domingo, 27 de fevereiro de 2011

OLHOS NOS OLHOS


 
NO MEU TEMPO DE CRIANÇA, em um canto de meu quarto, eu guardava uma grande caixa de papelão cheia de brinquedos. Era ali o endereço de meu reino de fantasia; com a formidável miscelânea de carros, aviões e navios de plástico, soldadinhos e animais, bolas de gude, molas e parafusos, lápis de cores e gravuras de revistas, eu encenava o mundo em acordo com a ótica de um menino. Promovia animadas guerras contra os bandidos, ocasião em que o bem sempre vencia; mandava homens e animais para Marte, Júpiter e até outras galáxias, não para colonizá-las, mas apenas em visita cordial, pois, no “meu” universo, todos os planetas eram habitados por gente muito evoluída e pacífica!

Muitas vezes, para dar mais realismo às minhas encenações, usava óculos de brinquedo, aqueles com lentes coloridas de acrílico. Eram lentes azuis, vermelhas, amarelas, verdes; cada cor propiciava um clima diferente aos meus devaneios, e eu tinha a ilusão de que o mundo ao meu redor pudesse modificar-se por uma simples troca de óculos!..

Mais tarde, já na adolescência, aprendi na escola que quando olhamos através de uma lente colorida temos uma visão incompleta das coisas, pois algumas cores são anuladas, modificando a percepção visual. Por exemplo, com um filtro vermelho aos olhos, os objetos verdes ficam azuis, quase negros; o amarelo fica quase branco, enquanto o que é vermelho simplesmente desaparece!
O fenômeno se repete com as outras cores, já que a luz branca é o resultado da mistura homogênea de todo o espectro, sendo que cada objeto reflete sua freqüência de onda, absorvendo as demais.

Agora, adulto, ao me defrontar com as diferenças de compreensão humana, recordo-me de minhas brincadeiras com as lentes e faço uma analogia entre a vida e o fenômeno ótico. Alguns contemplam a vida pelas lentes cinzentas do pessimismo; para tais pessoas, tudo é difícil, por se acreditarem deserdadas pela Providencia, incapazes de concretizar seus ideais por imaginar que lhes foram negados os atributos de inteligência que invejam em outros. Por conta das lentes cinzentas, que anulam a visão do belo, julgam a tudo e a todos depreciativamente, duvidando da sinceridade alheia, escarnecendo dos propósitos elevados e das nobres realizações. São, portanto, infelizes por livre e espontânea vontade!..
Outros olham a vida com lentes vermelhas de paixão, sensualidade e violência; centrados na plena satisfação de seus desejos e instintos, movem céus e terras para realizar os caprichos. A carne os comanda, obsessivamente, reagindo de forma dolorosa a qualquer tentativa de disciplina moral; o sexo fala mais alto que a razão, e somente o temor do castigo é capaz de frear-lhes os impulsos. A lente que empregam anula o senso de respeito à liberdade do outro; por esse motivo, quando chamados à ordem, costumam explodir nos inqualificáveis gestos de violência que alimentam as manchetes dos jornais.

Existem ainda os que se deleitam olhando tudo por lentes cor-de-rosa do otimismo irracional. Tudo vai bem com eles, de modo que tudo vai bem com todos!.. Para estes, não há fome nem guerra no mundo, já que não lhes falta o pão à mesa e têm assegurada sua liberdade individual. E porque não almejam mais que seu doce estado vegetativo, a lente que usam lhes nega a visão da realidade.

Meu professor de Ciências Naturais, dos bons tempos de colégio, dizia que a lente mais perfeita que existe está em nossos olhos: o maior grau de transparência, a maior sensibilidade à variação de tons e luz, o equipamento mais sofisticado para o nosso contato com a realidade.
Nossos olhos físicos respondem a todas as cores do espectro visível; já os olhos espirituais refletem apenas a cor da lente que escolhemos para encarar a vida!
Essa é uma grave escolha, vital para a conquista da paz e felicidade que tanto desejamos.
Que Deus nos ilumine.


29/08/1985
Auro

2 comentários:

Lucas Maia disse...

sábias palavras. gostei muito do que li.

que faça despertar consciência...

Auro Barreiros disse...

Obrigado, Lucas, pela generosidade das palavras.