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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O BUSCADOR DA VERDADE (AQUELA QUE NÃO QUER CALAR)





Era inverno. Ali, no Himalaia, essa estação do ano era a ideia mais próxima que se poderia ter da morte, ainda que a morte fosse definida pelos ensinamentos de meu guru como mera ilusão provocada pelas limitações da consciência aprisionada à carne; Maya, em uma palavra. Mas era uma ilusão muito real e dolorosa para mim, que ainda  não me libertara das trevas da ignorância e não passava de um simples Chela (discípulo, para os leigos). Um simples e medíocre Chela, que, naquele dia de cruel inverno tibetano, escalava a face mais íngreme de uma certa montanha (não direi qual, para preservar o segredo da morada do meu guru), buscando a luz que saciaria minha sede de conhecimento.

Depois de um dia interminável de tropeços, quedas, dolorosas rachaduras nos lábios e mãos, pés petrificados e a constante ameaça de hipotermia, eis-me à entrada da caverna em que aquele homem santo meditava, sentado em lótus. A débil chama de um candeeiro abastecido com manteiga de iaque lançava reflexos dourados à barba longa e branca (lembrava uma estalactite), formando uma imagem que induzia o respeito e a veneração.
A pedra gelada que me serviu de banco certamente estava à minha espera, pois reunira todo o frio da montanha para me congelar a coluna, desde a base até a nuca. Rígido e feliz por estar ali, aos pés do mestre, meditei por algum tempo (horas, dias, meses, talvez; isso é irrelevante, pois, segundo o mestre, o tempo também é uma ilusão da consciência limitada, em sua prisão de carne. Maya, claro!).

Ao regressar do quase-nirvana, as questões transcendentais que me levaram até aquele santo lugar começaram a enfileirar-se em minha mente. Decidi então iniciar meu aprendizado, dirigindo ao sábio asceta a primeira de incontáveis perguntas.

“Iluminado Instrutor das almas trevosas (a praxe ritualística determina que, dirigindo-se ao Guru, uma exaltação cerimoniosa deve preceder a fala), podeis me explicar a origem e sentido da vida?”

Aguardei, reverente, a breve introspecção daquele que me tiraria a venda dos olhos espirituais. Em poucos minutos, o vetusto ser abre os olhos e começa a me responder, com um leve sorriso a bailar em seus lábios:
“Ignóbil Chela (o esculacho também é praxe ritual), isso é de uma simplicidade infantil. A origem da vida...(não vou relatar a resposta do mestre, pois a mesma demorou mais ou menos uma semana para ser concluida. E era um resumo para pricipiantes como eu).
Transbordante de alegria, eu teria até dançado, se a rigidez imposta pelo frio não me tolhesse quase todos os movimentos. Finalmente, estava recebendo a luz que tanto buscara, desde o Paquistão até a Grande Muralha da China. Inebriado e feliz, passei para a próxima questão:

“Ó, Profundidade Oceânica da Sabedoria Ancestral (dessa vez eu caprichei)! Podeis descrever as dimensões espirituais?”
“Claro, estúpido antropoide! Mas preste atenção, que só falarei uma vez!” E por mais uma semana, o Erudito preceptor discorreu sobre o tema. Eu, absorto, bebia cada palavra.
E assim, pergunta após pergunta, fui realizando meu austero discipulado. O intenso frio já não me incomodava; aliás, à exceção do queixo e dos olhos, todo meu corpo era uma pedra de gelo insensível.

Um dia, ao final de uma bela tarde de inverno (esqueci-me de dizer que o inverno nunca termina no Himalaia), resolvi formular a questão das questões, a dúvida que me perseguia por vidas afora. Respirei fundo, conforme as práticas de Pranayama e mandei:

“Venerando Guardião das Verdades Eternas (esse eu havia reservado para uma pergunta especial); como bem o sabes, a humanidade está vivendo um caos de ordem ética, cujas consequencias espirituais podem ser notadas na insalubridade mental e emocional da sociedade (o mestre, até então sorridente, começou a mudar a expressão; encolheu os lábios, franziu levemente o cenho e me encarou, entre curioso e contrariado). E a parte mais contraditória dessa crise é ser protagonizada por aqueles que têm acesso ao conhecimento e, por justiça, deveriam ser os primeiros a preservar os valores morais duramente conquistados. Agentes da lei que acobertam e até praticam o crime, magistrados que se vendem e vendem seus favores, homens públicos que se locupletam do bem que é de todos, feito baratas no melado, insensíveis ao sofrimento que provocam ao redor. Castas privilegiadas que arrogam supremacia em função da crença ou da cor da pele, sistemas econômicos que encampam a ciência em prol do lucro desmedido, comerciantes da fé e das armas, uns e outros gerando a guerra como fonte de renda; tudo isso acontecendo debaixo do céu de Brahman, Jeová, Alah, ou seja lá quem for o Regente Universal! Dizei, ó Farol das Almas! Como entender isso? E, principalmente, como acabar com isso?”

O Magnânimo Yogue estava visívelmente contrafeito. Fechou os olhos e demorou-se por algum tempo (dias, semanas, meses? Não importa, pois ele mesmo disse que o tempo etc, etc.), até que, concentrado, inspirou profundamente e emitiu um longo gemido:

“Hummmmmm!..”

Sem entender se traatava-se de um mantra ou uma resposta cifrada, aquietei minha mente e entrei em meditação profunda, enqanto o vento cortante do inverno tibetano terminava de congelar meu corpo.

Não sei por quanto tempo permaneci nesse transe. Mas em cerca de mil e quinhentos anos a Lei de Samsara já me trouxe de volta a esse plano por quinze vezes. E até agora não sei se o gemido do mestre era um mantra, uma resposta ou só um gemido.



Auro Barreiros,
O incompetente Chela

20/8/2017

sábado, 2 de abril de 2011

Nova Era; desejada ou temida?



A humanidade, em todas as épocas, sempre se preocupou com o futuro. Aliás, a História demonstra que, quanto mais civilização e conseqüente sofisticação intelectual, maiores as elucubrações em torno do que seriam os tempos vindouros.

Em todas as religiões essa preocupação gerou mensagens escatológicas, umas aterradoras, como o Apocalipse bíblico, outras alvissareiras e paradisíacas.  Mas, é ponto passivo que a conduta humana é fator preponderante na realização de tais profecias; a maldade, a iniqüidade, a corrupção, a apostasia, dentre outras atitudes indesejáveis, causariam a precipitação dos castigos divinos e a subseqüente seleção, que separaria os justos dos pecadores, premiando uns com a bem-aventurança eterna e outros com a danação eterna ou a destruição. Esta forma de crer e pensar é, ainda nos dias atuais, o sustentáculo de fé para milhões de pessoas, que se esforçam em ser fiéis às doutrinas que professam, com vistas à paz e felicidade eternas na Jerusalém Celeste ou o seu equivalente.

Mas, com o progresso do pensamento, mentes especulativas passaram a contemplar um futuro mais próximo e terreno. A filosofia, como esforço de desvendar as causas primeiras, impulsionou o homem ao aperfeiçoamento de conceitos éticos, tirando-os do campo da fé e situando-os na esfera da razão e do direito. Um ser humano não deve causar prejuízo à liberdade ou à vida de outro, não apenas em função de um dogma religioso (portanto inquestionável), mas também porque contraria o princípio ético da igualdade. Ainda que, em seu íntimo, alimente a esperança de um céu por recompensa à sua bondade, as conseqüências de uma atitude igualitária e respeitosa são mais imediatas e objetivas; a criação e manutenção de um estado de convivência harmoniosa, de que resultam benefícios concretos, como a construção de uma sociedade próspera e segura.

Expressões como “Nova Era”, “Novo Mundo”, são pejorativamente empregadas por mentes fundamentalistas da atualidade. Em torno desses títulos formaram-se mirabolantes teorias conspiratórias, que envolvem desde sociedades secretas e satânicas até extraterrestres, que, mancomunados a dirigentes mundiais, estariam governando subterraneamente o planeta, na tentativa de implantar seu domínio e extinguir os valores que se tem por certos, emanados das religiões e doutrinas tradicionais. Por conta dessas conspirações, há uma verdadeira mobilização no sentido de prevenir ou imunizar os rebanhos, protegendo-os contra a tão temida Nova Era.

Antes de qualquer tomada de posição, é preciso que se conceitue claramente o que é chamado de “Nova Era”. É uma forma definida de governo? É uma religião, ou doutrina? É uma filosofia, como a platônica, que alterou a face intelectual do mundo?  Nota-se que a grande preocupação das religiões é centrada na figura de Satanás, como o mentor de idéias capazes de corromper a alma do homem e aprisioná-lo definitivamente às trevas. Satanás seria o grande chefe de todos os movimentos que, de uma forma ou de outra, buscam a renovação dos costumes e crenças com vistas a um planeta fraterno, solidário e tolerante. E esta seria a primeira incoerência a ser anotada nos movimentos contrários à “Nova Era”; Satanás trabalhando contra si mesmo, ao defender valores que, tradicionalmente, são originários do Bem.  

É preciso que percebamos um fato inconteste: a “Nova Era”, como um distante e predeterminado tempo vindouro, não existe. Todos os dias, quando abrimos a janela para o Sol, uma nova era está começando, pois, ao nos deitarmos na noite anterior, não seriamos capazes de afirmar com certeza que chegaríamos ao dia seguinte. Nossa capacidade premonitória é por demais limitada para isso. Mas nos levantamos, cumprimos a rotina da vida e, ao nosso modo, semeamos o amanhã. Essa compreensão conduz a outra constatação importante: a qualidade do que se planta define a qualidade do que se colhe. O futuro individual e coletivo é fundamentado nessa lei.

Assim, não apenas uma religião, ou fraternidade, ou partido político estão construindo a Nova Era; todo ser humano, por ação ou por omissão, está incluso nessa obra. Nossas atitudes individuais, perante nós mesmos, ou em relação aos que nos rodeiam, geram reações e condições que, direta ou indiretamente, agem no todo da sociedade. A tolerância ou intolerância de cada um é o tempero que pode tornar a vida agradável ou intragável.

O pastor que convence o seu rebanho a cuidar dos mais necessitados, em nome da fé, está construindo o novo mundo. Mas o corrupto, o criminoso que fere os direitos alheios e produz dor e sofrimento, também está semeando o novo mundo. Pode parecer paradoxal, mas, lembremo-nos que uma das qualidades que se costuma atribuir a Deus é a Justiça. Portanto, não seria justo imaginar que a tarefa de reformar o mundo ficasse nas costas de um homem ou de um grupo, para que todos os demais usufruíssem benefícios pelos quais não lutaram. Logo, a responsabilidade por um mundo melhor é de todos, ainda que nem todos estejam conscientes disso.

Se, daqui a algumas décadas ou séculos, o planeta em que vivemos estiver muito melhor; se houver paz e justiça, se todas as crenças e ideais conviverem harmoniosamente, se a dor não for mais provocada pela maldade, palmas pra nós. Seremos vitoriosos, por ter conseguido conquistar coletivamente um estado ideal de vida.

Mas, se a “Nova Era” for a ampliação do despotismo atual, se a crueldade e o desrespeito forem a tônica do comportamento, se os direitos forem ignorados em nome do fanatismo e da arrogância, trazendo com isso a decepção, a descrença e o sofrimento físico e moral, não culpemos a nenhum Satanás por isso, pois seremos nós, os seres humanos, os únicos responsáveis pelos espinhos que plantarmos.

Portanto, é recomendável que avaliemos os conceitos e convicções enquanto “estamos a caminho”, enquanto ainda há tempo de corrigir a rota e escolher a semente. É oportuno que se revejam as crenças e atitudes, na medida em que afetem o semelhante. Todo ideal de mundo melhor que esteja vinculado à adoção de um sistema de crer e pensar, à exclusão dos demais, está fadado ao insucesso, pois, na condição de seres racionais em processo evolutivo, cada um percebe a realidade segundo sua própria capacidade atual. Por outro lado, uma sociedade sem balizas éticas tem poucas chances de estabelecer uma relação de paz entre seus componentes. Encontrar o ponto de equilíbrio é o grande desafio para o homem, na construção da desejada Nova Era.

Auro Barreiros – 20/3/2011