Era inverno. Ali, no Himalaia, essa estação do ano era a
ideia mais próxima que se poderia ter da morte, ainda que a morte fosse
definida pelos ensinamentos de meu guru como mera ilusão provocada pelas
limitações da consciência aprisionada à carne; Maya, em uma palavra. Mas era
uma ilusão muito real e dolorosa para mim, que ainda não me libertara das trevas da ignorância e
não passava de um simples Chela (discípulo, para os leigos). Um simples e
medíocre Chela, que, naquele dia de cruel inverno tibetano, escalava a face
mais íngreme de uma certa montanha (não direi qual, para preservar o segredo da
morada do meu guru), buscando a luz que saciaria minha sede de conhecimento.
Depois de um dia
interminável de tropeços, quedas, dolorosas rachaduras nos lábios e mãos, pés
petrificados e a constante ameaça de hipotermia, eis-me à entrada da caverna em
que aquele homem santo meditava, sentado em lótus. A débil chama de um
candeeiro abastecido com manteiga de iaque lançava reflexos dourados à barba
longa e branca (lembrava uma estalactite), formando uma imagem que induzia o
respeito e a veneração.
A pedra gelada que me serviu
de banco certamente estava à minha espera, pois reunira todo o frio da montanha
para me congelar a coluna, desde a base até a nuca. Rígido e feliz por estar
ali, aos pés do mestre, meditei por algum tempo (horas, dias, meses, talvez;
isso é irrelevante, pois, segundo o mestre, o tempo também é uma ilusão da
consciência limitada, em sua prisão de carne. Maya, claro!).
Ao regressar do
quase-nirvana, as questões transcendentais que me levaram até aquele santo
lugar começaram a enfileirar-se em minha mente. Decidi então iniciar meu
aprendizado, dirigindo ao sábio asceta a primeira de incontáveis perguntas.
“Iluminado Instrutor das almas trevosas (a
praxe ritualística determina que, dirigindo-se ao Guru, uma exaltação
cerimoniosa deve preceder a fala), podeis me explicar a origem e sentido da
vida?”
Aguardei, reverente, a breve
introspecção daquele que me tiraria a venda dos olhos espirituais. Em poucos
minutos, o vetusto ser abre os olhos e começa a me responder, com um leve
sorriso a bailar em seus lábios:
“Ignóbil Chela (o esculacho também é praxe ritual), isso é
de uma simplicidade infantil. A origem da vida...(não vou relatar a resposta do
mestre, pois a mesma demorou mais ou menos uma semana para ser concluida. E era
um resumo para pricipiantes como eu).
Transbordante de alegria, eu
teria até dançado, se a rigidez imposta pelo frio não me tolhesse quase todos
os movimentos. Finalmente, estava recebendo a luz que tanto buscara, desde o
Paquistão até a Grande Muralha da China. Inebriado e feliz, passei para a
próxima questão:
“Ó, Profundidade Oceânica da
Sabedoria Ancestral (dessa vez eu caprichei)! Podeis descrever as dimensões
espirituais?”
“Claro, estúpido antropoide!
Mas preste atenção, que só falarei uma vez!” E por mais uma semana, o Erudito
preceptor discorreu sobre o tema. Eu, absorto, bebia cada palavra.
E assim, pergunta após
pergunta, fui realizando meu austero discipulado. O intenso frio já não me
incomodava; aliás, à exceção do queixo e dos olhos, todo meu corpo era uma
pedra de gelo insensível.
Um dia, ao final de uma bela tarde de inverno (esqueci-me
de dizer que o inverno nunca termina no Himalaia), resolvi formular a questão
das questões, a dúvida que me perseguia por vidas afora. Respirei fundo,
conforme as práticas de Pranayama e mandei:
“Venerando Guardião das Verdades Eternas (esse
eu havia reservado para uma pergunta especial); como bem o sabes, a humanidade
está vivendo um caos de ordem ética, cujas consequencias espirituais podem ser
notadas na insalubridade mental e emocional da sociedade (o mestre, até então
sorridente, começou a mudar a expressão; encolheu os lábios, franziu levemente
o cenho e me encarou, entre curioso e contrariado). E a parte mais
contraditória dessa crise é ser protagonizada por aqueles que têm acesso ao
conhecimento e, por justiça, deveriam ser os primeiros a preservar os valores
morais duramente conquistados. Agentes da lei que acobertam e até praticam o
crime, magistrados que se vendem e vendem seus favores, homens públicos que se
locupletam do bem que é de todos, feito baratas no melado, insensíveis ao
sofrimento que provocam ao redor. Castas privilegiadas que arrogam supremacia
em função da crença ou da cor da pele, sistemas econômicos que encampam a
ciência em prol do lucro desmedido, comerciantes da fé e das armas, uns e
outros gerando a guerra como fonte de renda; tudo isso acontecendo debaixo do
céu de Brahman, Jeová, Alah, ou seja lá quem for o Regente Universal! Dizei, ó
Farol das Almas! Como entender isso? E, principalmente, como acabar com isso?”
O Magnânimo Yogue estava
visívelmente contrafeito. Fechou os olhos e demorou-se por algum tempo (dias,
semanas, meses? Não importa, pois ele mesmo disse que o tempo etc, etc.), até
que, concentrado, inspirou profundamente e emitiu um longo gemido:
“Hummmmmm!..”
Sem entender se traatava-se
de um mantra ou uma resposta cifrada, aquietei minha mente e entrei em
meditação profunda, enqanto o vento cortante do inverno tibetano terminava de
congelar meu corpo.
Não sei por quanto tempo permaneci nesse transe. Mas
em cerca de mil e quinhentos anos a Lei de Samsara já me trouxe de volta a esse
plano por quinze vezes. E até agora não sei se o gemido do mestre era um
mantra, uma resposta ou só um gemido.
Auro Barreiros,
O incompetente Chela
20/8/2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário