domingo, 25 de novembro de 2018

UTOPIAS TRANSFORMADORAS



Ainda que a palavra “utopia” seja de origem relativamente recente, um retrospecto da história da humanidade parece indicar que a idealização de tempos mais felizes é uma prática quase tão antiga quanto o próprio homem.  Talvez, ao redor das primeiras fogueiras, impulsionado pelo mistério da luz, entre as expressões do presente imediato, despontassem tímidas projeções do dia de amanhã, nas quais o alimento fosse mais tranquilamente obtido, as ameaças à vida deixassem de existir e o embrião do conceito de paz tomasse forma em seu cotidiano. Comida e segurança; pode ter sido essa a primeira utopia do homo sapiens.

Utopia é resultado da imaginação, atributo decorrente da autoconsciência que, aparentemente, é a principal distinção entre o homem e as demais espécies de vida. Com os elementos da experiência, armazenados na memória, somos capazes de reinventar a realidade e aperfeiçoar procedimentos, com vistas a um estado ideal, denominado “felicidade”. Certamente, a imaginação criativa é o atributo responsável por tudo o que somos hoje, como civilização. É provável que estaríamos ainda em cavernas ou árvores, caso não tivéssemos imaginado e perseguido o aperfeiçoamento das condições para a existência.  Imaginação depende da observação, que leva à reflexão e à formação de parâmetros necessários à construção de conceitos; eis a base da filosofia e da ciência.

Atualmente, porém, talvez em função de um progresso desenfreado, a tal “felicidade” adquiriu tantas definições quanto o número de interesses que movem a sociedade; assim como um camaleão, o conceito de felicidade muda de enunciado segundo a ideologia política, a dominação religiosa ou os investimentos do sistema de produção e consumo. O resultado desse modelo é uma humanidade ansiosa, por ter que pagar um preço de submissão para alcançar os objetos que simbolizam a felicidade moderna. Uma humanidade frustrada por diferenças sociais tidas como intransponíveis. Uma humanidade infeliz.

Ao longo de incontáveis milênios, é o que temos como resultado de nossas projeções de futuro? Costuma-se dizer que a colheita é o produto da semeadura. Teríamos, então, semeado um futuro de angústia, frustração e medo?

Sim e não.

Sim, pois os fatos estão à vista de todos. As guerras e possessões que acontecem desde a pré-história não são mais do que a tentativa de imposição de conceitos excludentes de paz, prosperidade e felicidade. Todo invasor acredita que a sua versão do bem é a verdadeira e que, para que prevaleça, é preciso eliminar as demais versões.
Sim, pois quando a fé obscurece a razão, altera-se a conduta em relação ao outro; o mundo então se divide em fiéis e infiéis, crentes e descrentes, nós e eles. O Paraíso passa a ser propriedade particular de um grupo. Postura frágil, pois esbarra sempre em aspectos prosaicos de interdependência. Mas, até que se perceba o lamentável equívoco, muitos desencontros, em variados graus, contribuem para a infelicitação do ser humano.
Sim, pois, desde os primórdios, o homem tem associado a felicidade ao quanto pode acumular em torno de si, como posse. Quem, por exemplo, tinha mais ovelhas, negociava as melhores tendas ou jovens da tribo como esposas. Um senhor feudal era invejado pelo número de cavalos e pela extensão de terras que possuía, constituindo um padrão de felicidade a ser almejado. Com o passar dos séculos, parece que nada mudou em relação a isso. Há os demasiadamente ricos, que são invejados pelos demasiadamente pobres.

E não. Não semeamos apenas a amargura decorrente do egoísmo. Antes de sermos severos conosco mesmos, precisamos rever a nossa condição de seres racionais, em processo evolutivo. E quando abordamos o tema “evolução”, consideremos em que bases esta acontece, especialmente para nós, humanos. Assim como aos demais seres vivos, a dor, a fome, o medo e o prazer são, para o homem, instrumentos de estímulo da consciência. E, assim como os animais, aprendemos a evitar o que nos maltrata e a buscar o que nos dá prazer. Para os bichos, a barriga cheia, o acasalamento e a toca aconchegante resolvem as questões existenciais. Mas o homem, por conta de seus atributos mentais, vai além da satisfação momentânea; ele registra, assimila e elabora a experiência, transformando-a em conhecimento aplicável. Isso, porém, não ocorre da noite para o dia. Na realidade, o amadurecimento das experiências pode custar milênios de dolorosas repetições da mesma lição.

As aspirações utópicas têm raiz nas consequências de experiências. O prazer vivenciado pela gratificação dos sentidos, do intelecto ou do espírito, é registrado pela memória como um estado ideal no curso da existência, do qual não se deseja sair ou se distanciar. É, figuradamente, o Jardim do Éden, símbolo da felicidade plena, pela ausência de contrastes que desafiem a estabilidade e tragam a preocupação com um estado futuro. Mas a impermanência natural, o eterno vir-a-ser que caracteriza a dinâmica do Cosmo, não comporta imutabilidades; cedo ou tarde, inexoravelmente, o cenário paradisíaco muda. A natureza exuberante fenece e se recolhe, o calor e a luminosidade solar cedem a vez aos rigores do inverno. Toda a vida na Terra é submetida às alterações decorrentes do ciclo das estações. Mas o homem enfrenta o inverno como uma provação. O frio é fonte de sofrimento e aguça a memória dos dias cálidos e ensolarados, da fartura de alimentos, do conforto. Certamente os povos primitivos, especialmente os que viviam nas regiões mais próximas dos polos, tinham o inverno como uma espécie de castigo, de abandono. Mas foi justamente o rigor do inverno que os ensinou a produzir agasalho e residências mais adequadas às variações climáticas. É possível que, nas noites gélidas, primitivos utopistas visualizavam um futuro de calor, fartura e segurança que, gradativamente, materializou-se pelos esforços da inteligência em direção a essa utopia.

Mas a evolução do pensamento provocou o processo civilizatório, inicialmente motivado pela necessidade da convivência em grupos. Aliás, isso pode ter razões bem prosaicas: enquanto indivíduo, o homem não era o maior, o mais forte e nem o mais veloz dos seres vivos, o que fazia dele alvo fácil de predadores. Sozinho, nem sempre suas habilidades como caçador lhe garantiam a refeição do dia. Mas, em grupo, os humanos tornavam-se capazes de enfrentar e até mesmo derrotar as feras, transformando-as em almoço. Para isso, porém, se fazia necessário um mínimo de harmonia entre os membros do grupo. Estava lançada a semente das leis sociais, que, aos poucos, tornaram-se mais complexas e abrangentes.

Com o advento da agricultura e a fixação desses grupos em regiões como a Mesopotâmia, a civilização propriamente dita tomou impulso. Com relativa segurança física e alimentar, a mente humana ganhou serenidade suficiente para aperfeiçoar suas utopias; eis que surgem ciências matemáticas, como produtos da observação e da reflexão, permitindo a troca das tendas pelas construções projetadas com vistas ao maior conforto e proteção. Não mais acossado pelo medo das feras e  a incerteza do alimento, o homem testemunhava a realização de sua primeira utopia.

Todo esse progresso, porém, trouxe consigo novos e grandes desafios. A vida tribal, com regras mínimas e simples, foi substituída pela sociedade, com linguagem, crenças, relações políticas e comerciais e leis com as quais se pretendia regular todo esse conjunto de interações. E o homem percebeu que sua maior dificuldade, agora, não era sobreviver, mas conviver.

Hoje, milênios depois, o foco da utopia é exatamente esse: a convivência. A ciência, que foi capaz de conectar o mundo à palma de nossa mão, é impotente para remover as barreiras invisíveis do fanatismo, do preconceito, da intolerância. A mesma ciência que devassa o cosmo ainda desconhece os meandros do coração e não tem argumentos para demover o egoísmo. Nosso planeta é hoje uma colcha de retalhos, feita de fronteiras e interesses. As relações internacionais, ainda que envernizadas por aparentes motivações altruísticas e solidárias têm, quase sempre, motivações vinculadas ao lucro material ou político. O homem ainda é o lobo do homem.

Este desafio, no entanto, é bem-vindo, assim como o inverno, a tempestade e as feras, foram imensamente úteis à humanidade em seus primórdios. Nossa nova utopia é vencer o frio da indiferença e ver brilhar o Sol da fraternidade. É eliminar as fronteiras do coração, descobrindo e nos rejubilando com o estreito parentesco entre nós. É transformar, definitivamente, a ciência em um instrumento para a paz. E então ver a Paz como a linguagem universal, conciliando as diferenças, promovendo o despertar das consciências e a tão desejada felicidade.

Sim, é uma utopia. Pode parecer um propósito inatingível. Mas, provavelmente o nosso ancestral que imaginava, diante da fogueira, uma vida melhor, não saberia dizer se e quando seu sonho poderia se concretizar. No entanto, aqui estamos nós, vivendo as utopias de nossos antepassados!



Auro Barreiros
26/11/2018