sábado, 30 de dezembro de 2017

DILEMA LUMINOSO


Luz é uma palavra mágica. Monossílabo onipresente nos anseios de religiosos e místicos, espiritualistas, intelectuais e artistas, é a síntese da busca da perfeição, do esclarecimento pleno, da verdade em si. Situa-se no topo das aspirações da mente humana, como o Graal, cuja posse é a chave dos mistérios, seja qual for o plano em que a necessidade trafegue. Todos perseguem a Luz, como mariposas apaixonadas, pois tê-la é redimir-se dos erros decorrentes da ignorância.  Aliás, na linguagem simbólica, a ignorância é associada às trevas, em oposição à Luz.

Por conta dessa dualidade, a Luz pode ser tida como sinônimo de felicidade, bem-aventurança, paz; a extinção das aflições e incertezas, pela contemplação da realidade.

Mas é possível que, no processo evolutivo, as coisas não sejam exatamente assim. Pode ser que o desejado encontro com a Luz não traga o contentamento imaginado; antes, provoque uma dolorosa constatação do acervo de equívocos longamente acalentados. Talvez cause muito desconforto ao desalojar crenças primitivas e concepções imaturas, que adquiriram, para seus adeptos, o foro de convicções. Talvez obrigue o buscador a admitir que, ora por indolência, ora por presunção, acumulou ideias prontas, cultuando-as como verdades e pautando por estas a sua conduta. Será constrangedor descobrir-se como o único e negligente causador de suas próprias desditas.

Mas é possível, também, que esse contraste seja natural e necessário. Os prisioneiros da Caverna de Platão só enxergavam sombras do mundo exterior, formando dessa visão o seu conceito de verdade. Permaneceram estagnados nessa condição incompleta até serem conduzidos à Luz, cujo resplendor os incomodou grandemente nos primeiros momentos. Logo, porém, reordenaram suas percepções da vida a partir do mundo real que lhes fora revelado.

No meio do caminho de nossa vida/ Encontrei-me numa selva obscura/ Que a estrada reta fora perdida”. Para Dante Alighieri, este foi o momento da cruel constatação de que, para reencontrar sua amada Beatriz, precisaria cruzar o abismo da própria ignorância. Entendera que pouco ou nada conhecia, tanto da Luz que buscava quanto da Treva em que habitava, na placidez da inconsciência. Graças à Luz, desceu aos infernos e contemplou a crueza dos tormentos reservados aos incautos. Aprendeu que, em cada pena, existe a raiz de um pecado; e que todos os pecados não eram mais do que a ausência de Luz!..

E somente após a claridade ter-lhe revelado os porões da obscuridade espiritual pôde o poeta ascender aos céus, um a um e, finalmente, reunir-se à pura, casta e Luminosa Beatriz, selando assim um sonho de amor!



Auro Barreiros
31/12/20’17


quarta-feira, 1 de novembro de 2017

ANATOMIA DA ALMA - CAPÍTULO I



Anatomia da Alma – Capítulo I
(Passeando pelos porões)


O ressentimento é dissimulado.
Mostra-se choroso, desolado,
Um injustiçado, embora virtuoso.

Clama pelo desconhecimento,
Que lhe causa surdo sofrimento,
E lhe maltrata o ego caprichoso.

A mágoa desbotada do passado
Ainda o mantém agrilhoado
Aos pés de uma imagem carcomida.

Porém, por ser assim, dissimulado,
Tem dias que sai, fantasiado,
E desfila com garbo na avenida,

Disfarça entre as dobras da plumagem
E nos belos meneios da linguagem
O surdo latejar da velha ferida!

Como Prometeu acorrentado,
O ressentido vê perpetuado
O seu tormento, como chaga viva;

Aprisionado aos seus rancores,
Apaixonado pelas próprias dores,
É tão somente uma alma cativa.



Auro Barreiros
2/11/2017











sexta-feira, 20 de outubro de 2017

CANIS ET CIRCENSIS II - O DESAFIO



E como naquele final de tarde soprava uma brisa inspiradora, Drica iniciou a prosa me lançando um desafio. A danadinha propôs que os questionamentos de ambas as partes fossem respondidos em versos. Assim como um duelo de repentistas. Fiquei surpreso, pois não conhecia a vertente poética dessa criatura, cuja existência quase finda em seus primeiros dias por conta de uns carrapatos. Mas, desafio feito, desafio aceito. Decidimos no par-ou-ímpar pra ver quem começava. Coube a mim a honra de iniciar a porfia e, matreiro, resolvi me apegar aos pais da matéria.

Drica, minha jovem; no Banquete de Platão acontece um debate sobre a natureza do amor, onde surgem alegorias incríveis, como a dos cabires e a justificativa para a separação dos sexos. (Ela levanta uma orelha, em sinal de atenção) Sócrates, que era o palestrante mais esperado na ocasião, após exercer a sua peculiar maiêutica e conduzir o raciocínio para uma nova abordagem, surpreende a todos com uma visão psicológica do sentimento, em que evoca a deusa Necessidade para argumentar que o Amor, ao menos em relação ao homem, não é um deus, nem um “daemon”, mas um gênio. Sua natureza é de carência, que leva à busca do que lhe falta para sentir-se pleno. E você, o que acha da tese de Sócrates”?
Ponteei a viola (dém, dém, dém, dém) e a quadrúpede abusada mandou a letra:

“Esse grego era mesmo bem esperto,
Discordou sem ferir nem criar clima,
Sem trair o fiel manteve a rima
Na mensagem do pensamento aberto,
Sabiamente apontou o rumo certo
Conforme aprendeu com Diotima!”
(Caramba!)
“Fosse um deus e tivesse a plenitude
E a total satisfação de seu desejo
Não seria o Amor, pelo que vejo,
Buscado pelo ser, como virtude;
Mas apenas o sonho que ilude
E à fugaz fantasia dá ensejo”!

(Eu, hein?)

Dos Cabires a simbologia
Nos recorda que a dualidade
É fase transitória da verdade
De que tanto se ocupa a filosofia,
Pra que o homem descubra, algum dia,
A origem da tal Necessidade”!

Pegou pesado, a pulguenta! Já meio arrependido de ter aceitado a proposta poética, me concentro no ponteio da viola, que, no momento, é minha única fortaleza. Drica dá uma coçada na orelha e prossegue:

Uma coisa, porém, é o sentimento
Que motiva a buscar o seu reverso
Outra coisa é a Lei que canto em verso,
A matriz do perpétuo movimento
Dos arcanos reais, do firmamento
E da vida que pulsa no Universo”!

(!)

O amor que a Natureza expressa
É reflexo da Lei que o sublima;
Embaixo, você sabe, é como em cima,
E tudo o que existe assim começa;
Esta é a parte que nos interessa
Conforme ensinara Diotima”!

Acordes finais da viola, propus uma pausa para o lanche, pois conheço a filósofa canina (e hermetista, como acabo de descobrir) e sei que só assim terei folga para me preparar.

“Mais um biscoitinho?”

“Au!”


Auro Barreiros
20/10/2017

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

CANIS ET CIRCENSIS - I





Drica, minha cadela, é versada em filosofia. Do alto de sua avançada idade, para os padrões caninos, volta e meia me agracia com preciosas reflexões. Reflexões maduras, profundas e abrangentes, que estabelecem correlações inusitadas entre sua ótica de quadrúpede e o plano das consequências, que normalmente afeta muito mais os bípedes ditos racionais.

As repetidas conversas de fim de tarde findaram por desenvolver entre nós uma espécie de comunicação não-verbal (ao menos de minha parte), algo entre a linguagem corporal e a telepatia. 
Numa dessas prosas, enquanto assistíamos o jornal da noite, propus (bem ao estilo socrático), uma análise da paixão humana pelo poder. Esse “humana” foi sugestão dela, que, de cara, me pontuou que cachorro não tem isso. Segundo ela, a única coisa que se assemelha a paixão no universo canino é o amor ao dono, muitas vezes imerecido, mas incondicional e perene.

Mas, como eu disse, assistíamos o jornal e nos debruçávamos no exame das complexas e esdrúxulas personalidades que nele desfilavam; em nível mundial, homens alucinados, tendo nas mãos uma chave que pode abrir as janelas do céu ou escancarar os portões do inferno. Por suas atitudes provocativas e infantis, o temor é de que prefiram a segunda hipótese.

“Como você vê essa escalada de tensão entre potências, que tem o potencial de arrastar a humanidade para mais um fratricídio de proporções globais”?

Drica se levanta, vai à varanda, dá uma meia dúzia de latidos e volta, sentando-se aos meus pés, com uma expressão de esperteza no olhar, que minha recém-desenvolvida habilidade telepática rápidamente converte em uma resposta: 

“É deplorável, mas compreensível o comportamento  desses humanos. Apesar de toda a sofisticação que os rodeia, ainda não aprenderam a separar o instinto da razão. Como os animais, querem “marcar território”, mas desconhecem o limite de cada demarcação. Ainda não aprenderam conosco a se fazerem respeitados pela sua própria natureza, de modo que não lhes basta latir; tem que morder, também”.

(Pausa para reflexão e mastigar um pedaço do pão com manteiga do meu café da tarde).


Auro
14/10/2017


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O BUSCADOR DA VERDADE (AQUELA QUE NÃO QUER CALAR)





Era inverno. Ali, no Himalaia, essa estação do ano era a ideia mais próxima que se poderia ter da morte, ainda que a morte fosse definida pelos ensinamentos de meu guru como mera ilusão provocada pelas limitações da consciência aprisionada à carne; Maya, em uma palavra. Mas era uma ilusão muito real e dolorosa para mim, que ainda  não me libertara das trevas da ignorância e não passava de um simples Chela (discípulo, para os leigos). Um simples e medíocre Chela, que, naquele dia de cruel inverno tibetano, escalava a face mais íngreme de uma certa montanha (não direi qual, para preservar o segredo da morada do meu guru), buscando a luz que saciaria minha sede de conhecimento.

Depois de um dia interminável de tropeços, quedas, dolorosas rachaduras nos lábios e mãos, pés petrificados e a constante ameaça de hipotermia, eis-me à entrada da caverna em que aquele homem santo meditava, sentado em lótus. A débil chama de um candeeiro abastecido com manteiga de iaque lançava reflexos dourados à barba longa e branca (lembrava uma estalactite), formando uma imagem que induzia o respeito e a veneração.
A pedra gelada que me serviu de banco certamente estava à minha espera, pois reunira todo o frio da montanha para me congelar a coluna, desde a base até a nuca. Rígido e feliz por estar ali, aos pés do mestre, meditei por algum tempo (horas, dias, meses, talvez; isso é irrelevante, pois, segundo o mestre, o tempo também é uma ilusão da consciência limitada, em sua prisão de carne. Maya, claro!).

Ao regressar do quase-nirvana, as questões transcendentais que me levaram até aquele santo lugar começaram a enfileirar-se em minha mente. Decidi então iniciar meu aprendizado, dirigindo ao sábio asceta a primeira de incontáveis perguntas.

“Iluminado Instrutor das almas trevosas (a praxe ritualística determina que, dirigindo-se ao Guru, uma exaltação cerimoniosa deve preceder a fala), podeis me explicar a origem e sentido da vida?”

Aguardei, reverente, a breve introspecção daquele que me tiraria a venda dos olhos espirituais. Em poucos minutos, o vetusto ser abre os olhos e começa a me responder, com um leve sorriso a bailar em seus lábios:
“Ignóbil Chela (o esculacho também é praxe ritual), isso é de uma simplicidade infantil. A origem da vida...(não vou relatar a resposta do mestre, pois a mesma demorou mais ou menos uma semana para ser concluida. E era um resumo para pricipiantes como eu).
Transbordante de alegria, eu teria até dançado, se a rigidez imposta pelo frio não me tolhesse quase todos os movimentos. Finalmente, estava recebendo a luz que tanto buscara, desde o Paquistão até a Grande Muralha da China. Inebriado e feliz, passei para a próxima questão:

“Ó, Profundidade Oceânica da Sabedoria Ancestral (dessa vez eu caprichei)! Podeis descrever as dimensões espirituais?”
“Claro, estúpido antropoide! Mas preste atenção, que só falarei uma vez!” E por mais uma semana, o Erudito preceptor discorreu sobre o tema. Eu, absorto, bebia cada palavra.
E assim, pergunta após pergunta, fui realizando meu austero discipulado. O intenso frio já não me incomodava; aliás, à exceção do queixo e dos olhos, todo meu corpo era uma pedra de gelo insensível.

Um dia, ao final de uma bela tarde de inverno (esqueci-me de dizer que o inverno nunca termina no Himalaia), resolvi formular a questão das questões, a dúvida que me perseguia por vidas afora. Respirei fundo, conforme as práticas de Pranayama e mandei:

“Venerando Guardião das Verdades Eternas (esse eu havia reservado para uma pergunta especial); como bem o sabes, a humanidade está vivendo um caos de ordem ética, cujas consequencias espirituais podem ser notadas na insalubridade mental e emocional da sociedade (o mestre, até então sorridente, começou a mudar a expressão; encolheu os lábios, franziu levemente o cenho e me encarou, entre curioso e contrariado). E a parte mais contraditória dessa crise é ser protagonizada por aqueles que têm acesso ao conhecimento e, por justiça, deveriam ser os primeiros a preservar os valores morais duramente conquistados. Agentes da lei que acobertam e até praticam o crime, magistrados que se vendem e vendem seus favores, homens públicos que se locupletam do bem que é de todos, feito baratas no melado, insensíveis ao sofrimento que provocam ao redor. Castas privilegiadas que arrogam supremacia em função da crença ou da cor da pele, sistemas econômicos que encampam a ciência em prol do lucro desmedido, comerciantes da fé e das armas, uns e outros gerando a guerra como fonte de renda; tudo isso acontecendo debaixo do céu de Brahman, Jeová, Alah, ou seja lá quem for o Regente Universal! Dizei, ó Farol das Almas! Como entender isso? E, principalmente, como acabar com isso?”

O Magnânimo Yogue estava visívelmente contrafeito. Fechou os olhos e demorou-se por algum tempo (dias, semanas, meses? Não importa, pois ele mesmo disse que o tempo etc, etc.), até que, concentrado, inspirou profundamente e emitiu um longo gemido:

“Hummmmmm!..”

Sem entender se traatava-se de um mantra ou uma resposta cifrada, aquietei minha mente e entrei em meditação profunda, enqanto o vento cortante do inverno tibetano terminava de congelar meu corpo.

Não sei por quanto tempo permaneci nesse transe. Mas em cerca de mil e quinhentos anos a Lei de Samsara já me trouxe de volta a esse plano por quinze vezes. E até agora não sei se o gemido do mestre era um mantra, uma resposta ou só um gemido.



Auro Barreiros,
O incompetente Chela

20/8/2017

domingo, 10 de setembro de 2017

A REGRA DE OURO


Na antiguidade, escultores e construtores definiram um princípio de proporção ideal, cuja aplicação deveria conferir às suas obras o mais elevado sentido de harmonia. Esse princípio era conhecido como “número de ouro”, ou “proporção áurea”[1], ou ainda (e por justa causa) “divina proporção”, já que refletia, entre outras coisas, o dimensionamento do corpo humano e suas intrigantes relações matemáticas.
Desde então pode se reconhecer a presença dessa proporção áurea nas obras dos grandes mestres da escultura, da pintura e da arquitetura, exatamente pelo que eles buscavam traduzir em suas criações: o equilíbrio e a harmonia próprios da natureza.

Mas a busca da perfeição não se limitou às ciências e artes; na filosofia de Platão encontramos a noção do Mundo das Ideias, o arquétipo em que o plano terreno se reflete, de forma imprecisa e distorcida como as sombras do Mito da Caverna. Para Platão, o Bem, o Belo e o Justo são princípios que têm existência real e constituem a essência de toda a Criação; logo, aperfeiçoar algo ou a si mesmo consiste básicamente em desvencilhar-se das sombras e retornar ao mundo real, daí se dizer que “aprender é recordar”.

Esses conceitos estão no âmago das principais correntes de pensamento espiritualista e grandes religiões. A percepção da lei natural de compensação transparece na doutrina do Karma e nas exortações do Evangelho em relação às atitudes para com os outros e suas consequências. Fazer ao próximo o que gostaríamos que nos fizessem é um conselho que recebeu o título de “Regra de Ouro”; o exercício pleno dessa regra significa o mais desejado entendimento das leis divinas e suas implicações na conquista da paz e da felicidade em Deus.

Mas, talvez em função dos limites da mente humana, ajustar-se a essa Regra de Ouro ainda não é uma tarefa simples. Muitas vezes o retorno das mais bem-intencionadas atitudes é o descaso, que pode culminar no que é percebido como ingratidão. É pouco provável que exista alguma pessoa adulta que não tenha sua história de frustração diante do menosprezo alheio ao seu sincero desejo de ajudar. Na maioria das histórias registra-se um fato comum; alguém que tenta partilhar com o outro algo que, para si, é a expressão do bem, da verdade e da justiça, sofrendo a decepção de não ver compreendidos e aceitos os seus propósitos, conselhos ou gestos, do que resultam amizades abaladas, laços afetivos rompidos, esvaziamento da confiança e do respeito mútuo.

Mas, afinal, em que consiste a decepção? Por que nos importa tanto o reconhecimento dos outros em relação aos nossos atos e intenções? Provavelmente, a decepção tem raízes no desejo de gratificação; a mente primitiva requer a retribuição, o prêmio, a distinção dos possíveis gestos de eventual despreendimento. O instinto cobra a satisfação e a mente racional estipula o preço: o aplauso, a aclamação, o agradecimento e a reciprocidade. Essa conduta está de tal forma arraigada ao inconsciente que se manifesta até mesmo nas relações que o homem tenta estabelecer com o Deus de sua compreensão. Na maior parte das religiões existe a prática da permuta entre o fiel e a divindade; determinada graça pode ser concedida, se tal e qual promessa for paga ou algum tipo de sacrifício seja feito.  E quando a graça não é alcançada, ocorre o pensamento de que a promessa ou o sacrifício não tenham sido suficientes, ou foram mal cumpridos. Raramente passa pela cabeça do homem que sua concepção das virtudes de Deus pode estar equivocada; que o desejo humano pode não estar em acordo com a Lei Universal, ou que a intervenção solicitada pode ser imerecida. Assim, por ignorância a respeito do que acredita, o ser humano oscila entre a fé vacilante e a dúvida inconfessa.

Temos então, diante de nós, um impasse: aceitamos que Deus existe e, por ilação, atribuímos-lhe certas características morais, tal e qual o faríamos a um lider ou soberano. Repetimos há séculos (ou milênios) que Deus é Onipotente, Onipresente e Onisciente e, bem por isso, é perfeito em Justiça e Amor.  Mas nem sempre, ou quase nunca conseguimos enxergar essa justiça e esse amor no desenrolar de eventos trágicos e das aparentes incoerências do que se costuma chamar “destino”. Muito do que dizemos crer a respeito de Deus permanece apenas no campo da dialética, sem o alicerce da convicção.
Isso é compreensível, pois há conceitos para os quais a mente humana carece de parâmetros: eternidade, imortalidade, infinitude... Dentre estes, talvez o mais complicado seja conceber o Princípio de toda a realidade, pois este reúne em si todos os outros conceitos como atributos. Um Ser Supremo tem que ser incriado, pois, se tiver uma origem, por mais remota, já não é eterno e deixa um vácuo de tempo no seu “antes”. Tem que ser onipresente, de amplitude infinita, pois, se sua abrangencia tiver algum limite, o que existirá além daquela fronteira?Outro Deus? Tudo isso parece óbvio, mas, quando tentamos racionalizar a natureza dessa Entidade Suprema, esbarramos na dificuldade de conceber o que não tem um espelho em nossa mente.

A provável solução para esse dilema talvez seja buscar a compreensão do cosmo que nos rodeia e do qual somos parte, pois isso é passível de percepção e assimilação em nível do intelecto. Tal exercício poderia, certamente, ampliar a concepção de uma Consciência Suprema, universal e ilimitada no tempo e no espaço. Disso resultaria uma reavaliação de critérios no relacionamento com essa Consciência e com o Cosmo, do qual, supõe-se, todo ser é parte. O desejo inconsciente de retribuição seria convertido na busca de harmonia, como consequência natural de pensar, sentir e agir segundo leis impessoais, equânimes e justas por excelência.

Equanimidade e justiça; talvez seja esta a chave para a compreensão de uma “Regra de Ouro”. O Mestre Jesus a explicitou de forma sucinta, quando aconselhou que não se deve fazer aos outros aquilo que não se deseja para si. Mas o oposto também é verdadeiro; fazer ao outro o que se deseja para si faz parte da construção dessa regra de convivência. Isso tem relevância, principalmente, nas relações interpessoais, nas questões básicas de direitos e deveres. A percepção de reciprocidade se reflete, ainda que imperfeitamente, nos códigos e leis humanas.
Porém as leis e códigos, por serem de origem humana e elaborados segundo os limites de época, costumes e conveniências, nem sempre refletem essa reciprocidade no grau desejado. Concedem-se privilégios por razões obscuras, ao mesmo tempo em que são desconsiderados direitos naturais do homem, como as liberdades, a sobrevivência, o acesso ao conhecimento.  O corporativismo, que nada mais é do que o egoísmo no coletivo,  legisla e decide conforme interesses imediatos de uma classe, em detrimento da ética, forjando assim uma moral flutuante, que propicia a leniência dos costumes e a inércia espiritual.

Não há como conceber uma “Regra de Ouro” no sentido original do conceito, sem dissecar a práxis ética e moral, submetendo-a ao crivo da reciprocidade. O ser humano não deveria ser bom por temor a um Deus ou a uma lei, mas por empatia; a dor do vizinho me dói, mas sua alegria me alegra.

E isso nos traz de volta o questionamento quanto à relação entre o homem e seu Deus, o Deus de sua concepção.  O que esperar de Deus? Bem, isso vai depender do que se imagina como atributos dessa entidade misteriosa; como será seu pensar? Terá Deus sentimentos e vontades semelhantes às do homem? Ele se aborrece? Ele se entristece? Ele tem preferências ou antipatias? Tem inimigos? Se o Deus concebido tem todas essas características, não dá pra se esperar muito dele em termos de Justiça, pois um deus assim é apenas um homem, ainda que a ele se atribuam poderes transcendentais. A relação com seus devotos terá a cor das paixões humanas, inexatas, injustas e imprevisíveis.
Mas, e se esse deus for de tal forma benevolente que ignore as insanidades do tutelado, agraciando-o com generosas bênçãos em troca de meia dúzia de palavras adocicadas em uma prece de louvor? Seria uma divindade mais confiável?

No que diga respeito à concepção de Deus, não há como fechar questão. Cada um a desenvolve por si e segundo sua própria percepção. Mas o bom senso indica que a convivência com a ideia de Deus será tão harmoniosa quanto for fundamentada na compreensão das leis naturais e cósmicas. Essa sintonia ideal é definida por Jesus, quando resume a Lei e os profetas de seu tempo em um magnífico ensinamento: “Ama ao próximo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as coisas”[2]. Senão, pensemos: é possível amara ao próximo sem amar a Deus? Talvez sim, para os ateus. Estes não concebem uma entidade ou força inteligente como criadora e ordenadora do Cosmo, mas isso não é impedimento para que nutram o mais sincero sentimento fraterno em relação ao semelhante. E amar a Deus sem amar ao próximo? Sim, também é possível, para quem alimenta a ideia de um deus-homem, com as mesmas limitações psicológicas de suas criaturas. No entanto, considerando-se a impessoalidade como prerrogativa essencial para uma justiça perfeita, esse amor seria unilateral, pois não encontraria eco na dimensão cósmica. Esse tipo de concepção da natureza de Deus delimita suas benesses ao restrito círculo de afetos e interesses do devoto, contrariando assim a noção de equanimidade.

E o que tudo isso tem a ver com a Regra de Ouro?  Bem, dissemos antes que essa Regra pretende refletir o equilíbrio e a harmonia da Natureza. E a Natureza é manifestação visível da Consciência Suprema, ou Lei Universal a que a mente humana atribui a origem e domínio de todas as coisas. Logo, os eventos naturais e cósmicos refletem, em alguma grandeza, a forma ideal de justiça. O homem, por seu atributo de autoconsciência, pode testemunhar em si mesmo essa realidade, na alternância entre dor e prazer, infortúnio e felicidade, carência e plenitude. Sua consciência, ainda que limitada,  é capaz de entrever o encadeamento de causas e consequências que produz o seu destino. Mais ainda, percebe que seus desejos movimentam as peças desse jogo, o que o faz compreender que é, em grande medida, o artífice do já mencionado destino.

Quanto mais amadurece na compreensão dessa dinâmica da Lei Cósmica, menos o ser humano encontra justificativa para a auto-piedade. O reconhecimento de que seus pensamentos, palavras e ações constroem o futuro que terá que viver, fatalmente o induz a considerar o “outro”; seu próximo, com quem partilha o drama da existência. Mais dia, menos dia, se convencerá de que, a despeito das aparentes diferenças, a estrutura interior de todo homem ou mulher é fundamentada nos mesmos princípios naturais; fugimos da dor e buscamos o prazer, a felicidade, a compensação, ainda que, por ignorância, frequentemente nos equivoquemos, provocando justamente o sofrimento que pretendíamos evitar. Daí a imensa profundidade do conselho de Jesus: “Tudo o que quereis que vos façam, façais também aos outros”[3].

Mas, mesmo esse majestoso conselho precisa ser bem compreendido, para que não sirva de desculpa à invasão da liberdade do próximo. É conveniente que se examine desapaixonadamente aquilo que o homem faz para si. Que frutos ele colhe das atitudes e práticas que tem para consigo mesmo? No passado (e ainda hoje), grupos religiosos empenhavam-se em difundir suas doutrinas a outros povos. Emprincípio, não há nada de errado nisso, pois todos devem ter a liberdade de proclamar suas crenças. Mas, em nome desse ato de fé, muitas vezes a consciência do outro é atropelada pela ideia de que o “meu deus” é verdadeiro e o “seu deus” é falso. Culturas milenares foram assim destruídas ou deturpadas, e nenhuma felicidade foi acrescentada aos convertidos. Mas, quem impingiu suas convicções, muitas vezes o fez na crença de que estava fazendo ao próximo o que desejaria para si mesmo. Será que a situação inversa seria aceita com esse mesmo espírito de compreensão? Num caso como esse, a Regra de Ouro não seria o respeito às diferenças?

Para melhor estabelecer uma “Regra de Ouro” pessoal, pode-se realizar um exercício de consciência. Esse exercício consiste em separar um período da vida cotidiana para “sair de si” e tornar-se expectador dos próprios pensamentos e atitudes, registrando os efeitos mentais, emocionais ou mesmo físicos resultantes, tanto em si quanto (e especialmente) nos outros. A ideia é se ver como num teatro, em cujo palco esteja sendo encenada a peça “Eu e o Mundo”. No tablado, entre os atores, há um que representa fielmente o “Eu”; é o papel principal. Mas os outros artistas não são menos importantes, pois é de sua interação com o “Eu” que as verdades do coração podem se revelar. No transcurso dessa encenação, será possível entrever o real sentimento que motiva cada ato. E, ao fim da peça, o espectador poderá ter um retrato aproximado de seu próprio Eu e das consequências boas ou más de sua forma de conviver com o mundo. Quem sabe, perceberá (e admitirá) o quanto ainda age por desejo de compensação. Principalmente, compreenderá até que ponto esse desejo é natural e a partir de quando se torna um obstáculo ao amadurecimento espiritual. Tais noções, obtidas do exercício de “sair de si”, lhe possibilitarão iniciar a elaboração de uma “Regra de Ouro”, que lhe trará frutos de paz e harmonia, na proporção em que esteja em consonância com as Leis Universais, cuja perfeição e Amor se traduzem na Natureza e no Cosmo.


 Auro Barreiros
Setembro/2017






[1] Descrita, primeiramente, por Euclides, há aproximadamente 2.300 anos, na obra “Os Elementos”.

[2] Marcos,12: 30 e 31

[3] Mateus, 7:12

sábado, 29 de abril de 2017

REFLETINDO SOBRE CICLOS E HUMANIDADE



Conforme indica a Sabedoria dos Tempos, o Cosmo, com tudo o que contém, é cíclico. Desde o mundo subatômico até as vastidões inconcebíveis à mente humana, toda a realidade se move segundo ciclos que se encadeiam continuamente, numa gigantesca ciranda de causas e consequências. Apoiando-se nessa concepção, não é exagero pensar que a queda da folha de uma árvore afeta a perpetuação da vida em nível microscópico e que isso por sua vez, tem relação com o restante das manifestações de vida em um planeta.

E quando se fala em vida, surge de imediato a lembrança da vida humana, a nossa vida. Ai que parece, somos a espécie que mais se dá conta da própria individualidade. E somos também a espécie que mais drasticamente interage com o ambiente em que habita, junto com os demais seres vivos. Graças aos dotes de raciocínio, observação e assimilação das experiências, desenvolvemos habilidades que nos permitem alterar condições naturais para atender o que acreditamos serem as nossas necessidades. E como essa crença nem sempre corresponde à realidade natural, provocamos profundos desequilíbrios ambientais, que findam por interferir negativamente na qualidade da vida que tanto defendemos.
A criação e manutenção dos padrões de existência confortável exige poder econômico; isso motiva problemas aparentemente incontroláveis, como o consumismo, a especulação financeira e a guerra. Sim, pois é impossível fazer uma guerra sem dinheiro! Armas custam caro, aviões e navios idem. Logo, por trás de motivações políticas e ideológicas há sempre a extraordinária movimentação de fortunas para o custeio dos conflitos.

E chegamos ao ponto crucial dessa argumentação: por que o ser humano não se satisfaz? Por que os valores éticos são relativizados quando está em jogo o poder? Por que não tem sido possível vivenciar a verdadeira paz na Terra? De que nos valeu a espantosa tecnologia que já desenvolvemos e que nos facultou a conquista do Espaço, se somos ainda incapazes de dominar o nosso “espaço” interior? Tendo como real a Lei de Compensação, qual será o resultado de nossas presentes ações e omissões?

Diante de tais indagações, devemos voltar à Lei dos Ciclos. Assim como a semente germina em certo tempo, segundo a sua espécie, o que o homem semeia através de suas atitudes também tem um tempo para germinar e dar frutos. Por exemplo, o lixo que a civilização produz e que por milênios foi despejado no meio ambiente, é agora uma das maiores preocupações dos países mais ricos, que dispõem de conhecimento suficiente para saber que a saúde de seus cidadãos está ameaçada pelos mesmos rejeitos que foram produzidos pela sua incessante busca de conforto e sofisticação. No atual ciclo, um dos principais desafios do homem é cuidar do próprio lixo!
Mas, ainda que se encontre uma solução tecnológica para a questão do lixo, ainda restam outros problemas que, por serem inerentes à natureza humana, não serão solucionados por computadores; ganância, sede de poder, intolerância, preconceito, egoísmo, são os amargos frutos da ignorância do homem a respeito de si mesmo.  Suas mais evidentes consequências aparecem sob as formas de ansiedade, transtornos emocionais, estados depressivos, conduta violenta, crises existenciais, um vasto repertório de efeitos de uma só causa: ausência de paz.

Da mesma forma que o Cosmo, o mundo interior também obedece a ciclos de semeadura, germinação e frutificação dos hábitos mentais e emocionais cultivados ao longo da vida, ainda que não tenhamos consciência disso. A essa inconsciência costumamos dar o nome de “destino”.
É possível mudar isso? Podemos nos livrar do resultado de uma vida de cultivo de ervas daninhas?

Sim, é possível mudar a qualidade da colheita futura a partir de boas sementes plantadas agora. Pode-se, gradualmente, modificar o ecossistema interior e estabelecer um padrão de harmonia mental e emocional, que se reflete na conduta e no trato com o semelhante.
Assim como o astrônomo usa o telescópio para vasculhar o céu, o homem que busca a paz interior se vale de seus instrumentos naturais para explorar a si mesmo. A reflexão é uma dessas ferramentas. Refletindo, pode-se extrair das experiências o conteúdo de sabedoria nelas oculto. Refletindo, no exercício da liberdade de consciência, pode-se incorporar a sabedoria adquirida à personalidade, eliminando falhas comuns do caráter, criando novas e apropriadas formas de sentir e de agir, para que o semear seja fecundo e doces os frutos.

A Lei dos Ciclos é evolutiva. A cada périplo, toda realidade ascende a um novo patamar. Assim, quando o homem busca a compreensão de si mesmo e sua relação com a Lei Maior, o mesmo acontece com ele; sua consciência se eleva, seus horizontes se ampliam, seu coração se agiganta. O buscador assimila a lição fundamental: somos responsáveis pela nossa felicidade.

A propósito, vale lembrar aqui algumas das sábias palavras de Ralph Lewis, ex-Imperator da Ordem Rosacruz – AMORC:

CREDO DA PAZ
 Sou responsável pela guerra...

Quando orgulhosamente faço uso da minha inteligência para prejudicar o meu semelhante.
Quando menosprezo as opiniões alheias que diferem das minhas.
Quando desrespeito os direitos alheios.
Quando cobiço aquilo que outra pessoa conseguiu honestamente.
Quando abuso da minha superioridade de posição, privando outros de sua oportunidade para progredir.
Se considero apenas a mim próprio e aos meus parentes pessoas privilegiadas.
Quando me concedo direitos para monopolizar recursos naturais.
Se acredito que outras pessoas devem pensar e viver da mesma maneira que eu.
Quando penso que sucesso na vida depende exclusivamente do poder, da fama e da riqueza.
Quando penso que a mente das pessoas deve ser dominada pela força e não educada pela razão.
Se acredito que o Deus de minha concepção é aquele em que os outros devem acreditar.
Quando penso que o país em que nasce o indivíduo deve ser necessariamente o lugar onde ele tem de viver.

Sou responsável pela paz...

Se direciono correta e construtivamente os poderes da minha mente.
Se concedo ao meu semelhante o direito pleno de se expressar, de acordo com o seu próprio entendimento das verdades da vida.
Se reconheço que os meus direitos cessam quando iniciam os direitos dos outros, e aceito isso com um mínimo indispensável de disciplina.
Se faço uso dos meus poderes interiores para criar minhas próprias oportunidades.
Se consigo promover a evolução dos que me cercam, sem considerar a minha posição ameaçada, e entendo que esta é a minha maior fonte de sucesso.
Se compreendo que as LEIS DIVINAS diferem das leis criadas pelo Homem, e que nenhum direito divino especial é concedido a alguém unicamente por seu berço.
Se reconheço que os recursos naturais devem servir indistintamente a todas as formas de vida, e que não me cabem direitos exclusivos sobre eles.
Se compreendo que nada é mais livre do que o pensamento, e que o pensamento construtivo transforma o Homem direcionando-o para a sua verdadeira meta.
Quando sinto que toda felicidade depende do simples fato de existir... de estar de bem com a vida.
Se percebo que todo ser humano poderá vir a ser um grato amigo, quando convencido pela argumentação sincera.
Se considero que a Alma de Deus adquire personalidade no Homem, e que este só pode conceber Deus a partir de sua própria percepção da Divindade.
Se reconheço a mim e ao meu semelhante como partes integrantes do Universo, e que a cada um cabe a busca do lugar onde melhor possa servir.

Se estou em PAZ, eu promovo a PAZ dos que me cercam. Por sua vez, eles promovem a PAZ daqueles que estão à sua volta e que também farão o mesmo.
Então, a PAZ começa por mim! E sem ela não pode haver a necessária transformação social.


      Auro Barreiros, FRC
      dezembro de 2015