sábado, 14 de março de 2020

POR UMA PÁSCOA MAIS FELIZ




A Páscoa, para o mundo cristão, é a síntese de toda a mensagem evangélica; é o resumo da fé. Enquanto o nascimento de Jesus representa a esperança de libertação na figura do Deus menino, a Páscoa é a certificação da liberdade espiritual, sacramentada pela ressurreição. É a vitória contra o maior temor do homem, o renascimento para a vida gloriosa por diversas vezes relembrada no texto bíblico. É um dos mais significativos símbolos de renovação.

Para o místico, símbolos constituem a linguagem ideal da alma. As tribulações da vida terrena representadas pelo braço horizontal da cruz, são aspectos de uma condição passiva;  todo homem partilha o seu quinhão de sofrimento, seja de ordem física ou moral, uma vez que a carne é perecível.  Não há como fugir da realidade constatada por Sidarta Gautama, o Buda: tudo o que tem começo tem fim. Isso, inclusive, é a régua que iguala os seres humanos perante as leis naturais.
No entanto, o homem não se resume ao corpo. Seja qual for o termo empregado ou a teoria adotada, é certo que expressamos outra fase da vida que se reflete na consciência, no pensamento e no psiquismo. Esta manifestação é de natureza intangível, ainda que dependa dos órgãos físicos. Desta fase imponderável, que poderia ser chamada de alma, brota o impulso em direção ao que a ela se assemelha, ou, por outra, aquilo que a alma presente ser a sua fonte original; a espiritualidade. Como que sujeita à poderosa força gravitacional de um gigantesco sol, a alma é atraída para o alto, para níveis mais refinados e abrangentes de percepção. É o braço vertical da cruz, a ascensão da consciência ao plano divino.

Mas qualquer subida exige esforço. Quem escala uma montanha costuma levar consigo apenas o essencial à sua sobrevivência, ainda que isso implique na renúncia ao conforto. A cada lance da subida, o alpinista revê sua bagagem e decide abrir mão de algum objeto cujo peso, somado às dificuldades causadas pela rarefação da atmosfera, o faça despender mais energia do que o necessário.  Da mesma forma, a espiritualização exige uma periódica e minuciosa reavaliação da bagagem psíquica que o homem acumula na experiência mundana. Essa reavaliação pode não ser prazerosa, devido ao apego que costumamos ter às nossas características de personalidade. Pode acontecer que a opinião que temos a nosso próprio respeito sofra alguns golpes de realidade e descubramos que o que julgávamos ser uma virtude é apenas uma forma disfarçada de vaidade. Pode ser que algumas atitudes que nos pareceram corretas no passado ressurjam na memória como lamentáveis equívocos.  Pode ser que essa revisão da vida nos cause algum sofrimento moral.

São João da Cruz, grande místico e religioso espanhol (1542 – 1591) definiu esse tipo de sofrimento como “a noite negra da alma”, o período de purgação moral que antecede o renascimento espiritual, misticamente denominado “o Áureo Alvorecer”.  Após a noite de convívio com as próprias trevas, remexendo os escaninhos de sua própria consciência, confrontando a si mesmo e questionando seus valores, na solidão do recolhimento interior, o homem morre para si mesmo em sua anterior condição, para renascer purificado e pronto para mais uma jornada rumo à verdadeira espiritualização.  Seria, na visão mística, a “Páscoa nossa de cada dia”, no cumprimento da lei de evolução.

Que o símbolo maior da Páscoa, a renovação do Amor no coração, seja compreendido e concretizado por toda a humanidade; que os indesejáveis pesos da ambição, da arrogância, da intolerância e do ódio sejam arremessados ao abismo, para que o mundo se eleve um pouco mais em direção a Deus.


Auro Barreiros


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