quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O LEGADO DA EXISTÊNCIA




A humanidade, no seu processo civilizatório, consagrou alguns costumes que merecem uma análise mais acurada, como, por exemplo, as leis que regulamentam o destino do espólio, o conjunto de bens que alguém amealhou até o momento de sua morte. A ideia de herança, provavelmente, é consequência do conceito de família e das responsabilidades que disso advém; a preocupação com a sobrevivência dos que ficam ensejou o estabelecimento de normas protetivas de patrimônio e a regulamentação de partilhas. Apesar das contendas que, muitas vezes, transformam esse ato solene em batalha campal, a intenção de preservar a dignidade e os direitos dos familiares justifica o costume, que é lei na maior parte das nações.

Deixar uma herança é, para muitos, uma das principais motivações da vida, especialmente quando na idade madura. A consciência da finitude da jornada terrena e o temor antecipado de possíveis dificuldades para os familiares levam o ser humano a sacrificar alguns de seus ideais e a adotar condutas nem sempre louváveis em relação a negócios e dinheiro.
Um belo dia, eis que se parte desse vale de lágrimas. Findas as exéquias, abre-se o testamento e cumpre-se a vontade do falecido, que segue em paz, na premissa de que seus entes queridos não sofrerão privações, graças ao seu esforço e sacrifício pessoal, quando em vida. No que diga respeito aos bens palpáveis, missão cumprida.

Será esse, porventura, o único ou o maior legado de uma vida? Pode-se estar seguro de que os bens, o dinheiro, realmente serão a salvaguarda dos que aqui ficam, em todos os aspectos da existência? Inúmeras histórias de malversação de formidáveis heranças, de disputas ferrenhas e sangrentas e decadência de famílias tradicionais colocam em xeque essa ideia de segurança. Ao contrário, indicam que, na maior das vezes, é justamente o súbito enriquecimento sem labor o mote para o esbanjamento e a consequente derrocada.

Se há uma vida além-túmulo, e se de lá é possível observar o que aqui se passa, certamente, amargas lágrimas têm sido vertidas por aqueles que se negaram a própria felicidade, no empenho de construir e legar um patrimônio para o bem dos seus amados. Talvez, ao testemunhar o solene esquecimento que lhes é votado, almas decepcionadas rememorem os passos dados na Terra e se perguntem, frustradas, onde teriam errado.

Saindo da situação individual para o plano coletivo, tenhamos em mente que a civilização é uma somatória de heranças, que podem ser distintas em três aspectos: a herança física, cuja prevalescência começa pelo próprio corpo; a herança cultural, decorrente do acúmulo de saberes que transmigram através das gerações; e a herança espiritual, que se reflete na busca pela transcendência e compreensão íntima da natureza do ser. Fisicamente, há leis naturais que, ao longo das eras, ajustam o ser vivo ao ambiente e às necessidades de sobrevivência, replicando esses ajustes através da hereditariedade (o nome não foi escolhido ao acaso). O peludo Neandertal foi se refinando, na medida mesma das alterações ambientais, até chegar ao que somos hoje. É possível que, daqui a um ou dois milhões de anos, se não nos destruirmos antes, tenhamos algumas diferenças físicas em relação ao que somos atualmente.
A herança cultural, por sua vez, é produto de uma condição particular do ser humano: a racionalidade. Aparentemente, somos os únicos seres que afetam deliberadamente o meio em que vivem. Enquanto os animais, ainda que manifestem inteligência, parecem obedecer a uma programação inconsciente e imutável, como os pássaros ao construir seus ninhos, o homem manipula e transforma a matéria segundo seus impulsos criativos. Essas diferenças básicas deram origem a práticas como a caça, a pesca e, posteriormente, a agricultura, matriz das primeiras comunidades e embriões de sociedades. Esse mesmo impulso criativo, movido pelas necessidades e alimentado pela observação, promoveu (como o faz até hoje), a evolução das práticas que, como um patrimônio imaterial, foram sucessivamente herdadas e aprimoradas a cada geração. O surgimento da escrita propiciou uma aceleração no progresso; o conhecimento, agora, poderia ser registrado e perpetuado.

E a herança espiritual, quem sabe, teve seu começo ao redor das primeiras fogueiras. Aquecido e protegido, é possível que o homem primitivo tenha iniciado ali o exercício das faculdades superiores da mente. Talvez tenha começado a rememorar seus medos e encantamentos diante dos eventos naturais e esboçado as primeiras crenças anímicas.  Especulação ou não, o certo é que as crenças primitivas também evoluíram, incorporando-se ao processo civilizatório e sendo, como todas as demais conquistas, transmitidas como legado às gerações posteriores. Do simples e quase irracional temor do raio e do trovão, gradativamente se tornaram religiões organizadas, com ontologias e dogmas. Chegou-se à filosofia, cuja forma metódica de sondar o desconhecido findou por somar-se às religiões, aprimorando as doutrinas e indicando uma finalidade maior: o autoconhecimento.
E então, descobre-se que o autoconhecimento tem consequências profundas. Conhecer a si mesmo, que é o alfa e o ômega da espiritualização, obriga o ser humano a aprimorar seus conceitos de justiça, deixando, gradativamente, o terreno individual, em favor do pensar coletivo e universal. Sob essa ótica, qual será a qualidade do legado da humanidade para si mesma?

Antes de qualquer argumento, é preciso que se estabeleça uma conceituação mais clara do que vem a ser “civilização”. A palavra vem do latim, “civis”: cidadão, habitante da cidade, do que se depreende que, em princípio, trata-se de uma consequência da vida coletiva. Para os antigos, isso era relevante, tendo-se em conta a importância e os benefícios oriundos da concentração humana em tribos e aldeias, que evoluíram para complexos urbanos. A consequente organização social trouxe mais facilidade para a produção de alimentos e bens de consumo; em caso de luta armada, o maior número de pessoas aptas ao combate poderia ser decisivo na defesa do território. Ou seja, a dita civilização teve, sob o ponto de vista puramente fenomenológico, raízes bem pragmáticas.

Mas a relativa tranquilidade consequente desse convívio “civilizado” fez aflorar aspectos um tanto subjetivos da natureza humana. A inquietude intelectual provocou o desenvolvimento das ciências e das artes; a busca espiritual elevou o pensamento a questionamentos profundos quanto aos mistérios da natureza, conforme expressados no próprio homem.

No entanto, ainda que algumas luzes evolutivas brilhassem aqui e ali, certas práticas animalescas persistiram inalteradas, no cotidiano da alegada civilização, como se nem o tempo, nem as conquistas da mente tivessem produzido alguma alteração no caráter primitivo.  Pelo contrário, parece que o progresso do conhecimento potencializou a barbárie, ao sofisticar a letalidade. O refinamento da linguagem e a prolixidade das ideologias servem, quase sempre, para oferecer razões aparentemente plausíveis às guerras e suas consequências diretas ou indiretas: miséria, doença, segregação, ódio racial, exploração do mais fraco, monopólios de recursos naturais, rapinância econômica e o embrutecimento da sensibilidade aos valores mais altos da ética e da justiça. Apenas para ilustrar, há regiões do mundo em que povos disputam territórios há mais de dois mil anos, ao preço do sangue, numa cascata de ódio e ressentimento que passa de geração para geração.

Em se tratando de costumes, não há como dizer de que modo o vício da embriaguez começou. Pode ter sido uma descoberta casual, que tenha propiciado um prazer inédito ao homem primitivo. O que se tem de certo são os registros muito antigos da incorporação de substancias inebriantes a práticas religiosas e ao cotidiano das velhas civilizações.  Ora como ato de comunhão, ora como inocente recreação, o vinho, por exemplo, é personagem onipresente em toda a História antiga, tendo presumida origem divina. Mas, mesmo entre os devotos de Baco, sempre houve quem recomendasse prudência e comedimento, tendo em vista os efeitos que é capaz de produzir no comportamento e na saúde humana. Como a euforia etílica costuma ser surda, tais recomendações foram, pouco a pouco, esquecidas. O alcoolismo progrediu vertiginosamente, abrindo portas para a adoção do consumo de outras substancias ainda mais lesivas. Juntamente com o tabagismo, álcool e drogas tornaram-se gravíssimo problema de saúde pública. Paradoxalmente, porém, algumas das maiores pagadoras de impostos e geradoras de empregos são, ironicamente, fábricas de bebidas e cigarros! O tráfico, por sua vez, movimenta trilhões de dólares com o vício típicamente urbano do uso de inebriantes, narcóticos, estupefacientes e alucinógenos, numa destruição sistemática de lares e vidas.

A lista de paradoxos e contradições em relação ao que se convencionou denominar civilização é um pouco extensa. Sem obscurecer o progresso inegável, as nobres conquistas nos diversos campos, não há como fechar os olhos para a realidade que nos assedia cotidianamente, graças ao evoluído sistema moderno de comunicações. E também não há como deixar de reconhecer que os verdadeiros problemas que atormentam a humanidade são os mesmos de milênios atrás. O ponto focal, portanto,  é a questão inicial dessa reflexão: qual é o legado que a humanidade está deixando para si mesma?

Pode ser que encarar essas realidades gritantes tenha o dom de esvair esperanças e alimentar um conformismo cínico. Isso é perigoso, pois induz a falsa premissa de que o indivíduo é impotente diante da derrocada coletiva, restando-lhe apenas “seguir a corrente” e compartilhar as dores do mundo. Pode ser que, pela magnitude do caos moral, o indivíduo se exima de maiores responsabilidades e até aceite passivamente o andar da carruagem. E, nessa conjuntura, é preciso ter em mente que a evolução coletiva é efeito da evolução individual. A mesma História que registra as incoerências e atrocidades humanas também informa que, em todas as épocas, houve indivíduos que influenciaram coletividades. As conquistas morais e espirituais de uns poucos têm sido o fermento para formidáveis aprimoramentos na sociedade. Logo, a inércia de um povo não sanciona a inércia pessoal. Mas a soma dos esforços individuais faz girar a roda do progresso.

Provavelmente, esse deve ser o grande e melhor legado, tanto da civilização, como um todo, quanto do indivíduo, como parte indissociável desse todo. Que o espólio de cada ser humano, ao término da jornada terrena, seja o produto de seus esforços na construção da própria personalidade. Que os valores imateriais cultivados possam servir de farol ético à sucessiva geração; valores que se multiplicam na proporção em que são utilizados na economia da vida. Equanimidade, respeito a tudo, busca incansável do conhecimento, pensamento e ação voltados para o bem coletivo, cultura da Paz; valores cujo tamanho não se mede senão pelas consequências que geram onde são aplicados.

Uma alma que se eleva, eleva o mundo inteiro”.[1]



Auro Barreiros
25/2/2019


[1] ELIZABETH LESEUR (1866-1914)
Mística e escritora francesa, nascida em Paris.