Na antiguidade, escultores e
construtores definiram um princípio de proporção ideal, cuja aplicação deveria
conferir às suas obras o mais elevado sentido de harmonia. Esse princípio era
conhecido como “número de ouro”, ou “proporção áurea”[1],
ou ainda (e por justa causa) “divina proporção”, já que refletia, entre outras
coisas, o dimensionamento do corpo humano e suas intrigantes relações
matemáticas.
Desde então pode se
reconhecer a presença dessa proporção áurea nas obras dos grandes mestres da
escultura, da pintura e da arquitetura, exatamente pelo que eles buscavam
traduzir em suas criações: o equilíbrio e a harmonia próprios da natureza.
Mas a busca da perfeição não
se limitou às ciências e artes; na filosofia de Platão encontramos a noção do
Mundo das Ideias, o arquétipo em que o plano terreno se reflete, de forma
imprecisa e distorcida como as sombras do Mito da Caverna. Para Platão, o Bem,
o Belo e o Justo são princípios que têm existência real e constituem a essência
de toda a Criação; logo, aperfeiçoar algo ou a si mesmo consiste básicamente em
desvencilhar-se das sombras e retornar ao mundo real, daí se dizer que
“aprender é recordar”.
Esses conceitos estão no
âmago das principais correntes de pensamento espiritualista e grandes
religiões. A percepção da lei natural de compensação transparece na doutrina do
Karma e nas exortações do Evangelho em relação às atitudes para com os outros e
suas consequências. Fazer ao próximo o que gostaríamos que nos fizessem é um
conselho que recebeu o título de “Regra de Ouro”; o exercício pleno dessa regra
significa o mais desejado entendimento das leis divinas e suas implicações na
conquista da paz e da felicidade em Deus.
Mas, talvez em função dos
limites da mente humana, ajustar-se a essa Regra de Ouro ainda não é uma tarefa
simples. Muitas vezes o retorno das mais bem-intencionadas atitudes é o
descaso, que pode culminar no que é percebido como ingratidão. É pouco provável
que exista alguma pessoa adulta que não tenha sua história de frustração diante
do menosprezo alheio ao seu sincero desejo de ajudar. Na maioria das histórias
registra-se um fato comum; alguém que tenta partilhar com o outro algo que,
para si, é a expressão do bem, da verdade e da justiça, sofrendo a decepção de
não ver compreendidos e aceitos os seus propósitos, conselhos ou gestos, do que
resultam amizades abaladas, laços afetivos rompidos, esvaziamento da confiança
e do respeito mútuo.
Mas, afinal, em que consiste
a decepção? Por que nos importa tanto o reconhecimento dos outros em relação
aos nossos atos e intenções? Provavelmente, a decepção tem raízes no desejo de
gratificação; a mente primitiva requer a retribuição, o prêmio, a distinção dos
possíveis gestos de eventual despreendimento. O instinto cobra a satisfação e a
mente racional estipula o preço: o aplauso, a aclamação, o agradecimento e a
reciprocidade. Essa conduta está de tal forma arraigada ao inconsciente que se
manifesta até mesmo nas relações que o homem tenta estabelecer com o Deus de
sua compreensão. Na maior parte das religiões existe a prática da permuta entre
o fiel e a divindade; determinada graça pode ser concedida, se tal e qual
promessa for paga ou algum tipo de sacrifício seja feito. E quando a graça não é alcançada, ocorre o
pensamento de que a promessa ou o sacrifício não tenham sido suficientes, ou
foram mal cumpridos. Raramente passa pela cabeça do homem que sua concepção das
virtudes de Deus pode estar equivocada; que o desejo humano pode não estar em
acordo com a Lei Universal, ou que a intervenção solicitada pode ser imerecida.
Assim, por ignorância a respeito do que acredita, o ser humano oscila entre a
fé vacilante e a dúvida inconfessa.
Temos então, diante de nós,
um impasse: aceitamos que Deus existe e, por ilação, atribuímos-lhe certas
características morais, tal e qual o faríamos a um lider ou soberano. Repetimos
há séculos (ou milênios) que Deus é Onipotente, Onipresente e Onisciente e, bem
por isso, é perfeito em Justiça e Amor.
Mas nem sempre, ou quase nunca conseguimos enxergar essa justiça e esse
amor no desenrolar de eventos trágicos e das aparentes incoerências do que se
costuma chamar “destino”. Muito do que dizemos crer a respeito de Deus permanece
apenas no campo da dialética, sem o alicerce da convicção.
Isso é compreensível, pois
há conceitos para os quais a mente humana carece de parâmetros: eternidade,
imortalidade, infinitude... Dentre estes, talvez o mais complicado seja
conceber o Princípio de toda a realidade, pois este reúne em si todos os outros
conceitos como atributos. Um Ser Supremo tem que ser incriado, pois, se tiver
uma origem, por mais remota, já não é eterno e deixa um vácuo de tempo no seu
“antes”. Tem que ser onipresente, de amplitude infinita, pois, se sua
abrangencia tiver algum limite, o que existirá além daquela fronteira?Outro
Deus? Tudo isso parece óbvio, mas, quando tentamos racionalizar a natureza
dessa Entidade Suprema, esbarramos na dificuldade de conceber o que não tem um
espelho em nossa mente.
A provável solução para esse
dilema talvez seja buscar a compreensão do cosmo que nos rodeia e do qual somos
parte, pois isso é passível de percepção e assimilação em nível do intelecto.
Tal exercício poderia, certamente, ampliar a concepção de uma Consciência
Suprema, universal e ilimitada no tempo e no espaço. Disso resultaria uma
reavaliação de critérios no relacionamento com essa Consciência e com o Cosmo,
do qual, supõe-se, todo ser é parte. O desejo inconsciente de retribuição seria
convertido na busca de harmonia, como consequência natural de pensar, sentir e
agir segundo leis impessoais, equânimes e justas por excelência.
Equanimidade e justiça; talvez seja esta a chave
para a compreensão de uma “Regra de Ouro”. O Mestre Jesus a explicitou de forma
sucinta, quando aconselhou que não se deve fazer aos outros aquilo que não se
deseja para si. Mas o oposto também é verdadeiro; fazer ao outro o que se
deseja para si faz parte da construção dessa regra de convivência. Isso tem
relevância, principalmente, nas relações interpessoais, nas questões básicas de
direitos e deveres. A percepção de reciprocidade se reflete, ainda que
imperfeitamente, nos códigos e leis humanas.
Porém as leis e códigos, por
serem de origem humana e elaborados segundo os limites de época, costumes e
conveniências, nem sempre refletem essa reciprocidade no grau desejado.
Concedem-se privilégios por razões obscuras, ao mesmo tempo em que são
desconsiderados direitos naturais do homem, como as liberdades, a
sobrevivência, o acesso ao conhecimento.
O corporativismo, que nada mais é do que o egoísmo no coletivo, legisla e decide conforme interesses imediatos
de uma classe, em detrimento da ética, forjando assim uma moral flutuante, que
propicia a leniência dos costumes e a inércia espiritual.
Não há como conceber uma
“Regra de Ouro” no sentido original do conceito, sem dissecar a práxis ética e
moral, submetendo-a ao crivo da reciprocidade. O ser humano não deveria ser bom
por temor a um Deus ou a uma lei, mas por empatia; a dor do vizinho me dói, mas
sua alegria me alegra.
E isso nos traz de volta o
questionamento quanto à relação entre o homem e seu Deus, o Deus de sua
concepção. O que esperar de Deus? Bem,
isso vai depender do que se imagina como atributos dessa entidade misteriosa;
como será seu pensar? Terá Deus sentimentos e vontades semelhantes às do homem?
Ele se aborrece? Ele se entristece? Ele tem preferências ou antipatias? Tem
inimigos? Se o Deus concebido tem todas essas características, não dá pra se
esperar muito dele em termos de Justiça, pois um deus assim é apenas um homem,
ainda que a ele se atribuam poderes transcendentais. A relação com seus devotos
terá a cor das paixões humanas, inexatas, injustas e imprevisíveis.
Mas, e se esse deus for de
tal forma benevolente que ignore as insanidades do tutelado, agraciando-o com
generosas bênçãos em troca de meia dúzia de palavras adocicadas em uma prece de
louvor? Seria uma divindade mais confiável?
No que diga respeito à concepção de Deus, não há como fechar questão.
Cada um a desenvolve por si e segundo sua própria percepção. Mas o bom senso
indica que a convivência com a ideia de Deus será tão harmoniosa quanto for
fundamentada na compreensão das leis naturais e cósmicas. Essa sintonia ideal é
definida por Jesus, quando resume a Lei e os profetas de seu tempo em um
magnífico ensinamento: “Ama ao próximo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as
coisas”[2].
Senão, pensemos: é possível amara ao próximo sem amar a Deus? Talvez sim, para
os ateus. Estes não concebem uma entidade ou força inteligente como criadora e
ordenadora do Cosmo, mas isso não é impedimento para que nutram o mais sincero
sentimento fraterno em relação ao semelhante. E amar a Deus sem amar ao
próximo? Sim, também é possível, para quem alimenta a ideia de um deus-homem,
com as mesmas limitações psicológicas de suas criaturas. No entanto,
considerando-se a impessoalidade como prerrogativa essencial para uma justiça
perfeita, esse amor seria unilateral, pois não encontraria eco na dimensão
cósmica. Esse tipo de concepção da natureza de Deus delimita suas benesses ao
restrito círculo de afetos e interesses do devoto, contrariando assim a noção
de equanimidade.
E o que tudo isso tem a ver com a Regra de Ouro? Bem, dissemos antes que essa Regra pretende
refletir o equilíbrio e a harmonia da Natureza. E a Natureza é manifestação
visível da Consciência Suprema, ou Lei Universal a que a mente humana atribui a
origem e domínio de todas as coisas. Logo, os eventos naturais e cósmicos
refletem, em alguma grandeza, a forma ideal de justiça. O homem, por seu
atributo de autoconsciência, pode testemunhar em si mesmo essa realidade, na
alternância entre dor e prazer, infortúnio e felicidade, carência e plenitude.
Sua consciência, ainda que limitada, é
capaz de entrever o encadeamento de causas e consequências que produz o seu
destino. Mais ainda, percebe que seus desejos movimentam as peças desse jogo, o
que o faz compreender que é, em grande medida, o artífice do já mencionado
destino.
Quanto mais amadurece na
compreensão dessa dinâmica da Lei Cósmica, menos o ser humano encontra
justificativa para a auto-piedade. O reconhecimento de que seus pensamentos,
palavras e ações constroem o futuro que terá que viver, fatalmente o induz a
considerar o “outro”; seu próximo, com quem partilha o drama da existência.
Mais dia, menos dia, se convencerá de que, a despeito das aparentes diferenças,
a estrutura interior de todo homem ou mulher é fundamentada nos mesmos
princípios naturais; fugimos da dor e buscamos o prazer, a felicidade, a
compensação, ainda que, por ignorância, frequentemente nos equivoquemos,
provocando justamente o sofrimento que pretendíamos evitar. Daí a imensa
profundidade do conselho de Jesus: “Tudo o que quereis que vos façam, façais
também aos outros”[3].
Mas, mesmo esse majestoso
conselho precisa ser bem compreendido, para que não sirva de desculpa à invasão
da liberdade do próximo. É conveniente que se examine desapaixonadamente aquilo
que o homem faz para si. Que frutos ele colhe das atitudes e práticas que tem
para consigo mesmo? No passado (e ainda hoje), grupos religiosos empenhavam-se
em difundir suas doutrinas a outros povos. Emprincípio, não há nada de errado
nisso, pois todos devem ter a liberdade de proclamar suas crenças. Mas, em nome
desse ato de fé, muitas vezes a consciência do outro é atropelada pela ideia de
que o “meu deus” é verdadeiro e o “seu deus” é falso. Culturas milenares foram
assim destruídas ou deturpadas, e nenhuma felicidade foi acrescentada aos
convertidos. Mas, quem impingiu suas convicções, muitas vezes o fez na crença
de que estava fazendo ao próximo o que desejaria para si mesmo. Será que a
situação inversa seria aceita com esse mesmo espírito de compreensão? Num caso
como esse, a Regra de Ouro não seria o respeito às diferenças?
Para melhor estabelecer uma “Regra de Ouro” pessoal,
pode-se realizar um exercício de consciência. Esse exercício consiste em
separar um período da vida cotidiana para “sair de si” e tornar-se expectador
dos próprios pensamentos e atitudes, registrando os efeitos mentais, emocionais
ou mesmo físicos resultantes, tanto em si quanto (e especialmente) nos outros. A
ideia é se ver como num teatro, em cujo palco esteja sendo encenada a peça “Eu
e o Mundo”. No tablado, entre os atores, há um que representa fielmente o “Eu”;
é o papel principal. Mas os outros artistas não são menos importantes, pois é
de sua interação com o “Eu” que as verdades do coração podem se revelar. No transcurso
dessa encenação, será possível entrever o real sentimento que motiva cada ato. E,
ao fim da peça, o espectador poderá ter um retrato aproximado de seu próprio Eu
e das consequências boas ou más de sua forma de conviver com o mundo. Quem sabe,
perceberá (e admitirá) o quanto ainda age por desejo de compensação. Principalmente,
compreenderá até que ponto esse desejo é natural e a partir de quando se torna
um obstáculo ao amadurecimento espiritual. Tais noções, obtidas do exercício de
“sair de si”, lhe possibilitarão iniciar a elaboração de uma “Regra de Ouro”,
que lhe trará frutos de paz e harmonia, na proporção em que esteja em
consonância com as Leis Universais, cuja perfeição e Amor se traduzem na
Natureza e no Cosmo.
Auro Barreiros
Setembro/2017
[1] Descrita, primeiramente, por Euclides, há aproximadamente 2.300 anos, na
obra “Os Elementos”.