Passei diante de uma igreja e vi dezenas de pessoas
orando.Então, lembrei-me da infância, quando minha mãe me ensinava a repetir
com ela as palavras das tradicionais orações que são feitas antes de dormir.
E eu repetia, solenemente, rogativas cujo significado desconhecia,
dirigindo minhas preces a um Deus sobre o qual tinha minúsculo entendimento.
Era o Pai do Céu, uma réplica melhorada do pai terrestre!
Com o tempo,
ampliaram-se os meus conceitos e, como me disseram que a prece é uma espécie de
ligação telefônica com Deus, eu tinha agora minhas próprias orações, nas quais
pedia tudo o que julgava importante para minha satisfação pessoal: vida longa a
meus pais, muita saúde, sucesso no trabalho e nos estudos, vitórias nas
competições e coisas assim.
Um pouco mais
de tempo, observação e experiência e comecei a notar que a saúde que pedia a
Deus tem tudo a ver com a forma com que cuidar de meu corpo e conduzir minha
vida, de modo que, se orar todos os dias e viver como um suicida,
empanturrando-me de vícios e abusos, minhas preces de nada valem!
Percebi que o
sucesso que desejo depende, em grande parte, da dedicação e do preparo que dão
a competência exigida para bom desempenho nos encargos de maior
responsabilidade. Se cruzar os braços, oração alguma me livrará da miséria.
Por outro
lado, se buscar o sucesso como resultado de especulações sobre o direito e a
liberdade do próximo, em detrimento da justiça e da lei, todos os livros
sagrados do mundo não me trarão um segundo sequer de paz na consciência!
Diante de tão
graves descobertas, compreendi que a prece é, antes de tudo, uma exposição
sincera e comprometedora que o ser humano faz de si para consigo. Nessa
exposição se evidenciam as limitações do entendimento e a certeza de que, na
maioria das vezes, não sabemos o que queremos e, freqüentemente, pedimos o que
não precisamos ou desejamos.
Você duvida?
Então
examinemos detalhadamente a principal oração cristã, o “Pai Nosso”.
Referindo-se a Deus, ela proclama: “Seja feita a tua vontade, assim na Terra
como nos Céus!” É evidente que, se o Criador é supremo em sabedoria, bondade e
Justiça, a vontade Dele é o que de mais justo e perfeito se possa esperar para
nossa felicidade. Por isso, oramos, comovidos: “Seja feita a Tua vontade!..”
No entanto,
diante da inevitável morte, bem poucos os que louvam a sabedoria divina e
reconhecem o termo da existência como cumprimento da vontade de Deus, tanto
quanto a própria vida.
A braços com
o prejuízo, raríssimos os que ponderam sobre a justiça do Criador, que dá a
cada um segundo suas obras, responsabilizando-nos por nossos atos e fazendo com
que ganhemos na carne a experiência que engrandece moralmente. O procedimento
mais comum é buscar culpados, defender-se com o argumento da fatalidade,
apoiar-se em arcaicos dogmas de predestinação e, por último, maldizer a sorte,
murmurando: ”Porque logo comigo, Deus?” Depois, perambular em busca de socorro,
adentrando-se na primeira porta onde se prometa salvação gratuita e quitação
dos débitos. Tudo isso é apenas uma vã tentativa de calar a voz interior que
nos declara merecedores dos espinhos que colhemos, por havê-los plantado!
Pensemos em
dois fiéis, ajoelhados em prece, dentro do mesmo templo. Um é viajante e roga
que pare de chover para que possa continuar sua viagem; outro é lavrador e
agradece a Deus a chuva copiosa que lhe garantirá uma ótima colheita. Quem será
atendido? Não terá a chuva objetivos mais abrangentes que os meros interesses
pessoais dos fervorosos peticionários?
Dor e prazer,
tristeza e alegria, treva e luz, vida e morte são faces da mesma moeda,
diferentes cenários em que representamos nosso mesmo drama de milênios. A
maldição de ontem pode ser a bênção de hoje, dependendo da ocasião e da
necessidade. Fome de saber, ânsia de liberdade, perseguição à felicidade, são
caminhos que se reúnem em um só ponto focal: Deus!
E chegamos a
um novo impasse: até onde a concepção de cada um está em acordo com a
verdadeira natureza desse Deus de que tanto falamos? Há quem imagine o Criador
como alguém de humor instável, ora de extrema benevolência, ora iracundo e
implacável como os furacões, devendo ser bajulado com exaltados louvores e
testemunhos da maior humildade para, quem sabe, dignar-se a atender a alguma
reivindicação. Outros o têm como um avô carinhoso, daqueles que levam os
netinhos ao parque, contam histórias e perdoam todas as suas travessuras,
defendendo-os das palmadas disciplinares. Outros ainda o definem como parceiro,
sempre pronto a “dar uma mãozinha” na solução de qualquer problema e,
naturalmente, de uma solidariedade incondicional, capaz de acobertar atos
indignos e intenções duvidosas, por uma fidelidade extrema a esse
relacionamento amistoso. Confiados nessa parceria, aventuram-se em certas
empreitadas perigosas, convencidos de que, estejam certos ou errados diante da
ética e da moral, seu Deus lhes garantirá a vitória, mesmo que essa vitória
traga algum prejuízo a outrem.
E não nos
esqueçamos dos que concebem Deus como um severo juiz, cuja maior ocupação é
fiscalizar corações e consciências, com vistas à aplicação de dolorosas
punições aos transgressores de sua Lei. “Deus é justo”, exclamam,
principalmente quando se sentem ofendidos ou prejudicados em seus interesses.
Intimamente, esperam que Deus derrame sua “justiça” sobre os desafetos, não
importando de que lado esteja a razão. E quando isso não acontece de imediato,
resignam-se com a afirmativa de que “a Justiça Divina tarda mais não falha”.
Consideremos
ainda aqueles que fazem ideia de um Deus no estilo “abracadabra”, pra quem tudo
é possível. Estribados nessa concepção, esperam que Deus elimine,
miraculosamente, as conseqüências de atos impensados, crentes de que sua
intensa fé seja o único requisito para a obtenção dos favores divinos.
Naturalmente,
estas descrições não abrangem todas as concepções de Deus, mas costumam ser as
mais usuais entre as pessoas comuns, não necessariamente dedicadas ao estudo
filosófico ou teológico: donas de casa, pais de família, jovens e adultos,
empenhados na luta pela sobrevivência, na qual Deus representa o porto seguro,
o refúgio das tormentas e o consolo nas aflições.
O esforço
para sobreviver é por vezes dramático; para muita gente, o pão de cada dia é
fruto de uma verdadeira odisséia, que lhes cobra pesados tributos de energias
físicas, mentais e morais. Momentaneamente incapaz de vislumbrar melhores dias
em seu futuro, o ser humano se enreda nas malhas da autocomiseração que o reduz
a mero joguete do implacável e caprichoso Destino. Debilitado em sua dignidade
e carente de um entendimento mais íntimo das leis naturais, reassume de forma
inconsciente o comportamento infantil de chorar para cobrar atenção dos mais
velhos. Isso o leva a fazer de suas preces uma longa e disfarçada tentativa de
comover Deus, para que Ele se compadeça e intervenha no suposto Destino, pondo
fim aos padecimentos do peticionário. Tais orações, normalmente eivadas de
chavões nos quais se minimizam as qualidades e importância do ser humano ao
mesmo tempo em que se exaltam as virtudes Divinas, tem o dom de emocionar tanto
a quem as profere quanto a quem as ouve. Mas terão alguma eficácia em relação
ao propósito pelo qual são feitas?
Façamos uma
breve reflexão a respeito da natureza e atributos daquele Ser a quem se
convencionou chamar Deus. Toda a concepção sobre Sua natureza íntima esbarra
nos limites da compreensão humana, incapaz de imaginar alguma manifestação sem
uma causa anterior. Assim, pretendemos formar algum conceito assimilável sobre
Deus a partir dos aparentes efeitos dessa Causa Primeira, do que resulta a
proposição dos atributos pelos quais Deus opera no Universo, na Natureza e no
Homem. Desde as crenças teleológicas e anímicas até o monoteísmo
antropomórfico, passando pelos panteões em que centenas de divindades e
semi-deuses disputavam espaço e fidelidade, chegando às modernas concepções que
conferem a Deus a condição de Energia Cósmica Inteligente, um caminho de
milênios vem sendo percorrido pela mente humana. Graças a essa longa jornada
reflexiva, chegou-se à conclusão de que os principais atributos do Ser Supremo
são a Onipotência, a Onipresença e a Onisciência.
Outra conclusão a que
chegaram os grandes pensadores religiosos e místicos é de que o Universo e a
Natureza revelam, em seu funcionamento e estrutura, certas condições de
manifestação que podem ser entendidas como leis; portanto, o Criador opera
através desse conjunto de condições, o que permite uma uniformidade nas
manifestações de Sua Obra. Considerando que esse conjunto de leis é fruto da
Onisciência, é sensato admitirmos que se trata da forma ideal e perfeita com a
qual a Onipotência administra a criação.
E nós, os seres humanos, somos parte dessa criação e, logicamente, sujeitos às
mesmas leis que o restante do Universo.
Assim sendo, soa um tanto incoerente a
presunção de que Deus, comovido pelo tom choroso de certas rogativas, possa
revogar sua Justiça em favor de uma pequena parte de Sua criação enquanto
governa o restante sob uma disciplina inflexível.
Auro, 1989