domingo, 24 de abril de 2011

O crente e o rabo do cachorro

Dia desses, vendo na televisão uma reportagem sobre tabagismo, me veio à lembrança meu velho pai e o acontecimento inusitado que o livrou do cigarro.

Ele fumou desde a juventude até os quarenta anos. Em sua época e região, fumar e beber eram “coisa pra homem”, faziam parte do contexto social. Só que o tempo passou e ele, que era dotado de excepcional inteligência, começou a travar uma luta contra o vício, por conta do nível de informação que adquiriu em sua vivência como espírita e autodidata. Infelizmente, o cigarro estava ganhando por pontos.

Um belo dia, ele esperava um ônibus, quando sentou-se ao lado um senhor. Terno, cabelo cortado à “escovinha”, uma bíblia nas mãos, o perfil do “crente” daquela época, apelido genérico para os protestantes. Nisso, meu pai resolveu espantar o tédio da demora do coletivo pitando um cigarrinho. Em dado momento, o homem da bíblia dirige-se a ele e começa o seguinte diálogo:
“Moço, o senhor se importa se eu lhe fizer uma pergunta?” “Claro que não, pode perguntar!”
“O senhor crê em Deus?” “Creio, sim.”
“O senhor conhece aquela passagem da Bíblia que diz que nenhum viciado vai entrar no reino dos Céus?” “Conheço, sim.”
“Então, por que o senhor ainda fuma?”
Meu pai era muito educado no trato com as pessoas. Sorriu e disse: “Por falta de vergonha, mesmo, porque eu sei que isso faz mal (pequena pausa de efeito). “Mas eu já estou deixando, aos poucos.”
(E o raio do ônibus não chegava nunca!).

Pouco depois meu pai acende outro cigarro. O homem de terno olha disfarçadamente, limpa a garganta e volta à arena:
“Que mal lhe pergunte (expressão muito antiga), o senhor já viveu na roça?” “Já, sim senhor.”
“Então o senhor já viu cortar rabo de cachorro.” “Já. Judiação.”
O homem fez um gesto de quem fatia alguma coisa e emendou:
“A gente pega o cachorro e vai cortando o rabo dele, pedaço a pedaço...”
Meu pai interrompe: “Não, moço. É um golpe só, no toco, senão o bicho sofre demais!”.
“Então!” (o homem da bíblia faz uma expressão de esperteza) “Deixar vício é igual cortar rabo de cachorro. De uma vez, só, no toco. Porque vai doer, mas só dói uma vez!”

Resultado dessa “reta doutrina”: meu pai deixou de fumar ali mesmo, naquele momento.
E até o fim de seus dias na atual encarnação ele contava, agradecido, a história do crente e o rabo do cachorro.


Auro Barreiros – abril/2011

4 comentários:

Zane Ane disse...

EXCELENTE!!! Comigo foi assim, cortei no toco. Estou há 9 anos sem fumar.

Auro Barreiros disse...

Pois é, jovem. Receita simples e porreta. Abraço.

ANDRÉ BARREIROS disse...

E eu que fracassei ao tentar começar a fumar? Tentei de tudo que é jeito, mas não tive força de vontade.

Auro Barreiros disse...

É quando fracassar se torna uma vitória.