segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

CRONOS





Renovar é lei da vida.
Transformar, talvez, a única certeza.
É a rotina do Cosmo, o perpétuo vir-a-ser, que garante a perenidade das coisas efêmeras. Ao contrário da imutabilidade, que cristaliza e estanca, a transitoriedade é o cenário perfeito para o aprendizado da Alma. Na impermanência é que se colhem fragmentos de eternidade.

Se renovar costuma ser prazeroso, transmutar pode doer. A incerteza do novo provoca receios obscuros, frutos do temor irracional que se tem do desconhecido. O que será? O que virá? O painel do futuro, encoberto pelo véu do tempo, pode causar uma dolorosa expectativa e o desejo inconsciente de não mudar o que já se conhece, de não se afastar do modesto cercado que cada um constrói em torno de sua limitada realidade.

Mas, goste-se ou não, a lei se cumpre. No processo de reorganização dos elementos, gera novas expressões da Inteligência oculta no âmago de todas as coisas. E a vivência do novo desvenda propriedades insuspeitas, possibilidades ainda inimaginadas, motivações e horizontes para a Alma. É como se a paleta do artista apresentasse, a cada amanhecer, um novo pigmento, ampliando o repertório de cores e inspiração para sua tela. Dramaticamente, de ciclo em ciclo, entre lágrimas e sorrisos, prossegue a Alma a execução de sua obra-prima.

Pode até doer. Mas nada paga o júbilo de contemplar seu auto-retrato e reconhecer-se plenamente, descobrir-se por inteiro, integrar-se à perfeição da Lei e ter para si o Universo como o quintal de sua infância.



Auro
31/12/2018

domingo, 25 de novembro de 2018

UTOPIAS TRANSFORMADORAS



Ainda que a palavra “utopia” seja de origem relativamente recente, um retrospecto da história da humanidade parece indicar que a idealização de tempos mais felizes é uma prática quase tão antiga quanto o próprio homem.  Talvez, ao redor das primeiras fogueiras, impulsionado pelo mistério da luz, entre as expressões do presente imediato, despontassem tímidas projeções do dia de amanhã, nas quais o alimento fosse mais tranquilamente obtido, as ameaças à vida deixassem de existir e o embrião do conceito de paz tomasse forma em seu cotidiano. Comida e segurança; pode ter sido essa a primeira utopia do homo sapiens.

Utopia é resultado da imaginação, atributo decorrente da autoconsciência que, aparentemente, é a principal distinção entre o homem e as demais espécies de vida. Com os elementos da experiência, armazenados na memória, somos capazes de reinventar a realidade e aperfeiçoar procedimentos, com vistas a um estado ideal, denominado “felicidade”. Certamente, a imaginação criativa é o atributo responsável por tudo o que somos hoje, como civilização. É provável que estaríamos ainda em cavernas ou árvores, caso não tivéssemos imaginado e perseguido o aperfeiçoamento das condições para a existência.  Imaginação depende da observação, que leva à reflexão e à formação de parâmetros necessários à construção de conceitos; eis a base da filosofia e da ciência.

Atualmente, porém, talvez em função de um progresso desenfreado, a tal “felicidade” adquiriu tantas definições quanto o número de interesses que movem a sociedade; assim como um camaleão, o conceito de felicidade muda de enunciado segundo a ideologia política, a dominação religiosa ou os investimentos do sistema de produção e consumo. O resultado desse modelo é uma humanidade ansiosa, por ter que pagar um preço de submissão para alcançar os objetos que simbolizam a felicidade moderna. Uma humanidade frustrada por diferenças sociais tidas como intransponíveis. Uma humanidade infeliz.

Ao longo de incontáveis milênios, é o que temos como resultado de nossas projeções de futuro? Costuma-se dizer que a colheita é o produto da semeadura. Teríamos, então, semeado um futuro de angústia, frustração e medo?

Sim e não.

Sim, pois os fatos estão à vista de todos. As guerras e possessões que acontecem desde a pré-história não são mais do que a tentativa de imposição de conceitos excludentes de paz, prosperidade e felicidade. Todo invasor acredita que a sua versão do bem é a verdadeira e que, para que prevaleça, é preciso eliminar as demais versões.
Sim, pois quando a fé obscurece a razão, altera-se a conduta em relação ao outro; o mundo então se divide em fiéis e infiéis, crentes e descrentes, nós e eles. O Paraíso passa a ser propriedade particular de um grupo. Postura frágil, pois esbarra sempre em aspectos prosaicos de interdependência. Mas, até que se perceba o lamentável equívoco, muitos desencontros, em variados graus, contribuem para a infelicitação do ser humano.
Sim, pois, desde os primórdios, o homem tem associado a felicidade ao quanto pode acumular em torno de si, como posse. Quem, por exemplo, tinha mais ovelhas, negociava as melhores tendas ou jovens da tribo como esposas. Um senhor feudal era invejado pelo número de cavalos e pela extensão de terras que possuía, constituindo um padrão de felicidade a ser almejado. Com o passar dos séculos, parece que nada mudou em relação a isso. Há os demasiadamente ricos, que são invejados pelos demasiadamente pobres.

E não. Não semeamos apenas a amargura decorrente do egoísmo. Antes de sermos severos conosco mesmos, precisamos rever a nossa condição de seres racionais, em processo evolutivo. E quando abordamos o tema “evolução”, consideremos em que bases esta acontece, especialmente para nós, humanos. Assim como aos demais seres vivos, a dor, a fome, o medo e o prazer são, para o homem, instrumentos de estímulo da consciência. E, assim como os animais, aprendemos a evitar o que nos maltrata e a buscar o que nos dá prazer. Para os bichos, a barriga cheia, o acasalamento e a toca aconchegante resolvem as questões existenciais. Mas o homem, por conta de seus atributos mentais, vai além da satisfação momentânea; ele registra, assimila e elabora a experiência, transformando-a em conhecimento aplicável. Isso, porém, não ocorre da noite para o dia. Na realidade, o amadurecimento das experiências pode custar milênios de dolorosas repetições da mesma lição.

As aspirações utópicas têm raiz nas consequências de experiências. O prazer vivenciado pela gratificação dos sentidos, do intelecto ou do espírito, é registrado pela memória como um estado ideal no curso da existência, do qual não se deseja sair ou se distanciar. É, figuradamente, o Jardim do Éden, símbolo da felicidade plena, pela ausência de contrastes que desafiem a estabilidade e tragam a preocupação com um estado futuro. Mas a impermanência natural, o eterno vir-a-ser que caracteriza a dinâmica do Cosmo, não comporta imutabilidades; cedo ou tarde, inexoravelmente, o cenário paradisíaco muda. A natureza exuberante fenece e se recolhe, o calor e a luminosidade solar cedem a vez aos rigores do inverno. Toda a vida na Terra é submetida às alterações decorrentes do ciclo das estações. Mas o homem enfrenta o inverno como uma provação. O frio é fonte de sofrimento e aguça a memória dos dias cálidos e ensolarados, da fartura de alimentos, do conforto. Certamente os povos primitivos, especialmente os que viviam nas regiões mais próximas dos polos, tinham o inverno como uma espécie de castigo, de abandono. Mas foi justamente o rigor do inverno que os ensinou a produzir agasalho e residências mais adequadas às variações climáticas. É possível que, nas noites gélidas, primitivos utopistas visualizavam um futuro de calor, fartura e segurança que, gradativamente, materializou-se pelos esforços da inteligência em direção a essa utopia.

Mas a evolução do pensamento provocou o processo civilizatório, inicialmente motivado pela necessidade da convivência em grupos. Aliás, isso pode ter razões bem prosaicas: enquanto indivíduo, o homem não era o maior, o mais forte e nem o mais veloz dos seres vivos, o que fazia dele alvo fácil de predadores. Sozinho, nem sempre suas habilidades como caçador lhe garantiam a refeição do dia. Mas, em grupo, os humanos tornavam-se capazes de enfrentar e até mesmo derrotar as feras, transformando-as em almoço. Para isso, porém, se fazia necessário um mínimo de harmonia entre os membros do grupo. Estava lançada a semente das leis sociais, que, aos poucos, tornaram-se mais complexas e abrangentes.

Com o advento da agricultura e a fixação desses grupos em regiões como a Mesopotâmia, a civilização propriamente dita tomou impulso. Com relativa segurança física e alimentar, a mente humana ganhou serenidade suficiente para aperfeiçoar suas utopias; eis que surgem ciências matemáticas, como produtos da observação e da reflexão, permitindo a troca das tendas pelas construções projetadas com vistas ao maior conforto e proteção. Não mais acossado pelo medo das feras e  a incerteza do alimento, o homem testemunhava a realização de sua primeira utopia.

Todo esse progresso, porém, trouxe consigo novos e grandes desafios. A vida tribal, com regras mínimas e simples, foi substituída pela sociedade, com linguagem, crenças, relações políticas e comerciais e leis com as quais se pretendia regular todo esse conjunto de interações. E o homem percebeu que sua maior dificuldade, agora, não era sobreviver, mas conviver.

Hoje, milênios depois, o foco da utopia é exatamente esse: a convivência. A ciência, que foi capaz de conectar o mundo à palma de nossa mão, é impotente para remover as barreiras invisíveis do fanatismo, do preconceito, da intolerância. A mesma ciência que devassa o cosmo ainda desconhece os meandros do coração e não tem argumentos para demover o egoísmo. Nosso planeta é hoje uma colcha de retalhos, feita de fronteiras e interesses. As relações internacionais, ainda que envernizadas por aparentes motivações altruísticas e solidárias têm, quase sempre, motivações vinculadas ao lucro material ou político. O homem ainda é o lobo do homem.

Este desafio, no entanto, é bem-vindo, assim como o inverno, a tempestade e as feras, foram imensamente úteis à humanidade em seus primórdios. Nossa nova utopia é vencer o frio da indiferença e ver brilhar o Sol da fraternidade. É eliminar as fronteiras do coração, descobrindo e nos rejubilando com o estreito parentesco entre nós. É transformar, definitivamente, a ciência em um instrumento para a paz. E então ver a Paz como a linguagem universal, conciliando as diferenças, promovendo o despertar das consciências e a tão desejada felicidade.

Sim, é uma utopia. Pode parecer um propósito inatingível. Mas, provavelmente o nosso ancestral que imaginava, diante da fogueira, uma vida melhor, não saberia dizer se e quando seu sonho poderia se concretizar. No entanto, aqui estamos nós, vivendo as utopias de nossos antepassados!



Auro Barreiros
26/11/2018





segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O PALANQUE




Estamos vivendo dias eleitoreiros. Na caça aos votos, os candidatos desdobram-se no esforço de convencimento. É quando a expressão “poder da palavra” ganha nova dimensão, para além da subjetividade filosófica. Na arte de angariar apoiadores, o discurso bem articulado é fundamental.

E por falar em fundamentos, quais são os alicerces que sustentam o discurso proselitista?

Primeiramente, para fins práticos, vamos estabelecer uma classificação simples para os tipos de discursos.
Temos a fala do idealismo, cujo apelo é a compreensão de valores éticos. Descortina uma visão utópica, levando o ouvinte à concepção de uma vida tão perfeita quanto a natureza humana seja capaz de conquistar, individual e coletivamente.
Há, porém, a proposta tecnicista, que tenta demonstrar, em termos práticos e com o patrimônio da experiência, a margem de viabilidade dos projetos de futuro.
Tanto uma quanto a outra abordagem cobram, para entendimento e possível aceitação, um esforço intelectual; demandam análise, pesquisa, referências e comparações, para que o convencimento esteja vinculado à razão, ainda que emocionalmente, toquem a sensibilidade e despertem esperanças.
Por fim, temos o mais poderoso e temerário tipo de discurso: o populismo. Os fundamentos do discurso populista, embora mesclados aos toques decorativos do intelecto, estão assentados no que há de mais primitivo na psique humana; o medo, a fé, o ódio, com seus desdobramentos e nuances, formam um substrato quase irresistível de convencimento.

Tomemos o medo como o pilar central da construção do discurso populista: você já passou fome? Já sentiu o estômago doer, ciente de que não teria alimento? Se a resposta é sim, é pouco provável que deseje passar novamente por essa experiência. Você tem medo da fome. Nada de errado, pois todo ser vivo sofre ao ser privado de seu sustento. E o populista, o que faz com o seu medo da fome? Ele o reforça, pintando um quadro calamitoso, identifica culpados e promete lutar pelo seu direito a refeições dignas, desde que possa contar com o seu apoio.

Você já viveu algum episódio de violência? Já foi assaltado, ou presenciou algum crime? Se sim, você teme a violência. Aliás, mesmo nunca tendo sido alvo direto de ações violentas, você as testemunha, todos os dias, em todos os meios de comunicação. E isso amedronta, preocupa e faz pensar na segurança dos seus. O populista entende muito bem o seu sentimento; ele o transforma em promessa de campanha, levando a crer que, com ele, você estará seguro (desde que o apoie, pois ele, e só ele tem a competência para enfrentar o problema da violência).

Fome, insegurança, desemprego, doença, são faces do medo subconsciente que todos temos da dor e do sofrimento moral. Sentimentos que se sobrepõem à racionalidade e vulnerabilizam as pessoas, forçando-as a permanecer girando em torno do momento presente. Por conta do medo o homem se torna refratário ao idealismo. Seus projetos, de curto alcance, visam à obtenção de uma seguridade mínima, como a aranha que tece uma teia com o fim específico de capturar insetos e se alimentar.  Em uma palavra, isso é o fisiologismo em seu estágio mais elementar. O populista compreende esse processo. Ele o potencializa, focando o discurso nos objetos do medo. E como o faz? 

Uma das formas de alimentar o sentimento de esperança é a construção de expressões conhecidas como “palavras de ordem”. Na Idade Média, por exemplo, uma pequena frase foi o estopim da mais demorada e sangrenta campanha de guerra que se conhece. “Deus o quer”, bradou emocionado o Papa Urbano II, diante de uma multidão ensandecida pelo ódio aos muçulmanos que ocupavam a Terra Santa.  “Deus o quer”, gritava Pedro, o Eremita, circulando entre os revoltados aldeões. Em poucos segundos, todos gritavam “Deus o quer!” e ali mesmo se engajavam na luta armada, originando as Cruzadas, que ensanguentaram a Europa.

Mas, para haver luta, precisa-se de inimigo. E então, o líder populista usa o expediente do maniqueísmo. Principia por identificar os responsáveis, segundo ele, pela crise atual. Normalmente, esses responsáveis são os opositores políticos. A seguir, trata de demonizá-los, segundo a lógica maniqueísta de “luz e trevas”.  Assim, brota o mais deletério elemento da manipulação populista: o ódio.

O ódio é uma mistura irracional de todos os sentimentos de medo, que se personifica no opositor. O “outro” é o causador das desventuras individuais transportadas ao coletivo. Tem que ser rejeitado, desprezado, desqualificado e, em última instância, destruído. Essa é a lógica implícita do discurso populista, ainda que o autor da fala não o admita. A dissimulação também faz parte do jogo.

Caudilhos, líderes, heróis, salvadores da pátria, são personagens do imaginário infantil, daquele tempo em que, quando em desvantagem nas brigas de rua, a gente corria contar pro papai ou pro irmão mais velho, na esperança de que alguém tomasse as nossas dores.  Crescemos, nos tornamos adultos e nos é imputada uma carga de responsabilidades pessoais. Teoricamente, não há mais lugar para o pensamento infantil de “vou contar pro meu pai”. Mas o subconsciente, às vezes, é traiçoeiro; basta que alguém use as palavras-chave e toque nos pontos sensíveis de nossa experiência, para que, sem perceber, nos peguemos repetindo palavras de ordem e alimentando expectativas de mudança. Esse é o sustentáculo dos políticos profissionais. Graças a essa característica da mente humana, muitos inúteis perpetuam-se em cargos públicos.

Mas, como dissemos, estamos em tempo de eleições. Diante dessa reflexão, há perguntas que se pode fazer a si mesmo: 


Qual é o discurso do meu candidato? É um idealismo utópico, sem alicerces definidos? 
É um tecnicismo frio, onde tudo se resume a dados, estatísticas e percentuais? 
Leva em conta as carências individuais do caráter humano? 
Estabelece pilares de honestidade, transparência, impessoalidade, justiça social? 
É tendencioso, na direção de suas crenças particulares? 
É fundamentado exclusivamente nos erros dos adversários? 
É conciliador? 
A soma de suas propostas aponta para um estado de paz e justiça? 
Há respeito humano em suas atitudes e ideias? 
É um discurso tolerante, plural e sereno? 
É alarmista? 
É tranquilizador?

Reflitamos.
E boas eleições!



Auro Barreiros

10/9/2018

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

ARMADILHAS MENTAIS



Na construção do pensamento, a palavra pode ser comparada à argamassa que reúne as ideias. Quanto maior a precisão do vocábulo, tanto mais coerente é a comunicação, pois o discurso reflete, em algum grau, a elaboração mental e emocional sobre os conteúdos. Numa expressão conhecida, “pintamos com palavras”; é como se o outro, que tanto pode ser um indivíduo como uma plateia, um ouvinte ou um leitor, fosse uma tela em branco onde se deseja retratar as paisagens, objetos ou cenas que pertencem ao mundo interior.
Ao longo do tempo, técnicas foram desenvolvidas para aumentar a eficiência dessa “pintura” com palavras; a oratória, desde remotas eras, teve grandes expoentes. Da mesma forma, a palavra escrita alcançou elevado refinamento, ainda na antiguidade, perpetuando os saberes e inspirações, até os nossos dias.


O estudo da Literatura demonstra que há padrões de linguagem para cada época, do que resulta a necessidade da adequação de textos antigos para melhor compreensão das atuais gerações. Um escrito de Platão[1] ou de Francis Bacon[2], por exemplo, seria quase incompreensível em seu original, sem um conhecimento prévio que o contextualizasse. O modo de falar de suas épocas era o reflexo da cultura, das crenças e até da ordem política de seus povos. No entanto, uma vez assimilada essa característica de estilo, pode se perceber a exatidão com que as ideias eram construídas. Isso se deve a que tais autores dominavam os temas que abordavam. Não é a toa que são conhecidos como mestres, gênios, filósofos.

Em todas as épocas, sempre houve autores de discursos rebuscados, de construções elegantes, de sofismas desafiadores. Aliás, o sofisma arremete aos dias de Sócrates[3], cujo embate com os Sofistas[4] é conhecido de quem estuda a vida daquele sábio. O sofista era hábil em construir pensamentos lapidares, cuja elaboração parecia selá-los como verdades incontestáveis, mas que não resistiam à Maiêutica[5] de Sócrates; ele os levava a desconstruir a própria tese, através de perguntas perfeitamente interligadas pela “argamassa” do raciocínio filosófico.  Despindo o discurso dos adereços de presumida ciência, o Parteiro de Almas extraia a verdade ou desnudava a falácia.

Essa reflexão conduz a uma questão basilar para quem se propõe a construir com palavras; especialmente aquele que pretende transmitir suas verdades pessoais. Qual é o limite ou dosagem da elaboração e ornamentação de um texto ou discurso? 

E lá vamos nós à Grécia antiga, quando um discípulo de Platão afirmara que “o homem é um bípede sem penas”. Diógenes[6], conhecido como O Cínico, surge com um frango depenado e replica: “Eis o homem de Platão”! A anedota traz em si o fato de que sempre é possível “depenar” um discurso, de modo a expor seus fundamentos, por mais poético e erudito que seja.  Logo, o limite ou a dosagem de adereços retóricos é a plausibilidade do cerne daquilo que se propõe. O enfeite no chapéu não acrescenta sabedoria à cabeça. Apenas cumpre a missão de embelezar, no que pode não ser bem sucedido, se o restante do conjunto não for estéticamente  bem posto.

Por outro lado, há também a expressão enigmática, que parece encerrar um mistério. Por exemplo, muitos já devem ter ouvido ou lido a frase “Deus é”.  Na aura transcendental que a envolve, essa afirmação parece bastar a si mesma. Seria o desvendar do primeiro e último segredo do Universo, a natureza de Deus. Mas, o verbo “ser” é auxiliar; sua presença requer um complemento (substantivo, adjetivo), ainda que subentendido ou disseminado no processo argumentativo.  Portanto, Deus é o quê? Espírito, energia, plasma, matéria, pensamento?  Para a filosofia, não basta o impacto emocional de uma citação. É preciso fundamentar o que se afirma. Imagine um filósofo, que conhece o conceito do Não-ser, contido na doutrina védica, bem como os ensinamentos herméticos, que sugerem a atemporalidade de Deus; provavelmente, a simples afirmativa “Deus é” não lhe bastaria. Com certeza, esse pensador iria questioná-la, e caberia a quem a empregou o trabalho de fornecer uma explicação razoável. Ou por outra, admitir que apenas empregou uma frase de efeito, um sofisma, sobre o que não detém conhecimento mais profundo.

Tanto o simplismo quanto o pedantismo são cruéis armadilhas a quem deseja expor seus pensamentos de forma pública. O simplismo é reducionista e denota estreiteza de raciocínio. O pedantismo é imprudente ao se exibir, sujeitando quem o pratica ao escrutínio mais severo de quem o ouve ou lê.

O Caminho do Meio, tão bem descrito por Sidarta, serve também para esse caso. Como diz a canção popular, “uma flor é uma flor e não tem outro jeito da gente dizer[7]”.


Auro Barreiros
10/01/2018
 



[1] Platão (348/347 a.C.), filósofo ateniense, discípulo de Sócrates.


[2] Francis Bacon, Visconde de Alban, também referido como Bacon de Verulâmio (Londres22 de janeiro de 1561 — Londres, 9 de abril de 1626) foi um político, filósofo, ensaísta inglês, barão de Verulam (ou Verulamo ou ainda Verulâmio) e visconde de Saint Alban. É considerado como o fundador da ciência moderna. (Fonte: Wikipedia)


[3] Sócrates (Atenas469 a.C. - Atenas, 399 a.C.) foi um filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga. Creditado como um dos fundadores da filosofia ocidental, é até hoje uma figura enigmática, conhecida principalmente através dos relatos em obras de escritores que viveram mais tarde, especialmente dois de seus alunos, Platão e Xenofonte, bem como pelas peças teatrais de seu contemporâneo Aristófanes. Muitos defendem que os diálogos de Platão seriam o relato mais abrangente de Sócrates a ter perdurado da Antiguidade aos dias de hoje. (Fonte: Wikipedia)



[4] A Escola Sofística e seu pensamento surgiram em um momento de transição na forma de interpretar e pensar da sociedade grega quando o mythos deixava de ser a explicação e justificativa fundamental para cada fenômeno e ação, configurando o Homem e o logos – aqui tratado como razão – a destaque e fundamentação do discurso. Autores modernos,[1] colocam como característica mais marcante do movimento sofista a racionalidade como pressuposto de compreensão de processos tanto racionais quanto irracionais. Porém, cabe ressaltar, que, apesar da ampla gama de objetos de estudos e discussão dos sofistas, ainda assim, tais figuras, geralmente, não são e nem foram admitidas como filósofas, caso se considere a definição de filosofia pelo platonismo. Para Platão, os sofistas rejeitavam a verdade e relativizavam a realidade resumindo o universo a partir, somente, de seus aspectos fenomenais. (Fonte: Wikipedia)


[5] A maiêutica socrática tem como significado “dar à luz”, “parir” o conhecimento (em grego, μαιευτικη — maieutike — significa “arte de partejar”). É um método ou técnica que pressupõe que verdade está latente em todo ser humano, podendo aflorar aos poucos na medida em que se responde a uma série de perguntas simples, quase ingênuas, porém perspicazes.
Sócrates conduzia este “parto” em duas etapas:
·       Na primeira, levava o interlocutor a duvidar de seu próprio saber sobre determinado assunto, revelando as contradições presentes em sua atual forma de pensar, normalmente baseadas em valores e preconceitos sociais.
·       Na segunda, levava o interlocutor a vislumbrar novos conceitos, novas opiniões sobre o assunto em pauta, estimulando-o a pensar por si mesmo. (Fonte: Wikipedia)


[6] O filósofo helenístico Diógenes de Sínope, viveu do ano 413 – 323 a.C., aluno de Antístenes (discípulo de Sócrates), de uma linha de pensamento Naturalista, foi destaque e símbolo do Cinismo pois tornou sua filosofia uma forma de viver radical. Seu mestre Antístenes, criador da escola Cínica (do grego Kynikos, cão, como os atenienses se referiam a eles como cães de rua, sem riquezas, e bens materiais), sua escola é o próprio mundo, ágoras, praças públicas, montes e campos. Mas Diógenes foi o maior destilador de pérolas em sua indiferença perante os valores da sociedade da qual fazia parte. (Fonte: http://socientifica.com.br)


[7] “Eu quero mesmo” – Raul dos Santos Seixas – Cantor e compositor brasileiro (Salvador28 de junho de 1945  — São Paulo21 de agosto de 1989). 

quarta-feira, 18 de julho de 2018

REFLEXOS


Segundo pesquisadores, o espelho aparece como objeto de uso pessoal do ser humano por volta de 6 mil anos antes de Cristo. É provável, portanto, que, até então, a imagem de si mesmo era contemplada pelo homem apenas quando refletida pela superfície tranquila de um lago. Mas este simples evento se reveste de profundo significado quando se constata que, além do homem, são raras as criaturas que se reconhecem quando refletidas. E dessas raras criaturas, o ser humano é a única que dá a esse fato maior relevância, ao ponto de ter aplicado sua Inteligência em desenvolver aparatos que reproduzissem o efeito natural das águas.  Desde os espelhos de obsidiana até os atuais, de vidro ou cristal, passando pelas joias de bronze ou cobre, indispensáveis aos toucadores das mulheres nobres (e reis vaidosos) da antiguidade, transcorreram-se milênios de ciência e arte na busca do espelho ideal.

Contemplar a própria imagem é um ato justificado de diversas maneiras; o cuidado com a aparência, o culto à beleza, a avaliação dolorosa da passagem do tempo e seu efeito sobre o viço da juventude, seriam algumas das motivações para o uso do espelho, que dizem respeito ao aspecto externo de quem nele se contempla.  Mas é possível que existam questões mais profundas e subjetivas relacionadas ao fascínio que esse artefato exerce sobre a humanidade.  Talvez o seu poder maior seja o de provocar a reflexão. 

Aliás, não por acaso, a palavra “reflexão” arremete à principal propriedade do espelho.  Ao se ver e se reconhecer na imagem refletida, o ser humano também tende a se perceber como individualidade, algo ou alguém distinto do grupo a que pertence, ainda que morfológicamente  semelhante aos demais.  As linhas do rosto, a cor dos cabelos, a distribuição da massa muscular, são detalhes que conferem a cada indivíduo uma identidade que o precede na relação interpessoal.  Suas expressões faciais, gestos e olhares elevam essa identidade a um plano de subjetividade, pois expõem facetas do caráter do indivíduo, além de permitir vislumbres de seu mundo interior. Junte-se a isso os trajes e adereços, e estaremos diante da cultura que molda a personalidade que ora se contempla em um espelho.  É um momento de auto-avaliação, que pode afetar o humor e a estima pessoal.

Transportemos essa análise ao aspecto mental e emocional e, por analogia, consideremos a consciência, ou Eu Interior, como um espelho cristalino e fiel, pois, mais que imagens, é capaz de revelar sentimentos, desnudar  segredos, identificar falhas, intenções e omissões. Ao se expor a esse espelho, o homem deve estar pronto para enfrentar a sua realidade pessoal, sem vestes ou máscaras. Pode parecer cruel, mas a verdade é a única linguagem que a consciência conhece. E sempre que se escamoteia a verdade diante da consciência, o espelho se apaga, deixando o homem à mercê de suas ilusões.

Ocorre, porém, que o Espelho da Consciência não reflete únicamente os defeitos e mazelas do caráter; se assim o fizesse, não seria fiel à verdade que o sustenta.  Na imagem que nele se desenha, vê-se também o cenário das lutas da alma em busca do aprimoramento. Ali estão, indeléveis, os retratos de cada conquista de conhecimento, de cada vitória sobre a própria ignorância, de cada momento de prática das virtudes. Com justiça, o Espelho da consciência descortina o caminho percorrido, os erros e os acertos, oferecendo um roteiro para a conquista da felicidade.

Desde que buscada honestamente, a reflexão tem por dom propor ao homem o auto-conhecimento. Inspira a transcendência, sugerindo mais altos patamares de percepção, regiões do Espírito onde o pensar é o ser.

Reflitamos sobre isso, da próxima vez em que nos contemplarmos no espelho!


Auro
17/7/2018


sexta-feira, 8 de junho de 2018

O POR DO SOL



O POR DO SOL

"Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia!" 
(William Shakespeare)

O que torna tão melancólico o entardecer; será o abrandamento da luz diurna, tingindo o espaço com infinitos matizes?
Talvez a brisa, cansada de girar o mundo, testemunhando risos e lágrimas, anseie por compartilhar histórias e sentimentos. Talvez o coração, tocado pelo festival de ternura gratuita, se entregue despercebidamente ao doce enlevo da reflexão, entrevendo multidões de espíritos navegantes do vento, porta-vozes dos dramas e comédias do cotidiano.

Não sei.

Seja como for, o certo é que hoje me peguei pensando em surdina, como se meus pensamentos fizessem parte de uma segunda natureza; como se outro "eu" temesse dar-lhes forma e sentido, receando descobrir neles a minha própria realidade.

Pensava no dia-a-dia de um ser humano comum. Alguém com deveres e direitos, posses e carências, desejos e temores, emaranhados de tal forma que, repetidas vezes, fazem com que seus atos e pensares tomem rumos divergentes, provocando com isso, quase sempre, amargura e tédio.

Às vezes me parece que as pessoas, ao feitio das ostras, encerram-se na concha de seus desencontrados anseios. Um oceano de vida turbilhona ao seu redor, medindo infinitas léguas de esperança, mas, apenas a extrema dor ou o extremo prazer tem o dom de entreabrir-lhes a concha. E me entristeço ao imaginar que a paz e a realização interior podem bater-lhes inutilmente à porta, já que a auto-piedade os ensurdece a tudo o que não seja o objeto de seus desejos reprimidos!
Não lhes ocorre que, a despeito de seu egocentrismo, o Sol ainda nasce ao Leste, dispensando generosamente o sagrado influxo da Vida ao mais modesto ser, tanto quanto a ministros e reis; e que, após vivificar a Terra e os homens, e antes de repousar no Poente, doura o céu com a luz do crepúsculo, oferecendo ao espírito uma fonte de introspecção, que conduz a mente a recordar, meditar e perceber que, embora muitos não saibam ou não aceitem, cada um é parte de um grande Todo. Que a Luz, a Vida e o Amor estão em nós, assim como no ar que respiramos; que a Sublime Essência que nos anima interliga todos os seres, como os galhos de uma árvore.

Se ouvirmos o coração, sentiremos que as dores e alegrias dos outros também são nossas; nada existe isoladamente!

Talvez por isso é que hoje, ao por do Sol, pensando nos que amo e naqueles que sequer conheço, fiquei um pouco triste; por quê, não sei ao certo.

Deve ser a brisa, ou o canto dos pássaros regressando aos ninhos, ou a pálida Luz do Sol Poente, ou, quem sabe, o sussurro dos espíritos vagantes...

Mistérios.




(Minha casa, 15 de janeiro de l997)
                  
                                            Auro


quarta-feira, 16 de maio de 2018

BREVE, PORÉM SINCERA REFLEXÃO SOBRE AS VOCAÇÕES




Ser professor é ter a vocação de transmitir conhecimento e alavancar o progresso das mentes. 

Pensando nisso, lembrei-me de outras vocações bem significativas: a do médico, cujo foco é zelar da saúde física, a do religioso, que se propõe a cuidar da saúde espiritual, e a do político, que pretende participar da construção do edifício social. 

Cada uma dessas vocações, em seu campo, é relevante para o bem das pessoas. 
O problema começa com os equívocos na aplicação das vocações; quando as atitudes misturam, desproporcional e inadequadamente, os conceitos de cada terreno. 

Um médico, por exemplo, pode ser político ou religioso; mas, por bom senso, certamente não tratará de política partidária quando em consulta ou na sala de cirurgia. No púlpito, até por respeito aos fiéis, o pastor não fará conferência sobre medicina, pois está ali para tratar dos fundamentos de sua fé. 

Em plenário, seja qual for a convicção do parlamentar, do político se esperam algumas virtudes fundamentais: equanimidade, tolerância, senso de justiça, pensar no coletivo (pois é pelo e para o coletivo que ele foi eleito). Sem falar na honestidade, pois esta não é virtude: é dever. 

E a honestidade indica que o político não é (ou não deveria ser) eleito para defender os interesses de seu partido, clube de serviço ou denominação religiosa. Honestamente, ele lutará pelo direito, pela inclusão social, pelo acesso às oportunidades para todos os cidadãos. Afinal, a diversidade é uma das características mais evidentes e necessárias à formação e evolução da sociedade. Religião, partido, etnia, comportamento sexual, nada disso deve toldar a visão de justiça de um político por vocação.

É só não misturar as estações!



Auro
outubro/2015


quarta-feira, 2 de maio de 2018

O SAGRADO SILÊNCIO




Quando pensei que já estava acostumado com a agitação do cotidiano, com o ruidoso movimento que caracteriza a vida, de repente me pego buscando silêncio. O silêncio que me ofereça calma e serenidade ao coração. Procuro, então, suprimir ou pelo menos atenuar o burburinho à minha volta; afasto-me da trivialidade barulhenta e me recolho física, mental e emocionalmente, a uma espécie de isolamento.

Na quietude imposta pela solidão, me acomodo e acredito que, finalmente, estou mergulhado no silêncio. Mas logo descubro que essa é uma sensação ilusória; o silêncio pode ser muito eloquente e movimentado.
Na medida em que diminuem os apelos exteriores, mais intensa se torna a cascata perene dos pensamentos. Como uma revoada de pássaros de diversos tipos e cores a pontilhar o azul do céu, ideias e lembranças brotam espontaneamente e, por uma ordenação misteriosa, se agrupam segundo seus conteúdos, induzindo a reflexão quase que compulsória. Obstinado em meu propósito de alcançar o silêncio, entro em luta contra essa correnteza mental; quando imagino ter detido o fluxo das ideias, eis-me envolvido por dilemas, arrazoando, negando, aprovando, justificando!.. 

Frustrado, passo a examinar a natureza dos pensamentos e noto o quanto estão impregnados por algum tipo de emoção. Entendo, então, que não alcançarei o silêncio interior antes de aquietar meu mundo emocional. Com essa esperança, começo a reconhecer as motivações mais íntimas desse torvelinho mental; na raiz dos planos, das convicções, das reminiscências ou prospecções de futuro, estão os desejos reprimidos, os afetos não correspondidos, as lembranças mais caras, os medos e as vontades negadas. Mas ali também estão as crenças infantis, as fantasias de toda ordem, os preconceitos e os produtos do devaneio. É uma constatação incômoda, mas necessária, pois não há como dominar o que desconheço. Tenho, pois, que encarar minhas verdades e recontar minha própria história.

Desse ponto em diante, o mundo mental vai, aos poucos, cedendo lugar às imagens e sensações do plano emocional. Quadros vivos, como num teatro mágico, encenam as minhas dores e meus prazeres. E eu revivo, por instantes, cada momento de angústia ou de contentamento, para além do tempo e do espaço. Consciência e sentimento se unem e se transmutam em outra forma de percepção, capaz de transcender a lógica e as palavras. É como se todas as minhas experiências fossem calcinadas e a cinza resultante representasse a soma do ato de viver.

O ruído interno começa a diminuir, como acontece  num grande salão de festas que vai sendo deixado pelos convivas, ao fim do grande baile. Parece-me então que o desejado silêncio está chegando!..

A sós com a cinza de minhas experiências, agora sem o assédio insistente dos pensamentos e emoções desencontradas, meu coração principia a revelar imagens do que sejam os meus ideais de amor, paz, beleza, justiça, verdade!..  Imagens que brotam do centro do peito, como se ali estivessem desde sempre, porém aprisionadas pelo arbítrio transitório.
Sim, o amor, a paz, a beleza, a justiça, a verdade sempre estiveram presentes no meu coração, ainda que eu não me desse conta! Agora, libertas pelo meu desejo de ser feliz, essas bênçãos primordiais realizam a divina alquimia. Como borboletas multicores, como rosas e lírios, preenchem com alegria o vasto salão do meu Eu. A música da paz toma todos os espaços e ilumina todos os escaninhos dessa empoeirada mansão de mim mesmo!

E assim se faz o Sagrado Silêncio.




Auro
20/4/2018

sexta-feira, 9 de março de 2018

CANIS ET CIRCENSIS III - O SONHO






Drica esteve adoentada. Ficou internada por três dias na clínica veterinária, devido a uns problemas hepáticos. Já em casa e de volta à rotina, pergunto-lhe sobre os dias de internação:

- E aí, como você se sentiu? Quero dizer, como você utilizou a inatividade forçada?
Após uma coçada de orelha, ela responde:

- Aproveitei para refletir mais um pouco.

- Refletir é algo muito salutar para a mente. Ajuda a organizar os conceitos e direcionar as atitudes. Mas você está meio séria, quase não tem latido pra vizinhança. Consequência das reflexões?

A  pulguenta levantou-se, deu uma volta em torno de si mesma e tornou a se deitar,  com o olhar perdido no horizonte. Após um intervalo de silêncio, resmungou:

- Tive um sonho.

E eu que achava que cachorro não sonha! Fiquei intrigado e desejoso de saber o que a filósofa de quatro patas havia sonhado e que a deixou tão compenetrada.

- Tenho pensado muito sobre o comportamento dos bípedes ditos racionais. Enquanto eu era tratada com carinho e respeito por uma veterinária, ouvia o noticiário sobre multidões de humanos que estão sendo expulsos de seus lugares e forçados à miséria. As notícias falam de uns poucos bípedes que retém o que jamais vão poder utilizar (ou comer), enquanto muitos outros não têm sequer um osso por dia pra roer. Isso incomoda, pois até um quadrúpede sabe que a vida se sustém no alimento.

Concordei com um balançar de cabeça.

- Pois é, Drica. E isso tem sido assim desde que o homem pisou sobre a Terra.

A cadela sentou-se à moda canina e me encarou com um olhar irônico:

- Mas vocês não são a coroa da Criação? Ou suas cabeças só servem mesmo pra separar as orelhas? Cadê a tal racionalidade? Cadê a superioridade da espécie?

Nem fui doido de querer defender o indefensável. Optei por focar o papo no sonho da focinhuda.

- E o que foi mesmo que você sonhou de tão perturbador?

- Ah, foi tenebroso! (outra coçada de orelha; preciso ver se ela está com pulga)! Lembra da alegoria dos Cabires, do Banquete de Platão? (Claro que me lembro. Fui humilhado no repente!) Pois é. No meu sonho, me vi contemplando aquela cena dos deuses partindo os Cabires em duas partes, como castigo pela arrogância, e que resultou na separação dos gêneros e forçou cada um a buscar o seu complemento. Até ai, tudo bem; seria uma justificativa para o amor e a multiplicação da humanidade, certo?

Quem sou eu pra discordar? Certíssimo!

“Mas daí, prosseguiu ela, o cenário do sonho se atualizou. As guerras e os crimes de toda ordem desfilaram perante meus olhos, como um filme (esqueci-me de dizer que Drica adora filmes de ficção científica e de época). Vi homens fazendo a outros homens o que nem os animais fazem entre si; crueldades até mesmo com os filhotes, que todo mundo sabe que são sagrados perante a natureza”.

Caramba! A pulguenta sonhou o Apocalipse! Prendi a respiração pra continuar acompanhando o relato emocionado daquele sonho terrível.

“Vi os homens divididos por crenças e políticas, de um lado bradando “esquerda!” e do outro “direita!”; e o faziam com tal fúria que chegavam a babar e revirar os olhos”.
Lembrei-me de cachorro louco, mas preferi ficar calado.
“Foi então que ele apareceu (ele quem?). trazia na mão a mesma espada com que havia repartido os Cabires (ah!). Olhou por cima daquela balbúrdia humana e falou, com voz de trovão: “Não tem jeito. Vou ter que repetir o tratamento. Esse povo está demorando demais pra aprender”. E passou a rachar os humanos, que ficaram com uma perna, um braço, um olho e um ouvido. E aí eu entendi como seria a lição: nessas condições, ninguém poderia andar (talvez uns pulinhos, como o saci) e cada um, se quisesse fazer qualquer coisa pra si, teria que se apoiar no outro”.

Tai, uma solução genial para a discórdia! “Vou buscar o lanche, segure aí”!
...

Enquanto dividíamos o lanche, Drica prosseguiu a narrativa.
“Parecia que estava tudo resolvido, que agora a humanidade iria se unir, nem que fosse por sobrevivência. Mas o tempo acelerou-se em meu sonho e eis que vejo o resultado da tentativa: os meio-humanos se uniam para conseguir comida e resolver suas necessidades. Uma vez saciados, a metade “esquerda” passava a agredir a metade “direita”, sem se lembrarem de que, separados, nada seriam. E assim, se trucidaram mutuamente, com a estupidez característica desses bípedes que se creem racionais”

Pega leve, cadela! “Mais um pedaço de bolo?’



Auro
10/2/2018