sexta-feira, 20 de outubro de 2017

CANIS ET CIRCENSIS II - O DESAFIO



E como naquele final de tarde soprava uma brisa inspiradora, Drica iniciou a prosa me lançando um desafio. A danadinha propôs que os questionamentos de ambas as partes fossem respondidos em versos. Assim como um duelo de repentistas. Fiquei surpreso, pois não conhecia a vertente poética dessa criatura, cuja existência quase finda em seus primeiros dias por conta de uns carrapatos. Mas, desafio feito, desafio aceito. Decidimos no par-ou-ímpar pra ver quem começava. Coube a mim a honra de iniciar a porfia e, matreiro, resolvi me apegar aos pais da matéria.

Drica, minha jovem; no Banquete de Platão acontece um debate sobre a natureza do amor, onde surgem alegorias incríveis, como a dos cabires e a justificativa para a separação dos sexos. (Ela levanta uma orelha, em sinal de atenção) Sócrates, que era o palestrante mais esperado na ocasião, após exercer a sua peculiar maiêutica e conduzir o raciocínio para uma nova abordagem, surpreende a todos com uma visão psicológica do sentimento, em que evoca a deusa Necessidade para argumentar que o Amor, ao menos em relação ao homem, não é um deus, nem um “daemon”, mas um gênio. Sua natureza é de carência, que leva à busca do que lhe falta para sentir-se pleno. E você, o que acha da tese de Sócrates”?
Ponteei a viola (dém, dém, dém, dém) e a quadrúpede abusada mandou a letra:

“Esse grego era mesmo bem esperto,
Discordou sem ferir nem criar clima,
Sem trair o fiel manteve a rima
Na mensagem do pensamento aberto,
Sabiamente apontou o rumo certo
Conforme aprendeu com Diotima!”
(Caramba!)
“Fosse um deus e tivesse a plenitude
E a total satisfação de seu desejo
Não seria o Amor, pelo que vejo,
Buscado pelo ser, como virtude;
Mas apenas o sonho que ilude
E à fugaz fantasia dá ensejo”!

(Eu, hein?)

Dos Cabires a simbologia
Nos recorda que a dualidade
É fase transitória da verdade
De que tanto se ocupa a filosofia,
Pra que o homem descubra, algum dia,
A origem da tal Necessidade”!

Pegou pesado, a pulguenta! Já meio arrependido de ter aceitado a proposta poética, me concentro no ponteio da viola, que, no momento, é minha única fortaleza. Drica dá uma coçada na orelha e prossegue:

Uma coisa, porém, é o sentimento
Que motiva a buscar o seu reverso
Outra coisa é a Lei que canto em verso,
A matriz do perpétuo movimento
Dos arcanos reais, do firmamento
E da vida que pulsa no Universo”!

(!)

O amor que a Natureza expressa
É reflexo da Lei que o sublima;
Embaixo, você sabe, é como em cima,
E tudo o que existe assim começa;
Esta é a parte que nos interessa
Conforme ensinara Diotima”!

Acordes finais da viola, propus uma pausa para o lanche, pois conheço a filósofa canina (e hermetista, como acabo de descobrir) e sei que só assim terei folga para me preparar.

“Mais um biscoitinho?”

“Au!”


Auro Barreiros
20/10/2017

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