão é casado com uma santa. Santa esta que tem milhões de devotos espalhados pelos continentes afora. Esta donzela recebeu a canonização muito cedo, ainda em vida. Pelo seu incrível dom de nada entender, o maior milagre que realizou e ainda continua fazendo é sobreviver. É a Santa Ignorância, venerada por ricos e pobres, em todas as raças e classes sociais do planeta. Pois bem; deste inusitado casal brotou uma prole não menos inusitada, cujo perfil trataremos de estabelecer.

O Fanatismo é um dos filhos mais velhos; iracundo, tem acessos de cólera sempre que é contradito naquilo que julga ser a verdade. Dono de uma memória prodigiosa, grava livros inteiros, palavra por palavra, deleitando-se com a repetição sistemática de capítulos e versículos que, a seu ver, pulverizam os argumentos de seus adversários de fé. No entanto, é de uma ingenuidade que chega a ser dolorosa; encanta-se com discursos inflamados e promessas mirabolantes que, embora nunca se cumpram, tem para ele peso de sentenças divinas.

Arrogância, sua irmã, o tem como espelho de conduta. Por compactuar com as idéias do Fanatismo, julga-se dona de uma inexplicada superioridade, olhando o mundo de cima para baixo. Acha-se no direito de verberar contra o que bem entender, sem se preocupar com as conseqüências de sua atitude. Mas, apesar dessa pose, é extremamente insegura. Quando lhe falta o recurso verbal e o conhecimento de causa, apela para uma de suas mais truculentas irmãs; a Intolerância.
Esta jovem (a Intolerância) tem sérios problemas mentais. Incapaz de raciocínios mais elaborados, tenta impor à força os argumentos do Fanatismo ecoados na Arrogância. Para ela, toda cor é permitida, desde que seja a vermelha. Padece, porém de uma dicotomia interior, talvez em conseqüência da debilidade mental. Frequentemente se pega em concessões internas que contradizem sua própria postura. Daí se defende com a batida frase: “Faça o que eu mando, não o que eu faço.”

E quando o Fanatismo, a Arrogância e a Intolerância falham em suas investidas contra os inimigos (todo aquele que pensa diferente é inimigo), buscam o concurso do mais intelectualizado de seus irmãos; o Preconceito.

O rapaz costuma ser melhor sucedido onde os irmãos vacilaram. Hábil com as palavras (aprendeu com sua tia, a Maledicência), mascara os argumentos do Fanatismo e da Intolerância com citações e aforismos colhidos aqui e ali, como se o saber do mundo existisse apenas para justificar seus devaneios. À primeira vista, passa a impressão de que tem a melhor das intenções: desmascarar a falsidade, evitar o engano e destruir a mentira. Isso até defrontar-se com quem o conheça de longa data e saiba de seus desvios de conduta. Sim, pois o Preconceito costuma condenar publicamente o que mais deseja em secreto, adotando vida dupla para satisfazer-se sem dar na vista. É como certos personagens da Idade Média, que levavam as bruxas à fogueira mas roubavam-lhes os livros, para depois tentar encantamentos e invocações na calada da noite. Bem por isso, o Preconceito é um forte candidato a sofredor, pois corre o sério risco de lutar contra o que deseja e ficar com o que não quer. Ao ver-se desnudado em suas intenções, falta-lhe a fortaleza moral que permite o sincero reconhecimento dos erros e a dignidade para consertá-los (e consertar-se).

Fanatismo, Arrogância, Intolerância, Preconceito, Maledicência; legítimos descendentes do Diabo. E da Santa Ignorância.


Auro Barreiros - 2008

2 comentários:

helena maria de souza disse...

Prezado Auro. Estou adorando suas crônicas. Compartilhei algumas. Agora vou compartilhar o blog.
Parabéns!

Auro Barreiros disse...

Maria Helena, grato pelo estímulo. Desculpe não te responder antes. Estive ausente devido ao um descolamento de retina. Ainda estou de molho, mas já retomei a escrita.
Acabei de postar algumas coisas novas. Espero que goste.
Abraço.