quarta-feira, 24 de abril de 2013

A COMPAIXÃO E O MISTICISMO



É raro o dia em que os meios de comunicação não mostrem o sofrimento humano em suas cruéis e variadas nuances.  Tragédias urbanas, acidentes, episódios de violência, afiadas lâminas que decepam laços de amor longamente acalentados.  A grande ironia está justamente na forma como a informação é trazida. Os telejornais, recheados de dramas, invadem a tela entre um programa de humor e uma novela, ou uma partida de futebol.  Tão logo terminam, a atenção do telespectador é desviada para as amenidades da ficção ou o riso fácil, amortecendo o impacto das notícias deprimentes.
E assim, dia após dia, o ser humano vai perdendo a sensibilidade à dor alheia.

Para o místico, esse é um dos maiores prejuízos que a modernidade pode infligir ao homem.  Amortecer a compaixão é desconhecer um dos princípios fundamentais da concepção mística de Deus: a alma humana é parte indissociável da Alma do Cosmo, o que faz com que todo ser esteja ligado a outro, numa cadeia infinita. Pelos limites da individualidade, tendemos a sentir menos o que não nos afete diretamente. Talvez por isso a fome que mata silenciosamente milhões de pessoas em certas regiões do mundo não tire o sono do cidadão comum, ainda que este professe valores religiosos e morais elevados. Talvez o desfile de ruínas humanas produzidas pelas drogas, hoje em escala epidêmica, não abale as estruturas emocionais de quem não convive com o problema no próprio lar. Para quem vive num país como o nosso, a ideia de não se ter a liberdade de opinião, crença ou mesmo o elementar direito de ir e vir é algo que soa meio surreal. Mas toda essa miséria moral existe e afeta milhões de nossos semelhantes em todo o planeta; muitas vezes, bem mais próxima de nós do que imaginamos, podendo estar do outro lado da rua ou na casa do vizinho.

A mente racional aponta razões políticas, a corrupção e o descaso das autoridades constituídas como causa dos problemas sociais. Cobra responsabilidades e cria fórmulas que, teóricamente, seriam capazes de solucionar as crises. Mas e experiência demonstra que qualquer tentativa de minorar o sofrimento humano passa primeiramente pela porta da compaixão.

A compaixão é definida como um desejo emocional de aliviar o sofrimento de outrem. É um impulso interior, provavelmente inspirado pelo estreito parentesco que une todas as almas à Grande Alma do mundo.  O ser compassivo sente, de alguma forma, a dor do outro; não físicamente, mas psíquicamente, de um jeito para o qual não há palavras suficientes. É, porém, uma percepção intensa o bastante para dar origem a benfeitores como Gandhi, Madre Tereza de Calcutá, e outros milhares de heróis anônimos, capazes de devotar tempo, inteligência, trabalho e vida ao esforço de reduzir as mazelas que atormentam a humanidade.

 Certamente um bom exercício para estimular a compaixão é desligar a tevê logo após uma notícia trágica e procurar perceber o que se passa em nosso interior. Como o coração reage à imagens de pessoas sofrendo?  Estabelecemos alguma empatia? Temos condição de imaginar-nos em situação idêntica à das vítimas de qualquer tragédia? Somos capazes de formular pensamentos e sentimentos de amor destinados às pessoas que sofrem? Lembramo-nos de rogar a Deus, conforme nossa concepção, pelo alívio e consolo dos desafortunados?

Esta é uma forma mística de compreender e exercitar a compaixão. Com a repetição, é possível aprimorar os sentimentos e encontrar maneiras de ser compassivo e colaborar para que a humanidade seja mais feliz.  


Auro Barreiros

Janeiro, 2012

terça-feira, 2 de abril de 2013

VIDA, NATUREZA E HUMANIDADE



Neste mês de março aconteceu o Dia Mundial da Água. Resultado da preocupação do mundo científico em relação a esse elemento vital, naquele dia houve discussões, palestras, propostas e cobranças de diversos segmentos da sociedade da maior parte dos países. Ainda que, mesmo numa questão que envolve a sobrevivência da espécie humana, os interesses políticos dividam opiniões, parece que há algum consenso em que a preservação da água é responsabilidade de todos, além-fronteiras. Há o temor de que essa consciência tenha chegado tarde e que os danos provocados pela poluição tenham comprometido definitivamente grande parte dos mananciais, o que torna ainda mais dramática a situação.

O paradoxo é que, desde o princípio, o homem depende da água; para a formação de seu corpo, para a manutenção de suas atividades fisiológicas, para a germinação e crescimento das plantas que o alimentam. Mais ainda, em função de suas necessidades básicas, foi às margens de rios e mares que o ser humano se estabeleceu e civilizou-se. Aprendeu a navegar e expandiu fronteiras comerciais e culturais, responsáveis por grande parte da evolução da humanidade. No entanto, alguns milênios transcorreram antes que essa relação entre água, natureza e vida trouxesse a compreensão da necessidade do equilíbrio e da preservação.

Natureza e vida se entrelaçam, de forma tão íntima que não se toca em uma sem abalar a outra. O místico entende que tudo no universo se encadeia numa ciranda de causas e conseqüências. As leis dessa mesma natureza atuam nos elementos, destruindo e reconstruindo as formas e manifestações, no eterno vir-a-ser vislumbrado por Parmênides. Então, como conciliar as necessidades humanas com a preservação da ordem natural das coisas?

A Ordem Rosacruz, em seu 4º Manifesto – Positio Fraternitatis, declara que ” (...) é evidente que a sobrevivência da espécie humana depende de sua aptidão para respeitar os equilíbrios naturais. O desenvolvimento da Civilização gerou muitos perigos decorrentes de manipulações biológicas relativas à alimentação, à utilização em grande escala de agentes poluentes, à acumulação mal controlada de resíduos nucleares, para citarmos apenas alguns riscos principais. A proteção da Natureza e, portanto, a salvaguarda da Humanidade, tornou-se uma questão de cidadania, ao passo que antes só dizia respeito aos especialistas. Ademais, ela se impõe doravante no plano mundial. Isso é ainda mais importante porque o próprio conceito de Natureza mudou e porque o Ser Humano está se sentindo parte integrante dela; não se pode mais falar, hoje em dia, em Natureza em si mesma. A Natureza há de ser, portanto, aquilo que o Ser Humano queira que ela seja”.

Ou seja, a engenhosidade da mente humana, que tanto já realizou no campo da ciência, deve encontrar formas equilibradas de se alimentar, se vestir, se transportar e habitar, que não extrapolem o poder de regeneração do ambiente. Em conseqüência, o homem precisa rever seus conceitos de necessidade, descartando os usos e consumos que nada acrescentem à sua existência, seja em relação à sobrevivência ou à satisfação de seus ideais de conforto, desfazendo-se das necessidades criadas pelas imposições dos costumes e da mídia.

Lembremo-nos que a natureza já é atualmente o que as gerações anteriores quiseram que fosse. Reflitamos.


(Os conceitos do presente texto são da responsabilidade de seu autor, não representando necessariamente a posição oficial da AMORC, exceto onde isso esteja explicitamente declarado.)

Para saber mais a respeito da Ordem Rosacruz – AMORC, acesse o site oficial: www.amorc.org.br ou procure um Organismo Afiliado à AMORC (pronaos, capítulo ou loja) em sua cidade.
O Pronaos Rosacruz Ji-Paraná – AMORC é localizado na Rua Miguel Ludke, 1.136 – Jardim Aurélio Bernardi II.

Auro Barreiros é redator publicitário e atual Mestre do Pronaos Rosacruz Ji-Paraná – AMORC.

quarta-feira, 6 de março de 2013

A mulher e o mundo na visão mística


A passagem do Dia Internacional da Mulher dá ensejo a algumas reflexões a respeito da discriminação de gênero.  Desde que o mundo é mundo, pra usar uma expressão bem antiga, a maior parte das culturas conhecidas relega socialmente o sexo feminino a um patamar inferior.  No passado não muito distante, essa discriminação era explícita, pois não havia força de contestação ao que se estabeleceu sob diversos pretextos, inclusive de ordem religiosa. A própria mulher se submetia ao cerceamento de sua expressão, pois acreditava na justiça de tal costume.

A despeito das limitações, a antiguidade conheceu mulheres notáveis que, com genialidade, abnegação e coragem escreveram algumas das mais belas e emocionantes páginas da História; Hatshephsut, filha de Thuthmose I, governou o Egito por volta do século XV A.C. Segundo os historiadores, seu reinado foi de paz e prosperidade. Cleópatra, filha do rei Ptolomeu, demonstrou habilidade política, ousadia e sagacidade na defesa dos interesses de sua nação. Ao contrário do que sugere a ficção, não era exatamente uma beldade, mas possuía sólida cultura e aguda inteligência.  Joana D’Arc, Madre Tereza de Calcutá, Marie Curie, Edith Piaf... A lista é longa, porém incompleta, por faltarem as heroínas anônimas, mães, esposas, educadoras, artistas, operárias, cientistas, guerreiras do cotidiano de todos os tempos. 

“Os tempos mudaram”, alguém diria. “Hoje há igualdade entre os sexos”. Numa visão superficial, especialmente se limitada ao que expõe a mídia, pode-se até concordar que não há mais discriminação da mulher. Mas, quando lembramos que, nos países ocidentais, o direito do voto é uma conquista recente; que, graças à internet, a prostituição atingiu níveis nunca dantes imaginados; que em diversos países (inclusive o nosso) há uma luta inglória contra o abuso sexual de crianças e adolescentes, predominantemente do sexo feminino; que, em pleno século vinte e um, há lugares em que uma mulher é apedrejada por infidelidade, a ilusão se desfaz e percebemos que ainda há muito que ser corretamente compreendido para que haja a verdadeira igualdade entre os sexos.

Para os Rosacruzes, homem e mulher são expressões de Deus, animadas pela mesma essência e dotadas dos mesmos atributos básicos: inteligência, sensibilidade, raciocínio, criatividade. A diferença morfológica e as funções biológicas não constituem condição de superioridade ou inferioridade; antes, complementam-se física e espiritualmente.  Não há qualquer justificativa natural, social ou religiosa para diminuir a amplitude do direito e da liberdade da mulher. Mental e espiritualmente, homem e mulher podem atingir os mesmos graus de evolução, desde que haja equanimidade no ambiente social em que vivam. Este, portanto, é um dos objetivos da cultura Rosacruz; a construção de uma sociedade justa e fraterna.

Auro Barreiros (artigo publicado no jornal Folha de Rondônia em março de 2011)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A FORÇA DO HÁBITO E OS ESTADOS DEPRESSIVOS



Quase sempre, a manifestação física da depressão é o resultado de um processo mais ou menos longo de incubação mental/emocional.  Aliás, há pesquisadores que defendem a tese de uma causa semelhante para outras doenças, como certos tipos de câncer. Seria a somatização de uma desordem interna. A fase subjetiva da mente, sem um controle efetivo da vontade, vitaliza e perpetua imagens e impressões resultantes de conflitos, concedendo a isso uma espécie de “realidade virtual”.  Ao atingir o ponto crítico, em que os quadros e sensações internas ganharam preponderância no mundo interior do indivíduo, começam as reações em nível fisiológico, alterando a harmonia original do organismo.

Para a solução vir da própria mente, algumas etapas precisam ser vencidas. Dependendo do grau de manifestação dos sintomas, o auxílio externo é imprescindível. O paciente pode até compreender intelectualmente que deve mudar a atitude mental, mas o intelecto não costuma prevalecer sobre o emocional. E o embrião da depressão é básicamente emocional.

Emoções e hábitos estão intimamente relacionados, seja para a manutenção de uma rotina que dá segurança, seja para a repetição de estados prazerosos; daí se dizer que o homem é um ser de hábitos. E é justamente a manutenção de um hábito que propicia o ambiente para os embriões depressivos. Este hábito é o devaneio, uma reação inconsciente aos desejos não-realizados, às ofensas não-revidadas, ao que poderia ser mas não foi. No devaneio as imagens e impressões tentam compensar, de alguma forma, as frustrações; como num teatro, os personagens encenam o que traria a satisfação, o resgate do orgulho ferido. Mas a peça não tem final feliz; no confronto com a realidade exterior, o ser humano, espectador de si mesmo, constata desagradavelmente que a causa do mal-estar persiste. Esta consciência é o princípio do sofrimento.

Se somos seres de hábitos, é possível alterar a programação emocional através da mudança gradual de certos hábitos, bem como da adição de outros. É evidente que, se essas mudanças forem ostensivamente impostas, o resultado será nulo ou mesmo nocivo, por ferir o que cada um entende como liberdade individual. Mas, se a proposição de mudança acompanhar as caracteristicas de cada personalidade, é possível realizar-se um programa de rearmonização entre corpo, mente e emoções. A inclusão de atividades relacionadas ao belo, como a prática de uma determinada arte, pode abrir a porta para reajustes mais profundos. Induzir a reflexão sobre questões cruciais da vida facilita o auto-exame, já que, para o deprimido, a sua própria situação é crucial. Estimular a atividade física e o convívio social oferece um reforço à reconquista da auto-estima. Como bem o disse Confúcio, “Semeias um pensamento, colhes um ato. Semeias um ato, colhes um hábito. Semeias um hábito, colhes um destino”.
Dessa base em diante é que pode ser estabelecida uma compreensão de estados de consciência, para que se faça uma diferenciação entre “consciência perturbada” e “consciência tranquila”.

Jung foi muito feliz em seus estudos sobre Alquimia e símbolos arquétipos. Ele entendia que há um grande descompasso entre o desenvolvimento interior e exterior. Falando sobre símbolos e sua importância na compreensão da mente humana, “...No entanto, quando buscamos compreender esse fenômeno do interior, isto é, tomando por base a psique, partimos de um ponto central para o qual convergem muitas linhas, por mais afastadas que estejam umas das outras no mundo exterior. É aí que entrevemos essa psique humana subjacente que, ao contrário da consciência, transforma-se somente ao longo dos séculos, e em que uma verdade de dois mil anos é ainda a verdade de hoje, viva e ativa”.  

Ou seja, além das motivações atuais, o ser humano carrega consigo a herança ancestral de impressões profundamente arraigadas desde os primórdios da espécie. Compreender essa herança pode nos dar uma ideia mais concreta de estados de consciência e ser uma chave para a reorientação dos comportamentos emocionais.


Auro Barreiros

Janeiro de 2008

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

AS DUVIDOSAS RAZÕES DA GUERRA




Embora bem menos aparelhado para o combate do que a grande maioria dos animais, o homem é, talvez, o mais belicoso de todos. Desde a idade da Pedra, guerrear, para ele, é tão ou mais importante que viver. Lutava-se por comida, por cavernas, por fêmeas (estas, desde então, já costumavam ser o centro de enormes conflitos). No entanto, é até compreensível que, “num mundo de feras e de presas”, a sobrevivência tivesse por preço a violência.

Porém, à medida que o intelecto expandia suas fronteiras, as motivações da guerra adquiriam novas nuances. Já não se combatia apenas por si, mas pela prole ou pela tribo. Não eram defendidas apenas a comida e as cavernas, mas uma embrionária unidade social.

E assim foi durante muito tempo na História da evolução humana. Até que, finalmente organizados como nações, habitando cidades e ostentando admirável articulação de idéias, os humanos (nós) começaram a fazer da guerra uma atividade emblemática. O guerreiro passou a ser não apenas o defensor dos interesses pátrios, mas o ícone da juventude e orgulho da sociedade, tanto quanto sua espada fosse capaz de fazer estragos. Mas, como os inimigos também cresciam em número e truculência, o bom-senso criou a política, como ardilosa mediadora, capaz de estabelecer pontes entre os inconciliáveis.

Só que nem mesmo a política foi suficiente para aplacar a sanha guerreira da humanidade. Assim, muitas vezes em meio a mais modorrenta paz, um repentino tinir de ferros anunciava o retorno daquela que nunca havia se ausentado. Para que isso acontecesse era imprescindível um motivo justo. E os motivos mais estapafúrdios, infantis ou hipócritas deram ensejo às mais horrendas batalhas e carnificinas registradas pela História.

Nos tempos bíblicos, por exemplo, uma simples desobediência a alguma lei religiosa motivava verdadeiros massacres, como os que teria promovido Moisés durante a travessia do deserto, conduzindo o povo hebreu. Por algumas inocentes noites de amor entre uns poucos casais de tribos diferentes, mais de vinte mil foram passados a fio de espada (Números, 25, 1 a 9). 

Às guerras de conquista, destinadas a ampliar fronteiras, sucederam as guerras religiosas. Estas tinham razões de ordem subjetiva; meu deus é maior ou mais verdadeiro que o deus do meu vizinho. 

A Idade Média, também chamada Idade das Trevas, foi grandemente prolífica em guerras santas. A primeira a ganhar notoriedade foi a repressão aos Cátaros, simplesmente por não interpretarem as Doutrinas cristãs da forma prescrita pela Igreja Católica da época. Não concordar, naquele tempo, equivalia a ser inimigo, e os Cátaros foram sucessivamente massacrados por exércitos organizados pela coroa e pelo clero, até seu completo extermínio. Acredita-se que mais de 60.000 morreram apenas na primeira investida, contra a aldeia de Bèzier, norte da França. Posteriormente, após a Reforma, novos conflitos entre católicos e protestantes marcaram indelevelmente a memória dos povos europeus. E tudo porque Lutero não concordava com a venda de indulgências e outras inexplicáveis atividades remuneradas em nome da fé.

Os tronos, ah, os tronos!.. O insopitável desejo de assentar-se em um deles já rendeu pelejas memoráveis, desde os tempos do Império Romano ou certamente desde muito antes. Parentes que assassinavam parentes, filhos que envenenavam pais, sobrinhos que apunhalavam tios, etc, etc...

E a era moderna, plena de conhecimento e civilização, nos brinda com um desequilibrado que cisma em purificar a espécie humana. Como? Simples. Se não for “ariano”, mate-o. Com essa lógica milhões de judeus foram para as câmaras de gás, sem falar nos milhares de combatentes de diversas nações que se envolveram na Segunda Grande Guerra e pereceram nos campos de batalha.

Imaginem a situação: uma cidade milenar, algumas vezes invadida e vilipendiada, cuja história se confunda com a saga de três das maiores correntes religiosas do planeta. Essa é Jerusalém, sagrada para judeus, que ali tiveram seus reis e profetas; para cristãos, que a têm como palco dos acontecimentos mais significativos da vida de seu inspirador; e para muçulmanos, que também afirmam que por ali andou o seu profeta maior. Nada de mais, se entre todos reinasse a sadia tolerância. Mas a chamada Cidade Santa é, desde longa data, o cenário de sangrentas provas de fanatismo, oriundas de todas as facções, tanto e de tal forma que, provavelmente, ninguém por lá saberia explicar com clareza o motivo de tão acirrado ódio.

E ainda tem o petróleo. O combustível da modernidade, se por um lado veio facilitar a vida e trazer algum conforto, por outro lado é uma das mais freqüentes causas de vergonhosas invasões sob pretextos cabulosos e não-provados. Vide a recente “guerra” no Iraque, patranha capitalista ainda entalada na garganta de muita gente.

Mas a pior de todas as guerras é aquela que se faz para girar os estoques de armamentos. Afinal, o comércio depende do consumo e, para haver consumo é preciso que haja procura. E se a procura não acontece naturalmente, os “senhores da guerra” dão uma forcinha, fazendo uma intriga aqui, derrubando um governo ali, assassinando um líder político acolá e fomentando o patriotismo cego das massas. É a lei do mercado.

A vida humana? Apenas um detalhe.



Auro Barreiros
10/8/2009


sábado, 12 de janeiro de 2013

A HERANÇA IMPERECÍVEL





NUMA ALDEIA encravada no sopé de alta montanha, à entrada de verdejante vale, um jovem completava suas dezoito primaveras. Dono de rara lucidez, pressentia uma razão mais alta para a vida; impulsos interiores de busca a uma meta indefinível, a insatisfação resultante da faina rotineira, vez por outra assaltavam seu coração.

Nesse dia, decidiu-se. Iria sair do vale, em busca de grandes cidades, onde, provavelmente, encontraria o campo adequado à expansão do espírito. Sua forte personalidade por certo o ajudaria a vencer os percalços do caminho.
Quando ocorreu-lhe este pensamento, já às portas de saída de sua aldeia natal, o jovem estacou. “Personalidade”, repetiu ele; o que é isso, realmente?”
Inseguro, voltou à casa e dirigiu-se ao genitor. “Pai, antes de partir, peço que me explique o que é personalidade.”
O velho contemplou amorosamente o filho e disse-lhe:

“Segue pela estrada um lavrador em sua carroça, carregada com o produto de meses de trabalho duro. Lutador incansável, porém um tanto imprevidente, acondicionou mal a carga de cereais que pretende levar ao mercado. De momento a momento, um pouco de trigo cai na estrada.

A alguns passos atrás, outro homem segue, abaixando-se aqui e ali para apanhar o trigo que cai do veículo à frente. Este não planta nem colhe, só junta o que o descuidado perde.

À sombra de uma árvore, outro personagem contempla o prejuízo do trabalhador e a atividade do oportunista. Este também não planta nem colhe: nem mesmo junta o que sobra. Limita-se a condenar o aproveitador ao mesmo tempo em que critica o trabalhador, enquanto se rói por dentro, com inveja de ambos!”

Ante o olhar perplexo e interrogativo do moço, esclarece o idoso pai:

A personalidade é como um cristal de inúmeras facetas, das quais lhe apresentei  três, que são matrizes de todas as outras: a Virtude, o Egoísmo e a Mediocridade. É preciso compreendê-las, para que o homem não se perca pelo fanatismo ou pela inércia”.

Quem almeja a Virtude e teima em negar a existência da desonestidade, mesmo tendo uma vida produtiva, pode amargar a desventura de ver-se ludibriado pelos oportunistas. E os aproveitadores costumam ser surpreendidos pela privação, caso não aprendam a garantir o próprio sustento.

Já o indolente muito lucraria se procurasse buscar para si a felicidade que tanto inveja nos outros!

Portanto, se quiser formar uma personalidade útil ao seu progresso, tempere a virtude com a sagacidade, para não deitar pérolas aos porcos! Adestre-se na percepção para usufruir digna e moderadamente as benesses que a Providência oferece ao homem.

Procure crescer no discernimento, adoçando a vida com a tolerância e a compreensão para que, mesmo reconhecendo no próximo a perfídia e astúcia, proteja sua paz abstendo-se de julgar!
.......
Após longo silêncio, o bondoso pai estende a mão e aponta o céu, depois a estrada e despede-se do filho:
“Agora, vá e faça seu caminho, trace seu destino, escreva sua história; o mundo é seu!”

24/07/86                                                                                                            Auro

A PRECE



Passei diante de uma igreja e vi dezenas de pessoas orando.Então, lembrei-me da infância, quando minha mãe me ensinava a repetir com ela as palavras das tradicionais orações que são feitas antes de dormir.
E eu repetia, solenemente, rogativas cujo significado desconhecia, dirigindo minhas preces a um Deus sobre o qual tinha minúsculo entendimento. Era o Pai do Céu, uma réplica melhorada do pai terrestre!

Com o tempo, ampliaram-se os meus conceitos e, como me disseram que a prece é uma espécie de ligação telefônica com Deus, eu tinha agora minhas próprias orações, nas quais pedia tudo o que julgava importante para minha satisfação pessoal: vida longa a meus pais, muita saúde, sucesso no trabalho e nos estudos, vitórias nas competições e coisas assim.

Um pouco mais de tempo, observação e experiência e comecei a notar que a saúde que pedia a Deus tem tudo a ver com a forma com que cuidar de meu corpo e conduzir minha vida, de modo que, se orar todos os dias e viver como um suicida, empanturrando-me de vícios e abusos, minhas preces de nada valem!
Percebi que o sucesso que desejo depende, em grande parte, da dedicação e do preparo que dão a competência exigida para bom desempenho nos encargos de maior responsabilidade. Se cruzar os braços, oração alguma me livrará da miséria.
Por outro lado, se buscar o sucesso como resultado de especulações sobre o direito e a liberdade do próximo, em detrimento da justiça e da lei, todos os livros sagrados do mundo não me trarão um segundo sequer de paz na consciência!

Diante de tão graves descobertas, compreendi que a prece é, antes de tudo, uma exposição sincera e comprometedora que o ser humano faz de si para consigo. Nessa exposição se evidenciam as limitações do entendimento e a certeza de que, na maioria das vezes, não sabemos o que queremos e, freqüentemente, pedimos o que não precisamos ou desejamos.

Você duvida?

Então examinemos detalhadamente a principal oração cristã, o “Pai Nosso”. Referindo-se a Deus, ela proclama: “Seja feita a tua vontade, assim na Terra como nos Céus!” É evidente que, se o Criador é supremo em sabedoria, bondade e Justiça, a vontade Dele é o que de mais justo e perfeito se possa esperar para nossa felicidade. Por isso, oramos, comovidos: “Seja feita a Tua vontade!..”
No entanto, diante da inevitável morte, bem poucos os que louvam a sabedoria divina e reconhecem o termo da existência como cumprimento da vontade de Deus, tanto quanto a própria vida.
A braços com o prejuízo, raríssimos os que ponderam sobre a justiça do Criador, que dá a cada um segundo suas obras, responsabilizando-nos por nossos atos e fazendo com que ganhemos na carne a experiência que engrandece moralmente. O procedimento mais comum é buscar culpados, defender-se com o argumento da fatalidade, apoiar-se em arcaicos dogmas de predestinação e, por último, maldizer a sorte, murmurando: ”Porque logo comigo, Deus?” Depois, perambular em busca de socorro, adentrando-se na primeira porta onde se prometa salvação gratuita e quitação dos débitos. Tudo isso é apenas uma vã tentativa de calar a voz interior que nos declara merecedores dos espinhos que colhemos, por havê-los plantado!

Pensemos em dois fiéis, ajoelhados em prece, dentro do mesmo templo. Um é viajante e roga que pare de chover para que possa continuar sua viagem; outro é lavrador e agradece a Deus a chuva copiosa que lhe garantirá uma ótima colheita. Quem será atendido? Não terá a chuva objetivos mais abrangentes que os meros interesses pessoais dos fervorosos peticionários?

Dor e prazer, tristeza e alegria, treva e luz, vida e morte são faces da mesma moeda, diferentes cenários em que representamos nosso mesmo drama de milênios. A maldição de ontem pode ser a bênção de hoje, dependendo da ocasião e da necessidade. Fome de saber, ânsia de liberdade, perseguição à felicidade, são caminhos que se reúnem em um só ponto focal: Deus!

E chegamos a um novo impasse: até onde a concepção de cada um está em acordo com a verdadeira natureza desse Deus de que tanto falamos? Há quem imagine o Criador como alguém de humor instável, ora de extrema benevolência, ora iracundo e implacável como os furacões, devendo ser bajulado com exaltados louvores e testemunhos da maior humildade para, quem sabe, dignar-se a atender a alguma reivindicação. Outros o têm como um avô carinhoso, daqueles que levam os netinhos ao parque, contam histórias e perdoam todas as suas travessuras, defendendo-os das palmadas disciplinares. Outros ainda o definem como parceiro, sempre pronto a “dar uma mãozinha” na solução de qualquer problema e, naturalmente, de uma solidariedade incondicional, capaz de acobertar atos indignos e intenções duvidosas, por uma fidelidade extrema a esse relacionamento amistoso. Confiados nessa parceria, aventuram-se em certas empreitadas perigosas, convencidos de que, estejam certos ou errados diante da ética e da moral, seu Deus lhes garantirá a vitória, mesmo que essa vitória traga algum prejuízo a outrem.

E não nos esqueçamos dos que concebem Deus como um severo juiz, cuja maior ocupação é fiscalizar corações e consciências, com vistas à aplicação de dolorosas punições aos transgressores de sua Lei. “Deus é justo”, exclamam, principalmente quando se sentem ofendidos ou prejudicados em seus interesses. Intimamente, esperam que Deus derrame sua “justiça” sobre os desafetos, não importando de que lado esteja a razão. E quando isso não acontece de imediato, resignam-se com a afirmativa de que “a Justiça Divina tarda mais não falha”.

Consideremos ainda aqueles que fazem ideia de um Deus no estilo “abracadabra”, pra quem tudo é possível. Estribados nessa concepção, esperam que Deus elimine, miraculosamente, as conseqüências de atos impensados, crentes de que sua intensa fé seja o único requisito para a obtenção dos favores divinos.

Naturalmente, estas descrições não abrangem todas as concepções de Deus, mas costumam ser as mais usuais entre as pessoas comuns, não necessariamente dedicadas ao estudo filosófico ou teológico: donas de casa, pais de família, jovens e adultos, empenhados na luta pela sobrevivência, na qual Deus representa o porto seguro, o refúgio das tormentas e o consolo nas aflições.

O esforço para sobreviver é por vezes dramático; para muita gente, o pão de cada dia é fruto de uma verdadeira odisséia, que lhes cobra pesados tributos de energias físicas, mentais e morais. Momentaneamente incapaz de vislumbrar melhores dias em seu futuro, o ser humano se enreda nas malhas da autocomiseração que o reduz a mero joguete do implacável e caprichoso Destino. Debilitado em sua dignidade e carente de um entendimento mais íntimo das leis naturais, reassume de forma inconsciente o comportamento infantil de chorar para cobrar atenção dos mais velhos. Isso o leva a fazer de suas preces uma longa e disfarçada tentativa de comover Deus, para que Ele se compadeça e intervenha no suposto Destino, pondo fim aos padecimentos do peticionário. Tais orações, normalmente eivadas de chavões nos quais se minimizam as qualidades e importância do ser humano ao mesmo tempo em que se exaltam as virtudes Divinas, tem o dom de emocionar tanto a quem as profere quanto a quem as ouve. Mas terão alguma eficácia em relação ao propósito pelo qual são feitas?

Façamos uma breve reflexão a respeito da natureza e atributos daquele Ser a quem se convencionou chamar Deus. Toda a concepção sobre Sua natureza íntima esbarra nos limites da compreensão humana, incapaz de imaginar alguma manifestação sem uma causa anterior. Assim, pretendemos formar algum conceito assimilável sobre Deus a partir dos aparentes efeitos dessa Causa Primeira, do que resulta a proposição dos atributos pelos quais Deus opera no Universo, na Natureza e no Homem. Desde as crenças teleológicas e anímicas até o monoteísmo antropomórfico, passando pelos panteões em que centenas de divindades e semi-deuses disputavam espaço e fidelidade, chegando às modernas concepções que conferem a Deus a condição de Energia Cósmica Inteligente, um caminho de milênios vem sendo percorrido pela mente humana. Graças a essa longa jornada reflexiva, chegou-se à conclusão de que os principais atributos do Ser Supremo são a Onipotência, a Onipresença e a Onisciência. 
Outra conclusão a que chegaram os grandes pensadores religiosos e místicos é de que o Universo e a Natureza revelam, em seu funcionamento e estrutura, certas condições de manifestação que podem ser entendidas como leis; portanto, o Criador opera através desse conjunto de condições, o que permite uma uniformidade nas manifestações de Sua Obra. Considerando que esse conjunto de leis é fruto da Onisciência, é sensato admitirmos que se trata da forma ideal e perfeita com a qual a Onipotência  administra a criação. E nós, os seres humanos, somos parte dessa criação e, logicamente, sujeitos às mesmas leis que o restante do Universo. 

Assim sendo, soa um tanto incoerente a presunção de que Deus, comovido pelo tom choroso de certas rogativas, possa revogar sua Justiça em favor de uma pequena parte de Sua criação enquanto governa o restante sob uma disciplina inflexível.

Auro, 1989