Na construção do pensamento, a palavra pode ser comparada à
argamassa que reúne as ideias. Quanto maior a precisão do vocábulo, tanto mais
coerente é a comunicação, pois o discurso reflete, em algum grau, a elaboração
mental e emocional sobre os conteúdos. Numa expressão conhecida, “pintamos com
palavras”; é como se o outro, que tanto pode ser um indivíduo como uma plateia,
um ouvinte ou um leitor, fosse uma tela em branco onde se deseja retratar as
paisagens, objetos ou cenas que pertencem ao mundo interior.
Ao longo do tempo, técnicas foram desenvolvidas para aumentar
a eficiência dessa “pintura” com palavras; a oratória, desde remotas eras, teve
grandes expoentes. Da mesma forma, a palavra escrita alcançou elevado
refinamento, ainda na antiguidade, perpetuando os saberes e inspirações, até os
nossos dias.
O estudo da Literatura demonstra que há padrões de linguagem
para cada época, do que resulta a necessidade da adequação de textos antigos
para melhor compreensão das atuais gerações. Um escrito de Platão[1]
ou de Francis Bacon[2],
por exemplo, seria quase incompreensível em seu original, sem um conhecimento
prévio que o contextualizasse. O modo de falar de suas épocas era o reflexo da
cultura, das crenças e até da ordem política de seus povos. No entanto, uma vez
assimilada essa característica de estilo, pode se perceber a exatidão com que
as ideias eram construídas. Isso se deve a que tais autores dominavam os temas
que abordavam. Não é a toa que são conhecidos como mestres, gênios, filósofos.
Em todas as épocas, sempre houve autores de discursos
rebuscados, de construções elegantes, de sofismas desafiadores. Aliás, o
sofisma arremete aos dias de Sócrates[3],
cujo embate com os Sofistas[4]
é conhecido de quem estuda a vida daquele sábio. O sofista era hábil em
construir pensamentos lapidares, cuja elaboração parecia selá-los como verdades
incontestáveis, mas que não resistiam à Maiêutica[5]
de Sócrates; ele os levava a desconstruir a própria tese, através de perguntas
perfeitamente interligadas pela “argamassa” do raciocínio filosófico. Despindo o discurso dos adereços de presumida
ciência, o Parteiro de Almas extraia a verdade ou desnudava a falácia.
Essa reflexão conduz a uma questão basilar para quem se
propõe a construir com palavras; especialmente aquele que pretende transmitir
suas verdades pessoais. Qual é o limite ou dosagem da elaboração e ornamentação
de um texto ou discurso?
E lá vamos nós à Grécia antiga, quando um discípulo de Platão
afirmara que “o homem é um bípede sem penas”. Diógenes[6],
conhecido como O Cínico, surge com um frango depenado e replica: “Eis o homem
de Platão”! A anedota traz em si o fato de que sempre é possível “depenar” um
discurso, de modo a expor seus fundamentos, por mais poético e erudito que
seja. Logo, o limite ou a dosagem de
adereços retóricos é a plausibilidade do cerne daquilo que se propõe. O enfeite
no chapéu não acrescenta sabedoria à cabeça. Apenas cumpre a missão de
embelezar, no que pode não ser bem sucedido, se o restante do conjunto não for
estéticamente bem posto.
Por outro lado, há também a expressão enigmática, que parece
encerrar um mistério. Por exemplo, muitos já devem ter ouvido ou lido a frase
“Deus é”. Na aura transcendental que a
envolve, essa afirmação parece bastar a si mesma. Seria o desvendar do primeiro
e último segredo do Universo, a natureza de Deus. Mas, o verbo “ser” é auxiliar;
sua presença requer um complemento (substantivo, adjetivo), ainda que
subentendido ou disseminado no processo argumentativo. Portanto, Deus é o quê? Espírito, energia,
plasma, matéria, pensamento? Para a filosofia,
não basta o impacto emocional de uma citação. É preciso fundamentar o que se
afirma. Imagine um filósofo, que conhece o conceito do Não-ser, contido na
doutrina védica, bem como os ensinamentos herméticos, que sugerem a
atemporalidade de Deus; provavelmente, a simples afirmativa “Deus é” não lhe
bastaria. Com certeza, esse pensador iria questioná-la, e caberia a quem a
empregou o trabalho de fornecer uma explicação razoável. Ou por outra, admitir
que apenas empregou uma frase de efeito, um sofisma, sobre o que não detém
conhecimento mais profundo.
Tanto o simplismo quanto o pedantismo são cruéis armadilhas a
quem deseja expor seus pensamentos de forma pública. O simplismo é reducionista
e denota estreiteza de raciocínio. O pedantismo é imprudente ao se exibir,
sujeitando quem o pratica ao escrutínio mais severo de quem o ouve ou lê.
O Caminho do Meio, tão bem descrito por Sidarta, serve também
para esse caso. Como diz a canção popular, “uma flor é uma flor e não tem outro
jeito da gente dizer[7]”.
Auro Barreiros
10/01/2018
[2]
Francis
Bacon, Visconde de Alban, também referido como Bacon de
Verulâmio (Londres, 22 de janeiro de 1561 — Londres, 9 de abril de 1626) foi um político, filósofo, ensaísta
inglês, barão de Verulam (ou Verulamo ou ainda Verulâmio) e visconde de Saint
Alban. É considerado como o fundador da ciência moderna.
(Fonte: Wikipedia)
[3] Sócrates (Atenas, 469 a.C. -
Atenas, 399 a.C.) foi um filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga. Creditado
como um dos fundadores da filosofia ocidental, é até hoje uma figura enigmática,
conhecida principalmente através dos relatos em obras de escritores que viveram
mais tarde, especialmente dois de seus alunos, Platão e Xenofonte, bem como
pelas peças teatrais de seu contemporâneo Aristófanes. Muitos
defendem que os diálogos de Platão seriam o relato mais abrangente de
Sócrates a ter perdurado da Antiguidade aos
dias de hoje. (Fonte: Wikipedia)
[4]
A Escola Sofística e seu
pensamento surgiram em um momento de transição na forma de interpretar e pensar
da sociedade grega quando o mythos deixava de ser a explicação e
justificativa fundamental para cada fenômeno e ação, configurando o Homem e o
logos – aqui tratado como razão – a destaque e fundamentação do discurso.
Autores modernos,[1] colocam como característica
mais marcante do movimento sofista a racionalidade como pressuposto de
compreensão de processos tanto racionais quanto irracionais. Porém, cabe
ressaltar, que, apesar da ampla gama de objetos de estudos e discussão dos
sofistas, ainda assim, tais figuras, geralmente, não são e nem foram admitidas
como filósofas, caso se considere a definição de filosofia pelo platonismo. Para Platão, os sofistas
rejeitavam a verdade e relativizavam a realidade resumindo o universo a partir,
somente, de seus aspectos fenomenais. (Fonte:
Wikipedia)
[5]
A maiêutica socrática tem como significado “dar à luz”, “parir” o conhecimento (em grego, μαιευτικη — maieutike —
significa “arte de partejar”). É um método ou técnica que pressupõe que a verdade está latente em todo ser humano, podendo aflorar aos
poucos na medida em que se responde a uma série de perguntas simples, quase
ingênuas, porém perspicazes.
Sócrates conduzia este “parto” em duas etapas:
·
Na primeira, levava o interlocutor a duvidar de seu próprio saber sobre
determinado assunto, revelando as contradições presentes em sua atual forma de
pensar, normalmente baseadas em valores e preconceitos sociais.
·
Na segunda, levava o interlocutor a vislumbrar novos conceitos, novas
opiniões sobre o assunto em pauta, estimulando-o a pensar por si mesmo. (Fonte: Wikipedia)
[6]
O filósofo helenístico Diógenes de Sínope, viveu do ano 413 – 323 a.C., aluno de
Antístenes (discípulo de Sócrates), de uma linha de pensamento Naturalista, foi
destaque e símbolo do Cinismo pois tornou sua filosofia uma forma de viver
radical. Seu mestre Antístenes, criador da escola Cínica (do grego Kynikos,
cão, como os atenienses se referiam a eles como cães de rua, sem riquezas, e
bens materiais), sua escola é o próprio mundo, ágoras, praças públicas, montes
e campos. Mas Diógenes foi o maior destilador de pérolas em sua indiferença
perante os valores da sociedade da qual fazia parte. (Fonte: http://socientifica.com.br)
[7] “Eu
quero mesmo” – Raul dos Santos Seixas – Cantor e compositor brasileiro (Salvador, 28 de junho de 1945 — São Paulo, 21 de agosto de 1989).