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sexta-feira, 13 de outubro de 2017

CANIS ET CIRCENSIS - I





Drica, minha cadela, é versada em filosofia. Do alto de sua avançada idade, para os padrões caninos, volta e meia me agracia com preciosas reflexões. Reflexões maduras, profundas e abrangentes, que estabelecem correlações inusitadas entre sua ótica de quadrúpede e o plano das consequências, que normalmente afeta muito mais os bípedes ditos racionais.

As repetidas conversas de fim de tarde findaram por desenvolver entre nós uma espécie de comunicação não-verbal (ao menos de minha parte), algo entre a linguagem corporal e a telepatia. 
Numa dessas prosas, enquanto assistíamos o jornal da noite, propus (bem ao estilo socrático), uma análise da paixão humana pelo poder. Esse “humana” foi sugestão dela, que, de cara, me pontuou que cachorro não tem isso. Segundo ela, a única coisa que se assemelha a paixão no universo canino é o amor ao dono, muitas vezes imerecido, mas incondicional e perene.

Mas, como eu disse, assistíamos o jornal e nos debruçávamos no exame das complexas e esdrúxulas personalidades que nele desfilavam; em nível mundial, homens alucinados, tendo nas mãos uma chave que pode abrir as janelas do céu ou escancarar os portões do inferno. Por suas atitudes provocativas e infantis, o temor é de que prefiram a segunda hipótese.

“Como você vê essa escalada de tensão entre potências, que tem o potencial de arrastar a humanidade para mais um fratricídio de proporções globais”?

Drica se levanta, vai à varanda, dá uma meia dúzia de latidos e volta, sentando-se aos meus pés, com uma expressão de esperteza no olhar, que minha recém-desenvolvida habilidade telepática rápidamente converte em uma resposta: 

“É deplorável, mas compreensível o comportamento  desses humanos. Apesar de toda a sofisticação que os rodeia, ainda não aprenderam a separar o instinto da razão. Como os animais, querem “marcar território”, mas desconhecem o limite de cada demarcação. Ainda não aprenderam conosco a se fazerem respeitados pela sua própria natureza, de modo que não lhes basta latir; tem que morder, também”.

(Pausa para reflexão e mastigar um pedaço do pão com manteiga do meu café da tarde).


Auro
14/10/2017


sábado, 2 de abril de 2011

Nova Era; desejada ou temida?



A humanidade, em todas as épocas, sempre se preocupou com o futuro. Aliás, a História demonstra que, quanto mais civilização e conseqüente sofisticação intelectual, maiores as elucubrações em torno do que seriam os tempos vindouros.

Em todas as religiões essa preocupação gerou mensagens escatológicas, umas aterradoras, como o Apocalipse bíblico, outras alvissareiras e paradisíacas.  Mas, é ponto passivo que a conduta humana é fator preponderante na realização de tais profecias; a maldade, a iniqüidade, a corrupção, a apostasia, dentre outras atitudes indesejáveis, causariam a precipitação dos castigos divinos e a subseqüente seleção, que separaria os justos dos pecadores, premiando uns com a bem-aventurança eterna e outros com a danação eterna ou a destruição. Esta forma de crer e pensar é, ainda nos dias atuais, o sustentáculo de fé para milhões de pessoas, que se esforçam em ser fiéis às doutrinas que professam, com vistas à paz e felicidade eternas na Jerusalém Celeste ou o seu equivalente.

Mas, com o progresso do pensamento, mentes especulativas passaram a contemplar um futuro mais próximo e terreno. A filosofia, como esforço de desvendar as causas primeiras, impulsionou o homem ao aperfeiçoamento de conceitos éticos, tirando-os do campo da fé e situando-os na esfera da razão e do direito. Um ser humano não deve causar prejuízo à liberdade ou à vida de outro, não apenas em função de um dogma religioso (portanto inquestionável), mas também porque contraria o princípio ético da igualdade. Ainda que, em seu íntimo, alimente a esperança de um céu por recompensa à sua bondade, as conseqüências de uma atitude igualitária e respeitosa são mais imediatas e objetivas; a criação e manutenção de um estado de convivência harmoniosa, de que resultam benefícios concretos, como a construção de uma sociedade próspera e segura.

Expressões como “Nova Era”, “Novo Mundo”, são pejorativamente empregadas por mentes fundamentalistas da atualidade. Em torno desses títulos formaram-se mirabolantes teorias conspiratórias, que envolvem desde sociedades secretas e satânicas até extraterrestres, que, mancomunados a dirigentes mundiais, estariam governando subterraneamente o planeta, na tentativa de implantar seu domínio e extinguir os valores que se tem por certos, emanados das religiões e doutrinas tradicionais. Por conta dessas conspirações, há uma verdadeira mobilização no sentido de prevenir ou imunizar os rebanhos, protegendo-os contra a tão temida Nova Era.

Antes de qualquer tomada de posição, é preciso que se conceitue claramente o que é chamado de “Nova Era”. É uma forma definida de governo? É uma religião, ou doutrina? É uma filosofia, como a platônica, que alterou a face intelectual do mundo?  Nota-se que a grande preocupação das religiões é centrada na figura de Satanás, como o mentor de idéias capazes de corromper a alma do homem e aprisioná-lo definitivamente às trevas. Satanás seria o grande chefe de todos os movimentos que, de uma forma ou de outra, buscam a renovação dos costumes e crenças com vistas a um planeta fraterno, solidário e tolerante. E esta seria a primeira incoerência a ser anotada nos movimentos contrários à “Nova Era”; Satanás trabalhando contra si mesmo, ao defender valores que, tradicionalmente, são originários do Bem.  

É preciso que percebamos um fato inconteste: a “Nova Era”, como um distante e predeterminado tempo vindouro, não existe. Todos os dias, quando abrimos a janela para o Sol, uma nova era está começando, pois, ao nos deitarmos na noite anterior, não seriamos capazes de afirmar com certeza que chegaríamos ao dia seguinte. Nossa capacidade premonitória é por demais limitada para isso. Mas nos levantamos, cumprimos a rotina da vida e, ao nosso modo, semeamos o amanhã. Essa compreensão conduz a outra constatação importante: a qualidade do que se planta define a qualidade do que se colhe. O futuro individual e coletivo é fundamentado nessa lei.

Assim, não apenas uma religião, ou fraternidade, ou partido político estão construindo a Nova Era; todo ser humano, por ação ou por omissão, está incluso nessa obra. Nossas atitudes individuais, perante nós mesmos, ou em relação aos que nos rodeiam, geram reações e condições que, direta ou indiretamente, agem no todo da sociedade. A tolerância ou intolerância de cada um é o tempero que pode tornar a vida agradável ou intragável.

O pastor que convence o seu rebanho a cuidar dos mais necessitados, em nome da fé, está construindo o novo mundo. Mas o corrupto, o criminoso que fere os direitos alheios e produz dor e sofrimento, também está semeando o novo mundo. Pode parecer paradoxal, mas, lembremo-nos que uma das qualidades que se costuma atribuir a Deus é a Justiça. Portanto, não seria justo imaginar que a tarefa de reformar o mundo ficasse nas costas de um homem ou de um grupo, para que todos os demais usufruíssem benefícios pelos quais não lutaram. Logo, a responsabilidade por um mundo melhor é de todos, ainda que nem todos estejam conscientes disso.

Se, daqui a algumas décadas ou séculos, o planeta em que vivemos estiver muito melhor; se houver paz e justiça, se todas as crenças e ideais conviverem harmoniosamente, se a dor não for mais provocada pela maldade, palmas pra nós. Seremos vitoriosos, por ter conseguido conquistar coletivamente um estado ideal de vida.

Mas, se a “Nova Era” for a ampliação do despotismo atual, se a crueldade e o desrespeito forem a tônica do comportamento, se os direitos forem ignorados em nome do fanatismo e da arrogância, trazendo com isso a decepção, a descrença e o sofrimento físico e moral, não culpemos a nenhum Satanás por isso, pois seremos nós, os seres humanos, os únicos responsáveis pelos espinhos que plantarmos.

Portanto, é recomendável que avaliemos os conceitos e convicções enquanto “estamos a caminho”, enquanto ainda há tempo de corrigir a rota e escolher a semente. É oportuno que se revejam as crenças e atitudes, na medida em que afetem o semelhante. Todo ideal de mundo melhor que esteja vinculado à adoção de um sistema de crer e pensar, à exclusão dos demais, está fadado ao insucesso, pois, na condição de seres racionais em processo evolutivo, cada um percebe a realidade segundo sua própria capacidade atual. Por outro lado, uma sociedade sem balizas éticas tem poucas chances de estabelecer uma relação de paz entre seus componentes. Encontrar o ponto de equilíbrio é o grande desafio para o homem, na construção da desejada Nova Era.

Auro Barreiros – 20/3/2011