quinta-feira, 23 de junho de 2011

DEPOIS DA TEMPESTADE

                                              

A RENOVAÇÃO é um dos mais intrigantes e misteriosos poderes da Natureza. Percebi isso ainda criança, quando brincava nas enxurradas que se formavam após a chuva, sulcando as ruas de terra do bairro pobre onde morava. Às vezes, o ar estava denso pela fumaça e poeira dos carros e chaminés; o calor sufocante tornava o ruído metropolitano ainda mais agudo e cacofônico, aumentando o mau-humor das apressadas almas viventes envolvidas na rotineira e penosa corrida do ouro.

De repente, o céu escurecia e, dentro em pouco, a chuva despencava das alturas, cobrindo com sua poderosa voz, entremeada a ribombos de trovões, as vociferações dos insatisfeitos.
Majestoso espetáculo; luminosos rabiscos traçados pelos raios, o forte clarão dos relâmpagos e riachos instantâneos lavando o chão. Latas vazias, caixas de papelão, pedaços de madeira e detritos de toda sorte, levados de roldão pelas águas vermelhas pelo contato com a terra!

E quando a chuva terminava, já de tardezinha, o mundo estava literalmente limpo. A leveza e o frescor da brisa mansa embalando as copas das árvores, para onde regressavam os pássaros, em alegre cantoria; o cheiro de terra molhada, uma inexplicável sensação de paz!..
Até o Sol parecia ter sido banhado pela chuva; seus reflexos vermelhos e amarelos brilhavam com mais intensidade, iluminando o cenário crepuscular!

Apreciei muitas vezes a força renovadora da Natureza quando, por certo tempo, vivi em um lugar onde a água potável era colhida de uma nascente a certa distancia de uma estrada. Em algumas ocasiões a encontrava toldada por animais ou pessoas que ali bebiam e depois chafurdavam, levantando o limo e tornando a água momentaneamente imprestável para o consumo. Mas eu esperava pacientemente, porque sabia que dali a pouco a nascente, jorrando sempre, já teria expulsado toda sujeira, retornando à sua pureza natural.
Descobri também que nos charcos e pântanos, onde há pouca ou nenhuma circulação da água, ocorre a estagnação, formando-se o berço ideal para a proliferação de insetos nocivos e focos de doenças.
Dessas observações compreendi que a chave deste grande mistério da renovação está no movimento que a Natureza imprime aos elementos. Faz com que a água circule, os ventos soprem, o fogo consuma, processando a transformação da matéria e das condições. A vida em si revela-se pelo movimento!
...             
Alguém já disse que somos parte da Natureza; sendo assim, certamente existirão leis interiores a reger nossos destinos, à semelhança das que regulam as relações entre os elementos. Não será a densidade da atmosfera pessoal o produto da fumaça gerada pelas frustrações e desejos insatisfeitos, além da poeira levantada pela ansiedade em superar as próprias carências? Não serão as viciações físicas e morais que adotamos, justapondo nosso conceito de prazer às normas e convenções, a lama que impede o acesso à pureza de “Deus em nós”?
Não será o fracasso repetido o resultado de voluntária estagnação ante o imperativo do progresso?
Existirá, porventura, chuva, fogo ou vento que possa renovar-nos o coração?

Seguindo o exemplo da Natureza, entreguemos-nos aos elementos; se magoados pela saudade, mortificados pelo apego, deixemos que a chuva da razão se derrame sobre as lembranças, lavando e arrastando toda recordação inútil para a Paz interior. A chuva respeitará o sacrário dos verdadeiros afetos.
Se acossados pela incerteza, se frustrados pelo insucesso, se feridos na auto-estima, permitamos que sopre fortemente o vento da sensatez, que derrubará os castelos de cartas, espalhando toda fantasia apaixonante. Ficará em pé apenas o que se construiu em base sólida.
Se confusos em nossos conceitos, se envergonhados de nossos pensamentos, se em guerra desigual com os instintos, aceitemos que o fogo do espírito crepite, luminoso e voraz, queimando toda inutilidade acumulada nos porões da alma, consumindo as mentiras e sutilezas de concepções egoísticas e tacanhas. Poderá ser doloroso, mas o fogo não tocará no que existir de puro, honesto e verdadeiro em nosso coração!

Depois da revolução purificadora da Natureza Interna, nos resta abrir as janelas ao Sol, permitindo que a Luz revele as cores da Alma, como acontece com os cristais. Com essa transcendental paleta, pintemos novos e maravilhosos quadros espirituais, para que a Esperança, a Harmonia e o Amor neles retratados traduzam-se em bênçãos de Paz e Progresso durante a jornada na Terra.
                    
“Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor por longos dias.”                                                                                    (Salmo 23)


Auro Barreiros
Setembro de 2003

domingo, 24 de abril de 2011

O crente e o rabo do cachorro

Dia desses, vendo na televisão uma reportagem sobre tabagismo, me veio à lembrança meu velho pai e o acontecimento inusitado que o livrou do cigarro.

Ele fumou desde a juventude até os quarenta anos. Em sua época e região, fumar e beber eram “coisa pra homem”, faziam parte do contexto social. Só que o tempo passou e ele, que era dotado de excepcional inteligência, começou a travar uma luta contra o vício, por conta do nível de informação que adquiriu em sua vivência como espírita e autodidata. Infelizmente, o cigarro estava ganhando por pontos.

Um belo dia, ele esperava um ônibus, quando sentou-se ao lado um senhor. Terno, cabelo cortado à “escovinha”, uma bíblia nas mãos, o perfil do “crente” daquela época, apelido genérico para os protestantes. Nisso, meu pai resolveu espantar o tédio da demora do coletivo pitando um cigarrinho. Em dado momento, o homem da bíblia dirige-se a ele e começa o seguinte diálogo:
“Moço, o senhor se importa se eu lhe fizer uma pergunta?” “Claro que não, pode perguntar!”
“O senhor crê em Deus?” “Creio, sim.”
“O senhor conhece aquela passagem da Bíblia que diz que nenhum viciado vai entrar no reino dos Céus?” “Conheço, sim.”
“Então, por que o senhor ainda fuma?”
Meu pai era muito educado no trato com as pessoas. Sorriu e disse: “Por falta de vergonha, mesmo, porque eu sei que isso faz mal (pequena pausa de efeito). “Mas eu já estou deixando, aos poucos.”
(E o raio do ônibus não chegava nunca!).

Pouco depois meu pai acende outro cigarro. O homem de terno olha disfarçadamente, limpa a garganta e volta à arena:
“Que mal lhe pergunte (expressão muito antiga), o senhor já viveu na roça?” “Já, sim senhor.”
“Então o senhor já viu cortar rabo de cachorro.” “Já. Judiação.”
O homem fez um gesto de quem fatia alguma coisa e emendou:
“A gente pega o cachorro e vai cortando o rabo dele, pedaço a pedaço...”
Meu pai interrompe: “Não, moço. É um golpe só, no toco, senão o bicho sofre demais!”.
“Então!” (o homem da bíblia faz uma expressão de esperteza) “Deixar vício é igual cortar rabo de cachorro. De uma vez, só, no toco. Porque vai doer, mas só dói uma vez!”

Resultado dessa “reta doutrina”: meu pai deixou de fumar ali mesmo, naquele momento.
E até o fim de seus dias na atual encarnação ele contava, agradecido, a história do crente e o rabo do cachorro.


Auro Barreiros – abril/2011

sábado, 2 de abril de 2011

Nova Era; desejada ou temida?



A humanidade, em todas as épocas, sempre se preocupou com o futuro. Aliás, a História demonstra que, quanto mais civilização e conseqüente sofisticação intelectual, maiores as elucubrações em torno do que seriam os tempos vindouros.

Em todas as religiões essa preocupação gerou mensagens escatológicas, umas aterradoras, como o Apocalipse bíblico, outras alvissareiras e paradisíacas.  Mas, é ponto passivo que a conduta humana é fator preponderante na realização de tais profecias; a maldade, a iniqüidade, a corrupção, a apostasia, dentre outras atitudes indesejáveis, causariam a precipitação dos castigos divinos e a subseqüente seleção, que separaria os justos dos pecadores, premiando uns com a bem-aventurança eterna e outros com a danação eterna ou a destruição. Esta forma de crer e pensar é, ainda nos dias atuais, o sustentáculo de fé para milhões de pessoas, que se esforçam em ser fiéis às doutrinas que professam, com vistas à paz e felicidade eternas na Jerusalém Celeste ou o seu equivalente.

Mas, com o progresso do pensamento, mentes especulativas passaram a contemplar um futuro mais próximo e terreno. A filosofia, como esforço de desvendar as causas primeiras, impulsionou o homem ao aperfeiçoamento de conceitos éticos, tirando-os do campo da fé e situando-os na esfera da razão e do direito. Um ser humano não deve causar prejuízo à liberdade ou à vida de outro, não apenas em função de um dogma religioso (portanto inquestionável), mas também porque contraria o princípio ético da igualdade. Ainda que, em seu íntimo, alimente a esperança de um céu por recompensa à sua bondade, as conseqüências de uma atitude igualitária e respeitosa são mais imediatas e objetivas; a criação e manutenção de um estado de convivência harmoniosa, de que resultam benefícios concretos, como a construção de uma sociedade próspera e segura.

Expressões como “Nova Era”, “Novo Mundo”, são pejorativamente empregadas por mentes fundamentalistas da atualidade. Em torno desses títulos formaram-se mirabolantes teorias conspiratórias, que envolvem desde sociedades secretas e satânicas até extraterrestres, que, mancomunados a dirigentes mundiais, estariam governando subterraneamente o planeta, na tentativa de implantar seu domínio e extinguir os valores que se tem por certos, emanados das religiões e doutrinas tradicionais. Por conta dessas conspirações, há uma verdadeira mobilização no sentido de prevenir ou imunizar os rebanhos, protegendo-os contra a tão temida Nova Era.

Antes de qualquer tomada de posição, é preciso que se conceitue claramente o que é chamado de “Nova Era”. É uma forma definida de governo? É uma religião, ou doutrina? É uma filosofia, como a platônica, que alterou a face intelectual do mundo?  Nota-se que a grande preocupação das religiões é centrada na figura de Satanás, como o mentor de idéias capazes de corromper a alma do homem e aprisioná-lo definitivamente às trevas. Satanás seria o grande chefe de todos os movimentos que, de uma forma ou de outra, buscam a renovação dos costumes e crenças com vistas a um planeta fraterno, solidário e tolerante. E esta seria a primeira incoerência a ser anotada nos movimentos contrários à “Nova Era”; Satanás trabalhando contra si mesmo, ao defender valores que, tradicionalmente, são originários do Bem.  

É preciso que percebamos um fato inconteste: a “Nova Era”, como um distante e predeterminado tempo vindouro, não existe. Todos os dias, quando abrimos a janela para o Sol, uma nova era está começando, pois, ao nos deitarmos na noite anterior, não seriamos capazes de afirmar com certeza que chegaríamos ao dia seguinte. Nossa capacidade premonitória é por demais limitada para isso. Mas nos levantamos, cumprimos a rotina da vida e, ao nosso modo, semeamos o amanhã. Essa compreensão conduz a outra constatação importante: a qualidade do que se planta define a qualidade do que se colhe. O futuro individual e coletivo é fundamentado nessa lei.

Assim, não apenas uma religião, ou fraternidade, ou partido político estão construindo a Nova Era; todo ser humano, por ação ou por omissão, está incluso nessa obra. Nossas atitudes individuais, perante nós mesmos, ou em relação aos que nos rodeiam, geram reações e condições que, direta ou indiretamente, agem no todo da sociedade. A tolerância ou intolerância de cada um é o tempero que pode tornar a vida agradável ou intragável.

O pastor que convence o seu rebanho a cuidar dos mais necessitados, em nome da fé, está construindo o novo mundo. Mas o corrupto, o criminoso que fere os direitos alheios e produz dor e sofrimento, também está semeando o novo mundo. Pode parecer paradoxal, mas, lembremo-nos que uma das qualidades que se costuma atribuir a Deus é a Justiça. Portanto, não seria justo imaginar que a tarefa de reformar o mundo ficasse nas costas de um homem ou de um grupo, para que todos os demais usufruíssem benefícios pelos quais não lutaram. Logo, a responsabilidade por um mundo melhor é de todos, ainda que nem todos estejam conscientes disso.

Se, daqui a algumas décadas ou séculos, o planeta em que vivemos estiver muito melhor; se houver paz e justiça, se todas as crenças e ideais conviverem harmoniosamente, se a dor não for mais provocada pela maldade, palmas pra nós. Seremos vitoriosos, por ter conseguido conquistar coletivamente um estado ideal de vida.

Mas, se a “Nova Era” for a ampliação do despotismo atual, se a crueldade e o desrespeito forem a tônica do comportamento, se os direitos forem ignorados em nome do fanatismo e da arrogância, trazendo com isso a decepção, a descrença e o sofrimento físico e moral, não culpemos a nenhum Satanás por isso, pois seremos nós, os seres humanos, os únicos responsáveis pelos espinhos que plantarmos.

Portanto, é recomendável que avaliemos os conceitos e convicções enquanto “estamos a caminho”, enquanto ainda há tempo de corrigir a rota e escolher a semente. É oportuno que se revejam as crenças e atitudes, na medida em que afetem o semelhante. Todo ideal de mundo melhor que esteja vinculado à adoção de um sistema de crer e pensar, à exclusão dos demais, está fadado ao insucesso, pois, na condição de seres racionais em processo evolutivo, cada um percebe a realidade segundo sua própria capacidade atual. Por outro lado, uma sociedade sem balizas éticas tem poucas chances de estabelecer uma relação de paz entre seus componentes. Encontrar o ponto de equilíbrio é o grande desafio para o homem, na construção da desejada Nova Era.

Auro Barreiros – 20/3/2011

domingo, 27 de fevereiro de 2011

OLHOS NOS OLHOS


 
NO MEU TEMPO DE CRIANÇA, em um canto de meu quarto, eu guardava uma grande caixa de papelão cheia de brinquedos. Era ali o endereço de meu reino de fantasia; com a formidável miscelânea de carros, aviões e navios de plástico, soldadinhos e animais, bolas de gude, molas e parafusos, lápis de cores e gravuras de revistas, eu encenava o mundo em acordo com a ótica de um menino. Promovia animadas guerras contra os bandidos, ocasião em que o bem sempre vencia; mandava homens e animais para Marte, Júpiter e até outras galáxias, não para colonizá-las, mas apenas em visita cordial, pois, no “meu” universo, todos os planetas eram habitados por gente muito evoluída e pacífica!

Muitas vezes, para dar mais realismo às minhas encenações, usava óculos de brinquedo, aqueles com lentes coloridas de acrílico. Eram lentes azuis, vermelhas, amarelas, verdes; cada cor propiciava um clima diferente aos meus devaneios, e eu tinha a ilusão de que o mundo ao meu redor pudesse modificar-se por uma simples troca de óculos!..

Mais tarde, já na adolescência, aprendi na escola que quando olhamos através de uma lente colorida temos uma visão incompleta das coisas, pois algumas cores são anuladas, modificando a percepção visual. Por exemplo, com um filtro vermelho aos olhos, os objetos verdes ficam azuis, quase negros; o amarelo fica quase branco, enquanto o que é vermelho simplesmente desaparece!
O fenômeno se repete com as outras cores, já que a luz branca é o resultado da mistura homogênea de todo o espectro, sendo que cada objeto reflete sua freqüência de onda, absorvendo as demais.

Agora, adulto, ao me defrontar com as diferenças de compreensão humana, recordo-me de minhas brincadeiras com as lentes e faço uma analogia entre a vida e o fenômeno ótico. Alguns contemplam a vida pelas lentes cinzentas do pessimismo; para tais pessoas, tudo é difícil, por se acreditarem deserdadas pela Providencia, incapazes de concretizar seus ideais por imaginar que lhes foram negados os atributos de inteligência que invejam em outros. Por conta das lentes cinzentas, que anulam a visão do belo, julgam a tudo e a todos depreciativamente, duvidando da sinceridade alheia, escarnecendo dos propósitos elevados e das nobres realizações. São, portanto, infelizes por livre e espontânea vontade!..
Outros olham a vida com lentes vermelhas de paixão, sensualidade e violência; centrados na plena satisfação de seus desejos e instintos, movem céus e terras para realizar os caprichos. A carne os comanda, obsessivamente, reagindo de forma dolorosa a qualquer tentativa de disciplina moral; o sexo fala mais alto que a razão, e somente o temor do castigo é capaz de frear-lhes os impulsos. A lente que empregam anula o senso de respeito à liberdade do outro; por esse motivo, quando chamados à ordem, costumam explodir nos inqualificáveis gestos de violência que alimentam as manchetes dos jornais.

Existem ainda os que se deleitam olhando tudo por lentes cor-de-rosa do otimismo irracional. Tudo vai bem com eles, de modo que tudo vai bem com todos!.. Para estes, não há fome nem guerra no mundo, já que não lhes falta o pão à mesa e têm assegurada sua liberdade individual. E porque não almejam mais que seu doce estado vegetativo, a lente que usam lhes nega a visão da realidade.

Meu professor de Ciências Naturais, dos bons tempos de colégio, dizia que a lente mais perfeita que existe está em nossos olhos: o maior grau de transparência, a maior sensibilidade à variação de tons e luz, o equipamento mais sofisticado para o nosso contato com a realidade.
Nossos olhos físicos respondem a todas as cores do espectro visível; já os olhos espirituais refletem apenas a cor da lente que escolhemos para encarar a vida!
Essa é uma grave escolha, vital para a conquista da paz e felicidade que tanto desejamos.
Que Deus nos ilumine.


29/08/1985
Auro

NÃO SÓ PARA BAIXINHOS



Aproxima-se o Dia da Criança: um dia em que se convencionou a celebração dessa bela fase da existência humana.

Até parece que criança é um ser à parte, e a gente costuma esquecer de que passou pelo mesmo caminho. Criam-se métodos e psicologias de relacionamento entre nós, os adultos, e eles, os futuros adultos. E percebe-se que, apesar do esforço, nem sempre há sucesso nesse diálogo, talvez porque, inconscientemente ou não, quase sempre tentamos impor nossas idéias às crianças, na crença de temos conclusões mais acertadas graças à maturidade. E o embaraço começa quando nos falta argumento e lógica para responder aos “por quê”, usados pelas crianças para fulminar nossa pretensão de sabedoria. É o caso do garoto que pergunta ao pai:

-Paiê, por que eu não posso fumar nem beber cerveja?
-Ora, filhão, porque fumar faz mal aos pulmões, ao coração e ao cérebro. E a bebida alcoólica também prejudica a saúde, estraga a inteligência e encurta a vida. Além disso, é muito feio pra uma criança!
O garoto abre mais os olhos e balança a cabeça, com ar de quem entendeu tudo. Trinta segundos depois, ataca novamente:
-Paiê! Cigarro e bebida só fazem mal pra criança?
-Não, filho! São vícios e fazem mal a qualquer um, seja criança ou adulto.
Envolvido com os brinquedos, o menino se dá por satisfeito.

Dias depois, inesperadamente, o guri volta à carga:
-Paiê! Por que o senhor fuma e bebe cerveja?
Pego de surpresa, o pai rebusca desesperadamente a memória, à caça de uma resposta capaz de liquidar o assunto, sem sucesso. Responde então, contrafeito:
-Ora, porque sim!
-Não vale, paiê! O senhor já me disse que “porque sim” não é resposta!
-Tá bem; eu fumo e bebo porque gosto, entendeu?
-Mas o senhor me disse que isso faz mal à saúde, lembra? Como é que o senhor pode gostar de uma coisa que faz mal?
-Eu disse que faz mal pra criança e acontece que eu sou gente grande!
-Ah, mas o senhor disse que os vícios fazem mal a qualquer um...Quer dizer que, quando eu crescer, daí posso beber e fumar que não faz mal, não é isso?
Na fronteira entre o desespero, a vergonha e a raiva, o infeliz pai resmunga:
-Não, não é bem isso!
Depois de um pigarrear nervoso, olhando com cara de bobo o pequeno cilindro fumegante encaixado entre os dedos da mão direita, o adulto tenta consertar:
-Você não entendeu bem; o que eu quis dizer é o seguinte...Ora, vá cuidar de seus cadernos e não amole!
E arremata, sentencioso;
-Você é muito criança pra compreender essas coisas!
E devolve o cigarro aos lábios, evitando encarar o filho, cujo rostinho reflete uma dúvida atroz quanto à sinceridade daquele a quem considera seu mestre, seu herói, o mais que perfeito: seu pai.

Bem, mas, como eu dizia, aproxima-se o Dia da Criança.
Nós, os pais,correremos às lojas comprar presentes;carrinhos teleguiados, bonecas que falam, jogos de inteligência, instrumentos musicais, livros de contos e aventuras...
Presentes que terão duração variável, segundo suas qualidades e resistência à curiosidade infantil. Dificilmente algum chegará inteiro à idade adulta de nossos filhos. Há, porém, um tipo de presente que os acompanhará por toda a vida, participante e decisivo em seus destinos: a educação.
Educação: semente composta de palavras e exemplos, sendo estes bem mais convincentes que aquelas.
As boas palavras só se confirmam pelos bons exemplos.
Os bons exemplos dispensam palavras.

Auro Barreiros, década de 80

domingo, 20 de fevereiro de 2011

A melhor religião

Hoje, assistindo o trabalho artístico de um religioso a quem admiro, comecei a pensar na grave questão das convicções e seus reflexos na sociedade humana.

No que diz respeito a religiões, filosofias e visões de mundo, vivemos literalmente envolvidos por uma imensa colcha de retalhos. O mundo ocidental contemporâneo, predominantemente cristão, tem a falsa noção de que, no passado, o politeísmo era uma confusão de crenças, devido ao considerável número de divindades a serem adoradas. Mas os críticos do paganismo antigo costumam passar ao largo de um detalhe fundamental: se os povos primitivos adoravam diversos deuses, isso fazia de cada culto uma religião ou convicção distinta, porém normalmente atrelada a um conceito de panteon e uma ontologia que dava a cada deidade um papel no drama da criação e no desenrolar dos eventos naturais. Atualmente, porém o que se vê é a adoção de um mesmo conteúdo de doutrina e a proliferação de interpretações, do que resultam deuses diferentes de nomes iguais. Qual seria a conseqüência imediata desse procedimento?

Bem, a julgar pelos sermões e discursos acalorados, nos quais cada grupo considera equivocada a compreensão dos demais, temos como primeiro resultado o distanciamento entre as pessoas.  
De todas as diferenças, parece que a menos tolerada é a de convicções religiosas ou filosóficas. Ainda que sob a presumida unção do sagrado, a rejeição sistemática e irrefletida ao que pareça contraditório vai, pouco a pouco, criando no indivíduo uma segunda natureza, em nível subconsciente. A simples constatação de que o “outro” não comunga a mesma crença cria uma cortina invisível que, como um vidro embaçado, distorce a imagem do próximo. Desse ponto em diante, com base no pré-julgamento de valores, há uma tendência inconsciente de duvidar do seu caráter ou da sua competência, ainda que o chamado “verniz social” reprima a manifestação ostensiva dessa rejeição.

No entanto, em todos os grupos é possível encontrar homens e mulheres realmente notáveis pelo devotamento e atitudes. Pessoas que abraçam uma causa e fazem dela sua motivação de vida. Seres humanos empenhados em contribuir para a edificação de uma sociedade mais justa. Hospitais, presídios e favelas recebem suas visitas, em nome de Jesus, Buda, Kardec ou Krishna, ou mesmo sem rótulos que os identifiquem. Cada um ao seu modo, segundo os princípios adotados, conforme lhe ordena o coração, busca vivenciar a essência da doutrina que lhe serve como guia.

Observando essa aparente incongruência, busco agora uma definição para o que se tem por desenvolvimento espiritual ou auto-aperfeiçoamento. A cada dia mais me convenço de que progredir interiormente é adestrar a visão para ver além da forma, apurar os ouvidos para ir além da mera audição das palavras. Esse treinamento de percepção permitirá ver que, por trás dos símbolos, vestes e rituais particulares, há uma motivação universal para a prática do bem. Será possível então ouvir a solidariedade que vibra além do som do que se diz, o propósito fraterno que se oculta nas entrelinhas das orações e leituras de textos sagrados.

Dia virá em que a diversidade será apenas um detalhe desimportante no concerto fraternal entre os homens. Enquanto esse dia não chega, que cada um seja fiel ao que acredita e vivencie a sua fé, exercitando a tolerância, praticando o bem e crescendo espiritualmente.

Auro Barreiros – 20/2/2011

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

DA EMBALAGEM E DO CONTEÚDO

  

O COMÉRCIO de todo produto ou serviço obedece a certas técnicas que são determinantes para sua afirmação nos meios de consumo. O sucesso ou fracasso nas vendas depende muito de fatores tais como a campanha publicitária de lançamento, o nome de fantasia e, com especial destaque, a embalagem que o revestirá, desde a fábrica até as mãos do consumidor. Por esta razão, inúmeros artigos de excelente qualidade estragam nas prateleiras ou têm suas fábricas falidas devido à mediocridade e falta de atrativos da embalagem que os envolve!

As potências industriais e comerciais conhecem bem isso. Tanto que dedicam profundo interesse na apresentação de seus produtos, dotando-os de artísticos envoltórios de cores escolhidas cientificamente, com base em suas influências diferenciadas no subconsciente humano. E quando, talvez devido a concorrência, as vendas caem, eis que ressurge, tal como a lendária Fênix, o mesmo detergente ou a mesma goma de mascar, “agora em nova embalagem, mais prática e funcional”, o que pouco ou nada revela quanto à melhora de qualidade ou da eficiência do conteúdo.

Com o ser humano as coisas acontecem de modo muito parecido. Cruzamos, todos os dias, com dramas e comédias ambulantes encerrados no peito de nossos semelhantes, sendo nós mesmos portadores de dramas e comédias a se desenrolar no palco do nosso foro íntimo. Facínoras e virtuosos, depravados e castos, religiosos, fanáticos, ateus, místicos e mistificadores compartilham do mesmo ar e da mesma luz, desconhecendo-se mutuamente!

Cada um de nós envolve-se com uma embalagem, que é a personalidade exterior; um instrumento de relação social, que se aprimora pelo acréscimo de experiências, absorvendo a cultura do ambiente. Esse aprimoramento acontece na razão direta da necessidade, embora seja, na maior das vezes, grandemente prejudicado pelo livre-arbítrio que, em algumas ocasiões, não a reconhece de imediato, demorando-se mais que o necessário para absorver as lições da vida.

Numa visão otimista, a personalidade exterior está, para a vida social, como a embalagem para os produtos no mercado; quanto mais agradável à vista, quanto mais impressionante aos sentidos, quanto mais convincente ao intelecto, tanto maiores as probabilidades de sucesso, já que tais características fazem de seu possuidor momentaneamente o centro das atenções, seja pela roupa em dia com a moda, seja pela melifluidade das palavras, ou pelo brilhantismo do encadeamento de raciocínios, ou pela habilidade na utilização de aforismos, excertos filosóficos e citações de autores conceituados na defesa de suas posições e opiniões.

Há, porém, algo a ser considerado quanto à personalidade exterior; tal como a embalagem, pouco ou nada revela sobre o conteúdo. Por este motivo, vez por outra somos desmentidos em nossa tábua de valores, quando uma embalagem aparentemente medíocre deixa transparecer uma centelha de genialidade ou um intrigante reflexo de paz interior; ou quando uma figura humana ricamente ajaezada, solidamente assentada em bases intelectuais, filosóficas ou religiosas de comprovada fidedignidade, minuciosamente lapidada por um convívio seleto, repentinamente, descamba para a agressão, verbal ou até física, por motivos, ao nosso ver, comezinhos. Ou quando da doçura aparente brota o azedume ante o confronto de idéias ou de responsabilidades, azedume facilmente perceptível, a despeito das boas maneiras e do polido vocabulário!

Este intrigante dilema é gerado pela equivocada concepção de termos como evolução, progresso, personalidade e sucesso. Muitos confundem evolução com desenvolvimento intelectual, quando este é apenas um dos aspectos decorrentes daquela.  Outros entendem progresso como acúmulo de bens, quando os bens acumulados, a mais das vezes, atravancam o progresso enquanto ferem a lei do uso. Há os que definem personalidade como o conjunto de informações e comportamentos amealhado pelo indivíduo, quando as legítimas bases da personalidade fundamentam-se no íntimo do ser, independendo de níveis de cultura e informação, por serem paulatinamente erigidas pelas conseqüências morais dos atos.

Já o sucesso é interpretado pela maioria como a súmula de fatos que enaltecem o ego, tais como a fortuna, o prestígio, a satisfação dos sentidos. Mas, desde que o mundo é mundo, pobres e ricos, belos e feios, reis e escravos, sábios e ignorantes buscam a felicidade e reclamam a falta de paz. O suicídio ocorre com muito maior freqüência na alta roda social do que no submundo, onde se morre mais de fome  do que de tédio!

Portanto, o que é o sucesso?
Seria, por acaso, a propalada iluminação?

Ou seria a indiferença absoluta aos altos e baixos da vida, um estado de graça que nos alienasse do meio-ambiente, pelo vislumbre de um paraíso além-fronteira de nossa percepção habitual?

Ou seria ainda o fruto final da existência plenamente vivida, com a aceitação do esmerilhamento moral para eliminar as arestas que ainda impedem a efetiva harmonização do “eu comigo mesmo”, de modo a romper o frágil verniz que pretende disfarçar as falhas decorrentes da ignorância?

Afinal, o que é o sucesso para você?..


Auro

       Década de 80







UMA REFLEXÃO SOBRE O MAL E O BEM



Embora em constante mutação, o Universo tem uma característica notável; a permanência da ação das leis. A matéria orgânica, por exemplo, se mantém coesa enquanto nela existir vida. Tão logo a força vital a abandone, começa a desagregação das moléculas e o retorno ao estado original dos elementos. Se nenhuma vontade interferir, “a Terra e o Universo vão cumprindo seu destino”, como bem diz a Desiderata. A evolução se dá em ciclos de diferentes durações, em obediência a uma espécie de regulamento cósmico. Ou seja, se o homem não existisse, a Terra e o cosmo continuariam existindo.

Mas o homem existe e, dos seres vivos, é o único que tenta impor sua vontade à ordem natural, graças ao arbítrio relativamente livre de que dispõe, além da autopercepção e as faculdades mentais que resultam na chamada racionalidade. Sua compreensão da realidade é circunscrita aos limites dos sentidos, que formam um arquivo de impressões para situá-lo no meio em que habita. Quente, frio, sombra, luz, dor e prazer, fome e saciedade, seriam talvez as primeiras balizas de interpretação da vida.  Ora, os sentidos funcionam segundo as mesmas leis que regem o restante do conjunto. É por eles que o ser vivo tem consciência de quando alguma coisa fugiu à harmonia geral do funcionamento fisiológico, do que é avisado pelo alarme da dor. Certamente, a dor, o desconforto em suas gradações mais contundentes, foi a primeira noção de “mal” para o homem primitivo. Por oposição, o “bem” era o estado de harmonia, prazer e saciedade.

Com o desenvolvimento do intelecto surge a organização comunitária; com esta, as regras de convivência e respeito aos territórios individuais ou coletivos. Estas regras vieram como fruto de experiências, por vezes desagradáveis, que provocariam o nascimento dos embriões do senso ético; mais tarde seriam revistas, ampliadas, aperfeiçoadas, no compasso da evolução mental e emocional.

A vida em comunidade implica na manutenção da segurança dos indivíduos diante dos perigos naturais ou provocados, obtenção do sustento e abrigo, medidas que visam manter a harmonia física e emocional. E neste ponto da evolução brota o conceito de “crime”. Sempre que um indivíduo ou grupo contrariassem alguma dessas premissas, expondo os demais à insegurança e à dor, estariam infringindo as regras máximas da comunidade e, consequentemente, praticando o “mal”.  Nesse contexto, por exemplo, apropriar-se dos pertences de outrem sem o seu consentimento é “roubo”, e seus praticantes, “ladrões”. 

E eis a grande pergunta: o ser humano primitivo praticava o “mal” por desejo consciente de prejudicar o semelhante ou por ainda não saber lidar com as regras de convivência que ele mesmo criou?

E nos dias de hoje, milhares ou milhões de anos desde as cavernas, já nos educamos interiormente a ponto de reconhecer a totalidade do direito alheio?

Considerando que a natureza não tem compromisso com as regras humanas e cumpre fielmente seu papel de reguladora da matéria, podemos inferir que há criações “boas” e criações “más”?

Não seria plausível admitir que o “mal” é criação do homem, em face de sua atual incompreensão das Leis naturais, especialmente em relação à vida?

Auro Barreiros
2010