Entre o escrito, o falado e o cantado passei boa parte da vida. Agora, com a bênção do tempo a revisar minhas ideias, desfruto o prazer de compartilhá-las. Seja bem-vindo; navegue,opine. fique à vontade.
sábado, 10 de agosto de 2019
quinta-feira, 1 de agosto de 2019
O LEGADO DA EXISTÊNCIA
A
humanidade, no seu processo civilizatório, consagrou alguns costumes que
merecem uma análise mais acurada, como, por exemplo, as leis que regulamentam o
destino do espólio, o conjunto de bens que alguém amealhou até o momento de sua
morte. A ideia de herança, provavelmente, é consequência do conceito de família
e das responsabilidades que disso advém; a preocupação com a sobrevivência dos
que ficam ensejou o estabelecimento de normas protetivas de patrimônio e a
regulamentação de partilhas. Apesar das contendas que, muitas vezes,
transformam esse ato solene em batalha campal, a intenção de preservar a
dignidade e os direitos dos familiares justifica o costume, que é lei na maior
parte das nações.
Deixar
uma herança é, para muitos, uma das principais motivações da vida,
especialmente quando na idade madura. A consciência da finitude da jornada
terrena e o temor antecipado de possíveis dificuldades para os familiares levam
o ser humano a sacrificar alguns de seus ideais e a adotar condutas nem sempre
louváveis em relação a negócios e dinheiro.
Um belo
dia, eis que se parte desse vale de lágrimas. Findas as exéquias, abre-se o
testamento e cumpre-se a vontade do falecido, que segue em paz, na premissa de
que seus entes queridos não sofrerão privações, graças ao seu esforço e
sacrifício pessoal, quando em vida. No que diga respeito aos bens palpáveis,
missão cumprida.
Será
esse, porventura, o único ou o maior legado de uma vida? Pode-se estar seguro
de que os bens, o dinheiro, realmente serão a salvaguarda dos que aqui ficam,
em todos os aspectos da existência? Inúmeras histórias de malversação de
formidáveis heranças, de disputas ferrenhas e sangrentas e decadência de
famílias tradicionais colocam em xeque essa ideia de segurança. Ao contrário,
indicam que, na maior das vezes, é justamente o súbito enriquecimento sem labor
o mote para o esbanjamento e a consequente derrocada.
Se há
uma vida além-túmulo, e se de lá é possível observar o que aqui se passa,
certamente, amargas lágrimas têm sido vertidas por aqueles que se negaram a
própria felicidade, no empenho de construir e legar um patrimônio para o bem
dos seus amados. Talvez, ao testemunhar o solene esquecimento que lhes é
votado, almas decepcionadas rememorem os passos dados na Terra e se perguntem,
frustradas, onde teriam errado.
Saindo
da situação individual para o plano coletivo, tenhamos em mente que a
civilização é uma somatória de heranças, que podem ser distintas em três
aspectos: a herança física, cuja prevalescência começa pelo próprio corpo; a
herança cultural, decorrente do acúmulo de saberes que transmigram através das
gerações; e a herança espiritual, que se reflete na busca pela transcendência e
compreensão íntima da natureza do ser. Fisicamente, há leis naturais que, ao
longo das eras, ajustam o ser vivo ao ambiente e às necessidades de
sobrevivência, replicando esses ajustes através da hereditariedade (o nome não
foi escolhido ao acaso). O peludo Neandertal foi se refinando, na medida mesma
das alterações ambientais, até chegar ao que somos hoje. É possível que, daqui
a um ou dois milhões de anos, se não nos destruirmos antes, tenhamos algumas
diferenças físicas em relação ao que somos atualmente.
A
herança cultural, por sua vez, é produto de uma condição particular do ser
humano: a racionalidade. Aparentemente, somos os únicos seres que afetam
deliberadamente o meio em que vivem. Enquanto os animais, ainda que manifestem
inteligência, parecem obedecer a uma programação inconsciente e imutável, como
os pássaros ao construir seus ninhos, o homem manipula e transforma a matéria
segundo seus impulsos criativos. Essas diferenças básicas deram origem a
práticas como a caça, a pesca e, posteriormente, a agricultura, matriz das
primeiras comunidades e embriões de sociedades. Esse mesmo impulso criativo,
movido pelas necessidades e alimentado pela observação, promoveu (como o faz
até hoje), a evolução das práticas que, como um patrimônio imaterial, foram
sucessivamente herdadas e aprimoradas a cada geração. O surgimento da escrita
propiciou uma aceleração no progresso; o conhecimento, agora, poderia ser
registrado e perpetuado.
E a
herança espiritual, quem sabe, teve seu começo ao redor das primeiras
fogueiras. Aquecido e protegido, é possível que o homem primitivo tenha iniciado
ali o exercício das faculdades superiores da mente. Talvez tenha começado a
rememorar seus medos e encantamentos diante dos eventos naturais e esboçado as
primeiras crenças anímicas. Especulação
ou não, o certo é que as crenças primitivas também evoluíram, incorporando-se
ao processo civilizatório e sendo, como todas as demais conquistas,
transmitidas como legado às gerações posteriores. Do simples e quase irracional
temor do raio e do trovão, gradativamente se tornaram religiões organizadas,
com ontologias e dogmas. Chegou-se à filosofia, cuja forma metódica de sondar o
desconhecido findou por somar-se às religiões, aprimorando as doutrinas e
indicando uma finalidade maior: o autoconhecimento.
E então,
descobre-se que o autoconhecimento tem consequências profundas. Conhecer a si
mesmo, que é o alfa e o ômega da espiritualização, obriga o ser humano a
aprimorar seus conceitos de justiça, deixando, gradativamente, o terreno
individual, em favor do pensar coletivo e universal. Sob essa ótica, qual será
a qualidade do legado da humanidade para si mesma?
Antes de
qualquer argumento, é preciso que se estabeleça uma conceituação mais clara do
que vem a ser “civilização”. A palavra vem do latim, “civis”: cidadão, habitante da cidade, do que se depreende que, em
princípio, trata-se de uma consequência da vida coletiva. Para os antigos, isso
era relevante, tendo-se em conta a importância e os benefícios oriundos da
concentração humana em tribos e aldeias, que evoluíram para complexos urbanos.
A consequente organização social trouxe mais facilidade para a produção de
alimentos e bens de consumo; em caso de luta armada, o maior número de pessoas
aptas ao combate poderia ser decisivo na defesa do território. Ou seja, a dita
civilização teve, sob o ponto de vista puramente fenomenológico, raízes bem
pragmáticas.
Mas a
relativa tranquilidade consequente desse convívio “civilizado” fez aflorar
aspectos um tanto subjetivos da natureza humana. A inquietude intelectual
provocou o desenvolvimento das ciências e das artes; a busca espiritual elevou
o pensamento a questionamentos profundos quanto aos mistérios da natureza,
conforme expressados no próprio homem.
No
entanto, ainda que algumas luzes evolutivas brilhassem aqui e ali, certas
práticas animalescas persistiram inalteradas, no cotidiano da alegada
civilização, como se nem o tempo, nem as conquistas da mente tivessem produzido
alguma alteração no caráter primitivo.
Pelo contrário, parece que o progresso do conhecimento potencializou a
barbárie, ao sofisticar a letalidade. O refinamento da linguagem e a
prolixidade das ideologias servem, quase sempre, para oferecer razões aparentemente
plausíveis às guerras e suas consequências diretas ou indiretas: miséria, doença,
segregação, ódio racial, exploração do mais fraco, monopólios de recursos
naturais, rapinância econômica e o embrutecimento da sensibilidade aos valores
mais altos da ética e da justiça. Apenas para ilustrar, há regiões do mundo em
que povos disputam territórios há mais de dois mil anos, ao preço do sangue, numa
cascata de ódio e ressentimento que passa de geração para geração.
Em se
tratando de costumes, não há como dizer de que modo o vício da embriaguez
começou. Pode ter sido uma descoberta casual, que tenha propiciado um prazer
inédito ao homem primitivo. O que se tem de certo são os registros muito
antigos da incorporação de substancias inebriantes a práticas religiosas e ao
cotidiano das velhas civilizações. Ora
como ato de comunhão, ora como inocente recreação, o vinho, por exemplo, é
personagem onipresente em toda a História antiga, tendo presumida origem
divina. Mas, mesmo entre os devotos de Baco, sempre houve quem recomendasse
prudência e comedimento, tendo em vista os efeitos que é capaz de produzir no comportamento e na saúde humana. Como a
euforia etílica costuma ser surda, tais recomendações foram, pouco a pouco,
esquecidas. O alcoolismo progrediu vertiginosamente, abrindo portas para a adoção
do consumo de outras substancias ainda mais lesivas. Juntamente com o
tabagismo, álcool e drogas tornaram-se gravíssimo problema de saúde pública.
Paradoxalmente, porém, algumas das maiores pagadoras de impostos e geradoras de
empregos são, ironicamente, fábricas de bebidas e cigarros! O tráfico, por sua
vez, movimenta trilhões de dólares com o vício típicamente urbano do uso de
inebriantes, narcóticos, estupefacientes e alucinógenos, numa destruição
sistemática de lares e vidas.
A lista
de paradoxos e contradições em relação ao que se convencionou denominar
civilização é um pouco extensa. Sem obscurecer o progresso inegável, as nobres
conquistas nos diversos campos, não há como fechar os olhos para a realidade
que nos assedia cotidianamente, graças ao evoluído sistema moderno de
comunicações. E também não há como deixar de reconhecer que os verdadeiros
problemas que atormentam a humanidade são os mesmos de milênios atrás. O ponto
focal, portanto, é a questão inicial
dessa reflexão: qual é o legado que a humanidade está deixando para si mesma?
Pode ser
que encarar essas realidades gritantes tenha o dom de esvair esperanças e
alimentar um conformismo cínico. Isso é perigoso, pois induz a falsa premissa
de que o indivíduo é impotente diante da derrocada coletiva, restando-lhe
apenas “seguir a corrente” e compartilhar as dores do mundo. Pode ser que, pela
magnitude do caos moral, o indivíduo se exima de maiores responsabilidades e
até aceite passivamente o andar da carruagem. E, nessa conjuntura, é preciso
ter em mente que a evolução coletiva é efeito da evolução individual. A mesma
História que registra as incoerências e atrocidades humanas também informa que,
em todas as épocas, houve indivíduos que influenciaram coletividades. As
conquistas morais e espirituais de uns poucos têm sido o fermento para
formidáveis aprimoramentos na sociedade. Logo, a inércia de um povo não
sanciona a inércia pessoal. Mas a soma dos esforços individuais faz girar a
roda do progresso.
Provavelmente,
esse deve ser o grande e melhor legado, tanto da civilização, como um todo,
quanto do indivíduo, como parte indissociável desse todo. Que o espólio de cada
ser humano, ao término da jornada terrena, seja o produto de seus esforços na
construção da própria personalidade. Que os valores imateriais cultivados
possam servir de farol ético à sucessiva geração; valores que se multiplicam na
proporção em que são utilizados na economia da vida. Equanimidade, respeito a
tudo, busca incansável do conhecimento, pensamento e ação voltados para o bem
coletivo, cultura da Paz; valores cujo tamanho não se mede senão pelas
consequências que geram onde são aplicados.
“Uma
alma que se eleva, eleva o mundo inteiro”.[1]
Auro
Barreiros
25/2/2019
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