quinta-feira, 3 de outubro de 2019

LEVEZA



O maestro movimenta a batuta e os belíssimos acordes de diversos instrumentos preenchem o silêncio do grande teatro. Delicadas notas de violinos marcam a entrada de uma bailarina, que evolui até o centro do palco. Movimentos tão elegantes quanto precisos causam a ilusão de que a esbelta jovem flutua, como pluma ao sabor da brisa. Cena de puro encantamento, imagem da leveza!..

Leveza: palavra que envolve um dos aspectos mais problemáticos da vida humana. Leveza lembra convívio, relacionamento, diferenças... Desafios do cotidiano, que denunciam o grau de harmonia ou de conflitos na existência de cada um. Diante das divergências de opinião ou crença, ou no enfrentamento das adversidades, é comum a recomendação de que se aceite com leveza as diferenças e os reveses.

Mas, afinal, o que vem a ser essa leveza? Seria a passividade sorridente? Seria o dar de ombros diante da gravidade dos obstáculos ou do assédio da arrogância? Seria o ato de minimizar a realidade, ou mesmo ignorá-la, sob o pretexto de buscar a paz?

Voltemos à nossa bailarina. Seus movimentos desafiam a gravidade; sua leveza é real. Para a plateia, o sentimento é de que a dança flui, natural e inconscientemente, como o voo dos pássaros. Eis aí o ledo engano! A artista traz ao palco horas, dias, meses e anos de dura disciplina, estudo diligente e dolorosos exercícios de condicionamento físico. O bailado que cativa custou lágrimas e renúncias.

Na vida, como na dança, a leveza não vem de graça. Na vida, como na dança, há que se corrigir posturas, aperfeiçoar atitudes e desenvolver o discernimento. Na vida, como na dança, não se deve confundir leveza com alienação, sob pena de se perder o compasso e tropeçar nos próprios pés.

Que o homem seja leve. Que conviva em harmonia com as diferenças, sem que isso lhe cause constrangimento. Mas, diante da crueldade, da tirania e da agressão ao indefeso, que o homem seja, antes de tudo, honesto perante a sua verdade.
Que o homem seja leve. Mas que não faça desse ato de comedimento máscara para dissimular a indiferença ante as incongruências de conduta, tanto alheias como próprias, tão comuns quanto nefastas. Que sua leveza não se converta em conivência com a desonestidade, ou mero comodismo ante o imperativo do progresso ético.
Que o homem seja leve no trato com as próprias dores. Mas que faça brotar essa leveza da compreensão íntima da lição contida em cada evento doloroso ou prazeroso da existência.

Leveza não é conformismo.
Leveza não deve ser hipócrita.
Leveza não é leniência.
Na árdua tarefa de construir o caráter, virtudes como o bom-senso, o comedimento, a tolerância, a empatia, são conquistadas a duras penas, ao preço de erros e acertos, derrotas e vitórias, encantamentos e desenganos. No cadinho do tempo, acontece a fusão das experiências e a transmutação reveladora da preciosidade da alma que, agora verdadeiramente leve, assim como a bailarina, evolui plena e bela no tablado da vida!



Auro
1/10/2019




terça-feira, 3 de setembro de 2019

ECOLOGIA INTERIOR



É inegável que a negligência em relação ao meio ambiente tem resultado em conseqüências trágicas para o ser humano. Aos desastres de proporções catastróficas, que mais parecem atos de rebelião da Natureza, juntam-se os efeitos lentos e silenciosos das diversas formas de contaminação. Agrotóxicos, depósitos de lixo e a emissão de gases tóxicos pelas indústrias comprometem três elementos básicos para a manutenção de toda a vida na Terra: o ar, a água e os alimentos.

A gravidade dos problemas ambientais, ainda que existente desde o início da civilização, só chegou à consciência do homem muito recentemente. Agora, além da pesquisa em busca de métodos para a preservação da natureza, a ciência tem que tentar conter os efeitos de séculos de práticas destrutivas e contaminantes, que se refletem tanto no clima quanto no âmago dos organismos vivos, entre os quais está o ser humano. Este é um dos maiores problemas e desafios da humanidade atual.

Mas, paralelamente à questão ambiental, que visa o aspecto exterior da vida, o homem moderno enfrenta outro problema extremamente grave; a contaminação e degradação de seu ambiente interior. A despeito do extraordinário desenvolvimento intelectual já atingido (ou talvez por isso mesmo), não há como desconhecer a crise de personalidade que assedia milhões de pessoas em todo o planeta. O consumo exacerbado de álcool e drogas é a evidência gritante de que o ser humano ainda tem enorme dificuldade em lidar consigo mesmo. Se fosse possível traçar o perfil psicológico de todos os envolvidos em crimes e acidentes de trânsito no momento de cada ocorrência, certamente descobriríamos em cada infrator um ser angustiado, em conflito com sua própria natureza íntima. Conheceríamos histórias de ausência de valores, equívocos e distorções quanto a princípios éticos, frustrações afetivas, orgulho ferido, sintomas claros de perturbação mental e emocional.

A constatação de que esse caos interior é, em maior ou menor grau, a condição de parte considerável da humanidade, evoca a célebre injunção filosófica que foi inscrita no portal do templo de Apolo, em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo.” 

O começo e o fim de tudo estão dentro do próprio eu. É o desconhecimento de si, no sentido essencial, a matriz de todos os desacertos que o homem comete contra sua própria espécie. Por ignorar o estreito parentesco com o seu semelhante, o homem tem sido capaz de malversar recursos naturais em nome do lucro, gerando riscos e sofrimento aos demais. Por não conceber a existência de uma lei natural equânime e eficaz, cria seu próprio conceito de justiça e o aplica sempre que se sente traído, constrangido ou ameaçado. E quando se defronta com os efeitos de suas atitudes, tenta de todas as formas evitar o sofrimento, quase sempre sem sucesso. É o meio ambiente interior que reage às agressões e busca o equilíbrio original, ainda que doa.

Ao mesmo tempo em que preserva a Natureza ao seu redor, o homem precisa preservar o equilíbrio de seu mundo mental e emocional. Quinze minutos diários de dedicação a si mesmo costumam ser mais eficientes para isso do que as inúmeras formas de escapismo que a modernidade oferece. Contemplar-se diante do espelho da consciência e examinar pensamentos, sentimentos e atos pelo princípio da reciprocidade pode ser mais gratificante e produtivo para o crescimento pessoal do que dezenas de livros de auto-ajuda, tão em voga nos dias de hoje.

A meditação é uma excelente ferramenta de aprimoramento pessoal, através da elevação da consciência a níveis superiores. Pela meditação é possível vislumbrar nosso mundo interno, bem como realizar os ajustes que resultem em maior harmonia com as leis naturais e cósmicas.




Auro Barreiros



segunda-feira, 2 de setembro de 2019

EQUILÍBRIO E HARMONIA




Quando conhecemos alguém que raramente comete deslizes, que não se dá a excessos, que mantém relativo controle sobre suas emoções e evita maiores comprometimentos, costumamos dizer que se trata de uma pessoa equilibrada. Da mesma forma, o homem ou a mulher cujo comportamento extrapola os limites do convencional são vistos como desequilibrados. Mas, afinal, o que é o equilíbrio? Em relação à vida humana, o que significa essa palavra?

Primeiramente, consideremos a definição formal de equilíbrio: “Estado de repouso de um corpo solicitado por várias forças que se anulam. Posição estável do corpo humano. Exibição acrobática. Ponderação, calma, prudência: equilíbrio de espírito. Justa combinação de forças, de elementos”.  Esta sequência de conceitos denuncia a velha dificuldade humana quanto às palavras.  No primeiro caso, se um objeto qualquer for submetido a forças iguais em sentidos opostos, permanecerá em equilíbrio, ainda que debaixo de pressões conflitantes. Na “justa combinação de forças” não se sabe em que proporção cada força pode ser considerada justa.
Passemos, então, à definição que se refere mais diretamente ao ser humano: “ponderação, calma, prudência”.  Aqui, como podemos ver, o equilíbrio emocional é conceituado pelo senso comum. Quem aparenta calma é tido como equilibrado. Na natureza, porém, não é o equilíbrio (equivalência de forças) que produz movimento e vida, mas exatamente o rompimento dessa equivalência. As águas correm para o mar porque o mar está abaixo do nível das nascentes. A energia elétrica aciona máquinas e acende luzes devido à diferença de potencial entre as polaridades.

Com o ser humano não é diferente. Os potenciais psíquicos que determinam as manifestações emocionais e criativas permaneceriam estagnados como um lago, se não existisse um vazio, um declive ou uma “força oposta” que os obrigasse a fluir. Se nossos atributos espirituais fossem “submetidos a várias forças que se anulam”, nenhuma produção intelectual, artística ou humanitária aconteceria. A evolução não aconteceria. Assim, imaginar que a repressão das emoções, a imposição do autocontrole sejam demonstrações de equilíbrio é desconhecer as necessidades legítimas da alma: a livre expressão dos sentimentos, a livre apreciação da realidade, a livre aceitação ou rejeição daquilo que sua consciência determine.

O estado ideal é aquele em que a vida emocional não seja regulada pelas convenções, mas pela relação harmônica entre a natureza exterior e a natureza interior; que possamos nos alegrar com que é belo,  bom e prazeroso ou nos entristecermos com o que seja oposto a tudo isso, com a mesma liberdade, sem que a alegria gere culpa ou a tristeza seja interpretada como pagamento de pecados.

É evidente que todo excesso é indesejável. Mas o progressivo conhecimento de nossa própria constituição psíquica nos oferece os mecanismos de moderação que nos permitam uma vida emocional sadia. A justa distribuição de nossas forças interiores estabelece a condição que os místicos denominaram “Harmonium”.  Diferentemente do equilíbrio como oposição de forças com vistas à neutralidade, o “Harmonium” é a livre, porém ordenada relação entre essas energias, para uma existência plena de saúde, criatividade e paz no convívio com os semelhantes.


Auro Barreiros

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O LEGADO DA EXISTÊNCIA




A humanidade, no seu processo civilizatório, consagrou alguns costumes que merecem uma análise mais acurada, como, por exemplo, as leis que regulamentam o destino do espólio, o conjunto de bens que alguém amealhou até o momento de sua morte. A ideia de herança, provavelmente, é consequência do conceito de família e das responsabilidades que disso advém; a preocupação com a sobrevivência dos que ficam ensejou o estabelecimento de normas protetivas de patrimônio e a regulamentação de partilhas. Apesar das contendas que, muitas vezes, transformam esse ato solene em batalha campal, a intenção de preservar a dignidade e os direitos dos familiares justifica o costume, que é lei na maior parte das nações.

Deixar uma herança é, para muitos, uma das principais motivações da vida, especialmente quando na idade madura. A consciência da finitude da jornada terrena e o temor antecipado de possíveis dificuldades para os familiares levam o ser humano a sacrificar alguns de seus ideais e a adotar condutas nem sempre louváveis em relação a negócios e dinheiro.
Um belo dia, eis que se parte desse vale de lágrimas. Findas as exéquias, abre-se o testamento e cumpre-se a vontade do falecido, que segue em paz, na premissa de que seus entes queridos não sofrerão privações, graças ao seu esforço e sacrifício pessoal, quando em vida. No que diga respeito aos bens palpáveis, missão cumprida.

Será esse, porventura, o único ou o maior legado de uma vida? Pode-se estar seguro de que os bens, o dinheiro, realmente serão a salvaguarda dos que aqui ficam, em todos os aspectos da existência? Inúmeras histórias de malversação de formidáveis heranças, de disputas ferrenhas e sangrentas e decadência de famílias tradicionais colocam em xeque essa ideia de segurança. Ao contrário, indicam que, na maior das vezes, é justamente o súbito enriquecimento sem labor o mote para o esbanjamento e a consequente derrocada.

Se há uma vida além-túmulo, e se de lá é possível observar o que aqui se passa, certamente, amargas lágrimas têm sido vertidas por aqueles que se negaram a própria felicidade, no empenho de construir e legar um patrimônio para o bem dos seus amados. Talvez, ao testemunhar o solene esquecimento que lhes é votado, almas decepcionadas rememorem os passos dados na Terra e se perguntem, frustradas, onde teriam errado.

Saindo da situação individual para o plano coletivo, tenhamos em mente que a civilização é uma somatória de heranças, que podem ser distintas em três aspectos: a herança física, cuja prevalescência começa pelo próprio corpo; a herança cultural, decorrente do acúmulo de saberes que transmigram através das gerações; e a herança espiritual, que se reflete na busca pela transcendência e compreensão íntima da natureza do ser. Fisicamente, há leis naturais que, ao longo das eras, ajustam o ser vivo ao ambiente e às necessidades de sobrevivência, replicando esses ajustes através da hereditariedade (o nome não foi escolhido ao acaso). O peludo Neandertal foi se refinando, na medida mesma das alterações ambientais, até chegar ao que somos hoje. É possível que, daqui a um ou dois milhões de anos, se não nos destruirmos antes, tenhamos algumas diferenças físicas em relação ao que somos atualmente.
A herança cultural, por sua vez, é produto de uma condição particular do ser humano: a racionalidade. Aparentemente, somos os únicos seres que afetam deliberadamente o meio em que vivem. Enquanto os animais, ainda que manifestem inteligência, parecem obedecer a uma programação inconsciente e imutável, como os pássaros ao construir seus ninhos, o homem manipula e transforma a matéria segundo seus impulsos criativos. Essas diferenças básicas deram origem a práticas como a caça, a pesca e, posteriormente, a agricultura, matriz das primeiras comunidades e embriões de sociedades. Esse mesmo impulso criativo, movido pelas necessidades e alimentado pela observação, promoveu (como o faz até hoje), a evolução das práticas que, como um patrimônio imaterial, foram sucessivamente herdadas e aprimoradas a cada geração. O surgimento da escrita propiciou uma aceleração no progresso; o conhecimento, agora, poderia ser registrado e perpetuado.

E a herança espiritual, quem sabe, teve seu começo ao redor das primeiras fogueiras. Aquecido e protegido, é possível que o homem primitivo tenha iniciado ali o exercício das faculdades superiores da mente. Talvez tenha começado a rememorar seus medos e encantamentos diante dos eventos naturais e esboçado as primeiras crenças anímicas.  Especulação ou não, o certo é que as crenças primitivas também evoluíram, incorporando-se ao processo civilizatório e sendo, como todas as demais conquistas, transmitidas como legado às gerações posteriores. Do simples e quase irracional temor do raio e do trovão, gradativamente se tornaram religiões organizadas, com ontologias e dogmas. Chegou-se à filosofia, cuja forma metódica de sondar o desconhecido findou por somar-se às religiões, aprimorando as doutrinas e indicando uma finalidade maior: o autoconhecimento.
E então, descobre-se que o autoconhecimento tem consequências profundas. Conhecer a si mesmo, que é o alfa e o ômega da espiritualização, obriga o ser humano a aprimorar seus conceitos de justiça, deixando, gradativamente, o terreno individual, em favor do pensar coletivo e universal. Sob essa ótica, qual será a qualidade do legado da humanidade para si mesma?

Antes de qualquer argumento, é preciso que se estabeleça uma conceituação mais clara do que vem a ser “civilização”. A palavra vem do latim, “civis”: cidadão, habitante da cidade, do que se depreende que, em princípio, trata-se de uma consequência da vida coletiva. Para os antigos, isso era relevante, tendo-se em conta a importância e os benefícios oriundos da concentração humana em tribos e aldeias, que evoluíram para complexos urbanos. A consequente organização social trouxe mais facilidade para a produção de alimentos e bens de consumo; em caso de luta armada, o maior número de pessoas aptas ao combate poderia ser decisivo na defesa do território. Ou seja, a dita civilização teve, sob o ponto de vista puramente fenomenológico, raízes bem pragmáticas.

Mas a relativa tranquilidade consequente desse convívio “civilizado” fez aflorar aspectos um tanto subjetivos da natureza humana. A inquietude intelectual provocou o desenvolvimento das ciências e das artes; a busca espiritual elevou o pensamento a questionamentos profundos quanto aos mistérios da natureza, conforme expressados no próprio homem.

No entanto, ainda que algumas luzes evolutivas brilhassem aqui e ali, certas práticas animalescas persistiram inalteradas, no cotidiano da alegada civilização, como se nem o tempo, nem as conquistas da mente tivessem produzido alguma alteração no caráter primitivo.  Pelo contrário, parece que o progresso do conhecimento potencializou a barbárie, ao sofisticar a letalidade. O refinamento da linguagem e a prolixidade das ideologias servem, quase sempre, para oferecer razões aparentemente plausíveis às guerras e suas consequências diretas ou indiretas: miséria, doença, segregação, ódio racial, exploração do mais fraco, monopólios de recursos naturais, rapinância econômica e o embrutecimento da sensibilidade aos valores mais altos da ética e da justiça. Apenas para ilustrar, há regiões do mundo em que povos disputam territórios há mais de dois mil anos, ao preço do sangue, numa cascata de ódio e ressentimento que passa de geração para geração.

Em se tratando de costumes, não há como dizer de que modo o vício da embriaguez começou. Pode ter sido uma descoberta casual, que tenha propiciado um prazer inédito ao homem primitivo. O que se tem de certo são os registros muito antigos da incorporação de substancias inebriantes a práticas religiosas e ao cotidiano das velhas civilizações.  Ora como ato de comunhão, ora como inocente recreação, o vinho, por exemplo, é personagem onipresente em toda a História antiga, tendo presumida origem divina. Mas, mesmo entre os devotos de Baco, sempre houve quem recomendasse prudência e comedimento, tendo em vista os efeitos que é capaz de produzir no comportamento e na saúde humana. Como a euforia etílica costuma ser surda, tais recomendações foram, pouco a pouco, esquecidas. O alcoolismo progrediu vertiginosamente, abrindo portas para a adoção do consumo de outras substancias ainda mais lesivas. Juntamente com o tabagismo, álcool e drogas tornaram-se gravíssimo problema de saúde pública. Paradoxalmente, porém, algumas das maiores pagadoras de impostos e geradoras de empregos são, ironicamente, fábricas de bebidas e cigarros! O tráfico, por sua vez, movimenta trilhões de dólares com o vício típicamente urbano do uso de inebriantes, narcóticos, estupefacientes e alucinógenos, numa destruição sistemática de lares e vidas.

A lista de paradoxos e contradições em relação ao que se convencionou denominar civilização é um pouco extensa. Sem obscurecer o progresso inegável, as nobres conquistas nos diversos campos, não há como fechar os olhos para a realidade que nos assedia cotidianamente, graças ao evoluído sistema moderno de comunicações. E também não há como deixar de reconhecer que os verdadeiros problemas que atormentam a humanidade são os mesmos de milênios atrás. O ponto focal, portanto,  é a questão inicial dessa reflexão: qual é o legado que a humanidade está deixando para si mesma?

Pode ser que encarar essas realidades gritantes tenha o dom de esvair esperanças e alimentar um conformismo cínico. Isso é perigoso, pois induz a falsa premissa de que o indivíduo é impotente diante da derrocada coletiva, restando-lhe apenas “seguir a corrente” e compartilhar as dores do mundo. Pode ser que, pela magnitude do caos moral, o indivíduo se exima de maiores responsabilidades e até aceite passivamente o andar da carruagem. E, nessa conjuntura, é preciso ter em mente que a evolução coletiva é efeito da evolução individual. A mesma História que registra as incoerências e atrocidades humanas também informa que, em todas as épocas, houve indivíduos que influenciaram coletividades. As conquistas morais e espirituais de uns poucos têm sido o fermento para formidáveis aprimoramentos na sociedade. Logo, a inércia de um povo não sanciona a inércia pessoal. Mas a soma dos esforços individuais faz girar a roda do progresso.

Provavelmente, esse deve ser o grande e melhor legado, tanto da civilização, como um todo, quanto do indivíduo, como parte indissociável desse todo. Que o espólio de cada ser humano, ao término da jornada terrena, seja o produto de seus esforços na construção da própria personalidade. Que os valores imateriais cultivados possam servir de farol ético à sucessiva geração; valores que se multiplicam na proporção em que são utilizados na economia da vida. Equanimidade, respeito a tudo, busca incansável do conhecimento, pensamento e ação voltados para o bem coletivo, cultura da Paz; valores cujo tamanho não se mede senão pelas consequências que geram onde são aplicados.

Uma alma que se eleva, eleva o mundo inteiro”.[1]



Auro Barreiros
25/2/2019


[1] ELIZABETH LESEUR (1866-1914)
Mística e escritora francesa, nascida em Paris.


terça-feira, 15 de janeiro de 2019

CRÔNICAS DE NEANDERTHAL




Crônicas de Neanderthal
(ou “No tempo dos dinossauros falantes”)

No princípio, era a pedra.
Lascada, polida,
Que, se arremessada,
Feria de morte.

E as pedras rolaram,
Se sofisticaram,
No curso das eras.

Agora ligeiras,
Precisas,
Letais,
Como nunca o foram,
Jamais,

Não mais abatem feras;
Abatem princípios
Morais.



Auro
15/1/2019