A
Páscoa, para o mundo cristão, é a síntese de toda a mensagem evangélica; é o
resumo da fé. Enquanto o nascimento de Jesus representa a esperança de
libertação na figura do Deus menino, a Páscoa é a certificação da liberdade espiritual,
sacramentada pela ressurreição. É a vitória contra o maior temor do homem, o
renascimento para a vida gloriosa por diversas vezes relembrada no texto
bíblico. É um dos mais significativos símbolos de renovação.
Para
o místico, símbolos constituem a linguagem ideal da alma. As tribulações da
vida terrena representadas pelo braço horizontal da cruz, são aspectos de uma
condição passiva; todo homem partilha o
seu quinhão de sofrimento, seja de ordem física ou moral, uma vez que a carne é
perecível. Não há como fugir da
realidade constatada por Sidarta Gautama, o Buda: tudo o que tem começo tem
fim. Isso, inclusive, é a régua que iguala os seres humanos perante as leis
naturais.
No
entanto, o homem não se resume ao corpo. Seja qual for o termo empregado ou a
teoria adotada, é certo que expressamos outra fase da vida que se reflete na
consciência, no pensamento e no psiquismo. Esta manifestação é de natureza
intangível, ainda que dependa dos órgãos físicos. Desta fase imponderável, que
poderia ser chamada de alma, brota o impulso em direção ao que a ela se
assemelha, ou, por outra, aquilo que a alma presente ser a sua fonte original;
a espiritualidade. Como que sujeita à poderosa força gravitacional de um
gigantesco sol, a alma é atraída para o alto, para níveis mais refinados e abrangentes de
percepção. É o braço vertical da cruz, a ascensão da consciência ao plano
divino.
Mas
qualquer subida exige esforço. Quem escala uma montanha costuma levar consigo
apenas o essencial à sua sobrevivência, ainda que isso implique na renúncia ao
conforto. A cada lance da subida, o alpinista revê sua bagagem e decide abrir
mão de algum objeto cujo peso, somado às dificuldades causadas pela rarefação
da atmosfera, o faça despender mais energia do que o necessário. Da mesma forma, a espiritualização exige uma
periódica e minuciosa reavaliação da bagagem psíquica que o homem acumula na
experiência mundana. Essa reavaliação pode não ser prazerosa, devido ao apego
que costumamos ter às nossas características de personalidade. Pode acontecer
que a opinião que temos a nosso próprio respeito sofra alguns golpes de
realidade e descubramos que o que julgávamos ser uma virtude é apenas uma forma
disfarçada de vaidade. Pode ser que algumas atitudes que nos pareceram corretas
no passado ressurjam na memória como lamentáveis equívocos. Pode ser que essa revisão da vida nos cause
algum sofrimento moral.
São
João da Cruz, grande místico e religioso espanhol (1542 – 1591) definiu esse
tipo de sofrimento como “a noite negra da alma”, o período de purgação moral
que antecede o renascimento espiritual, misticamente denominado “o Áureo
Alvorecer”. Após a noite de convívio com
as próprias trevas, remexendo os escaninhos de sua própria consciência,
confrontando a si mesmo e questionando seus valores, na solidão do recolhimento
interior, o homem morre para si mesmo em sua anterior condição, para renascer
purificado e pronto para mais uma jornada rumo à verdadeira
espiritualização. Seria, na visão
mística, a “Páscoa nossa de cada dia”, no cumprimento da lei de evolução.
Que
o símbolo maior da Páscoa, a renovação do Amor no coração, seja compreendido e
concretizado por toda a humanidade; que os indesejáveis pesos da ambição, da
arrogância, da intolerância e do ódio sejam arremessados ao abismo, para que o
mundo se eleve um pouco mais em direção a Deus.
Auro Barreiros