Ainda
que a palavra “utopia” seja de origem relativamente recente, um retrospecto da
história da humanidade parece indicar que a idealização de tempos mais felizes
é uma prática quase tão antiga quanto o próprio homem. Talvez, ao redor das primeiras fogueiras,
impulsionado pelo mistério da luz, entre as expressões do presente imediato,
despontassem tímidas projeções do dia de amanhã, nas quais o alimento fosse
mais tranquilamente obtido, as ameaças à vida deixassem de existir e o embrião
do conceito de paz tomasse forma em seu cotidiano. Comida e segurança; pode ter
sido essa a primeira utopia do homo
sapiens.
Utopia é
resultado da imaginação, atributo decorrente da autoconsciência que,
aparentemente, é a principal distinção entre o homem e as demais espécies de
vida. Com os elementos da experiência, armazenados na memória, somos capazes de
reinventar a realidade e aperfeiçoar procedimentos, com vistas a um estado
ideal, denominado “felicidade”. Certamente, a imaginação criativa é o atributo
responsável por tudo o que somos hoje, como civilização. É provável que
estaríamos ainda em cavernas ou árvores, caso não tivéssemos imaginado e
perseguido o aperfeiçoamento das condições para a existência. Imaginação depende da observação, que leva à
reflexão e à formação de parâmetros necessários à construção de conceitos; eis
a base da filosofia e da ciência.
Atualmente,
porém, talvez em função de um progresso desenfreado, a tal “felicidade”
adquiriu tantas definições quanto o número de interesses que movem a sociedade;
assim como um camaleão, o conceito de felicidade muda de enunciado segundo a
ideologia política, a dominação religiosa ou os investimentos do sistema de
produção e consumo. O resultado desse modelo é uma humanidade ansiosa, por ter
que pagar um preço de submissão para alcançar os objetos que simbolizam a
felicidade moderna. Uma humanidade frustrada por diferenças sociais tidas como
intransponíveis. Uma humanidade infeliz.
Ao longo
de incontáveis milênios, é o que temos como resultado de nossas projeções de
futuro? Costuma-se dizer que a colheita é o produto da semeadura. Teríamos,
então, semeado um futuro de angústia, frustração e medo?
Sim e
não.
Sim,
pois os fatos estão à vista de todos. As guerras e possessões que acontecem
desde a pré-história não são mais do que a tentativa de imposição de conceitos
excludentes de paz, prosperidade e felicidade. Todo invasor acredita que a sua
versão do bem é a verdadeira e que, para que prevaleça, é preciso eliminar as
demais versões.
Sim,
pois quando a fé obscurece a razão, altera-se a conduta em relação ao outro; o
mundo então se divide em fiéis e infiéis, crentes e descrentes, nós e eles. O
Paraíso passa a ser propriedade particular de um grupo. Postura frágil, pois
esbarra sempre em aspectos prosaicos de interdependência. Mas, até que se
perceba o lamentável equívoco, muitos desencontros, em variados graus,
contribuem para a infelicitação do ser humano.
Sim,
pois, desde os primórdios, o homem tem associado a felicidade ao quanto pode
acumular em torno de si, como posse. Quem, por exemplo, tinha mais ovelhas,
negociava as melhores tendas ou jovens da tribo como esposas. Um senhor feudal
era invejado pelo número de cavalos e pela extensão de terras que possuía,
constituindo um padrão de felicidade a ser almejado. Com o passar dos séculos,
parece que nada mudou em relação a isso. Há os demasiadamente ricos, que são
invejados pelos demasiadamente pobres.
E não.
Não semeamos apenas a amargura decorrente do egoísmo. Antes de sermos severos
conosco mesmos, precisamos rever a nossa condição de seres racionais, em
processo evolutivo. E quando abordamos o tema “evolução”, consideremos em que
bases esta acontece, especialmente para nós, humanos. Assim como aos demais
seres vivos, a dor, a fome, o medo e o prazer são, para o homem, instrumentos
de estímulo da consciência. E, assim como os animais, aprendemos a evitar o que
nos maltrata e a buscar o que nos dá prazer. Para os bichos, a barriga cheia, o
acasalamento e a toca aconchegante resolvem as questões existenciais. Mas o
homem, por conta de seus atributos mentais, vai além da satisfação momentânea;
ele registra, assimila e elabora a experiência, transformando-a em conhecimento
aplicável. Isso, porém, não ocorre da noite para o dia. Na realidade, o
amadurecimento das experiências pode custar milênios de dolorosas repetições da
mesma lição.
As
aspirações utópicas têm raiz nas consequências de experiências. O prazer
vivenciado pela gratificação dos sentidos, do intelecto ou do espírito, é
registrado pela memória como um estado ideal no curso da existência, do qual
não se deseja sair ou se distanciar. É, figuradamente, o Jardim do Éden,
símbolo da felicidade plena, pela ausência de contrastes que desafiem a
estabilidade e tragam a preocupação com um estado futuro. Mas a impermanência
natural, o eterno vir-a-ser que caracteriza a dinâmica do Cosmo, não comporta
imutabilidades; cedo ou tarde, inexoravelmente, o cenário paradisíaco muda. A
natureza exuberante fenece e se recolhe, o calor e a luminosidade solar cedem a
vez aos rigores do inverno. Toda a vida na Terra é submetida às alterações
decorrentes do ciclo das estações. Mas o homem enfrenta o inverno como uma
provação. O frio é fonte de sofrimento e aguça a memória dos dias cálidos e
ensolarados, da fartura de alimentos, do conforto. Certamente os povos
primitivos, especialmente os que viviam nas regiões mais próximas dos polos,
tinham o inverno como uma espécie de castigo, de abandono. Mas foi justamente o
rigor do inverno que os ensinou a produzir agasalho e residências mais
adequadas às variações climáticas. É possível que, nas noites gélidas,
primitivos utopistas visualizavam um futuro de calor, fartura e segurança que,
gradativamente, materializou-se pelos esforços da inteligência em direção a
essa utopia.
Mas a
evolução do pensamento provocou o processo civilizatório, inicialmente motivado
pela necessidade da convivência em grupos. Aliás, isso pode ter razões bem
prosaicas: enquanto indivíduo, o homem não era o maior, o mais forte e nem o
mais veloz dos seres vivos, o que fazia dele alvo fácil de predadores. Sozinho,
nem sempre suas habilidades como caçador lhe garantiam a refeição do dia. Mas,
em grupo, os humanos tornavam-se capazes de enfrentar e até mesmo derrotar as
feras, transformando-as em almoço. Para isso, porém, se fazia necessário um
mínimo de harmonia entre os membros do grupo. Estava lançada a semente das leis
sociais, que, aos poucos, tornaram-se mais complexas e abrangentes.
Com o advento
da agricultura e a fixação desses grupos em regiões como a Mesopotâmia, a
civilização propriamente dita tomou impulso. Com relativa segurança física e
alimentar, a mente humana ganhou serenidade suficiente para aperfeiçoar suas
utopias; eis que surgem ciências matemáticas, como produtos da observação e da
reflexão, permitindo a troca das tendas pelas construções projetadas com vistas
ao maior conforto e proteção. Não mais acossado pelo medo das feras e a incerteza do alimento, o homem testemunhava
a realização de sua primeira utopia.
Todo
esse progresso, porém, trouxe consigo novos e grandes desafios. A vida tribal,
com regras mínimas e simples, foi substituída pela sociedade, com linguagem,
crenças, relações políticas e comerciais e leis com as quais se pretendia
regular todo esse conjunto de interações. E o homem percebeu que sua maior
dificuldade, agora, não era sobreviver, mas conviver.
Hoje,
milênios depois, o foco da utopia é exatamente esse: a convivência. A ciência,
que foi capaz de conectar o mundo à palma de nossa mão, é impotente para
remover as barreiras invisíveis do fanatismo, do preconceito, da intolerância.
A mesma ciência que devassa o cosmo ainda desconhece os meandros do coração e
não tem argumentos para demover o egoísmo. Nosso planeta é hoje uma colcha de
retalhos, feita de fronteiras e interesses. As relações internacionais, ainda
que envernizadas por aparentes motivações altruísticas e solidárias têm, quase
sempre, motivações vinculadas ao lucro material ou político. O homem ainda é
o lobo do homem.
Este
desafio, no entanto, é bem-vindo, assim como o inverno, a tempestade e as
feras, foram imensamente úteis à humanidade em seus primórdios. Nossa nova
utopia é vencer o frio da indiferença e ver brilhar o Sol da fraternidade. É
eliminar as fronteiras do coração, descobrindo e nos rejubilando com o estreito
parentesco entre nós. É transformar, definitivamente, a ciência em um
instrumento para a paz. E então ver a Paz como a linguagem universal,
conciliando as diferenças, promovendo o despertar das consciências e a tão
desejada felicidade.
Sim, é
uma utopia. Pode parecer um propósito inatingível. Mas, provavelmente o nosso
ancestral que imaginava, diante da fogueira, uma vida melhor, não saberia dizer
se e quando seu sonho poderia se concretizar. No entanto, aqui estamos nós,
vivendo as utopias de nossos antepassados!
Auro
Barreiros
26/11/2018