Drica, minha cadela, é versada em
filosofia. Do alto de sua avançada idade, para os padrões caninos, volta e meia
me agracia com preciosas reflexões. Reflexões maduras, profundas e abrangentes,
que estabelecem correlações inusitadas entre sua ótica de quadrúpede e o plano
das consequências, que normalmente afeta muito mais os bípedes ditos racionais.
As repetidas conversas de fim de
tarde findaram por desenvolver entre nós uma espécie de comunicação não-verbal
(ao menos de minha parte), algo entre a linguagem corporal e a telepatia.
Numa dessas prosas, enquanto assistíamos
o jornal da noite, propus (bem ao estilo socrático), uma análise da paixão
humana pelo poder. Esse “humana” foi sugestão dela, que, de cara, me pontuou
que cachorro não tem isso. Segundo ela, a única coisa que se assemelha a paixão
no universo canino é o amor ao dono, muitas vezes imerecido, mas incondicional
e perene.
Mas, como eu disse, assistíamos o
jornal e nos debruçávamos no exame das complexas e esdrúxulas personalidades
que nele desfilavam; em nível mundial, homens alucinados, tendo nas mãos uma
chave que pode abrir as janelas do céu ou escancarar os portões do inferno. Por
suas atitudes provocativas e infantis, o temor é de que prefiram a segunda
hipótese.
“Como você vê essa escalada de tensão
entre potências, que tem o potencial de arrastar a humanidade para mais um
fratricídio de proporções globais”?
Drica se levanta, vai à varanda, dá
uma meia dúzia de latidos e volta, sentando-se aos meus pés, com uma expressão
de esperteza no olhar, que minha recém-desenvolvida habilidade telepática
rápidamente converte em uma resposta:
“É deplorável, mas compreensível o
comportamento desses humanos. Apesar de
toda a sofisticação que os rodeia, ainda não aprenderam a separar o instinto da
razão. Como os animais, querem “marcar território”, mas desconhecem o limite de
cada demarcação. Ainda não aprenderam conosco a se fazerem respeitados pela sua
própria natureza, de modo que não lhes basta latir; tem que morder, também”.
(Pausa para reflexão e mastigar um
pedaço do pão com manteiga do meu café da tarde).
Auro
14/10/2017
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