domingo, 12 de setembro de 2010

COSMO E HUMANIDADE



Um simples ajuste entre placas tectônicas, acontecido na costa de Singapura, provocou a maior tragédia com causa natural nos últimos cem anos. Desde o epicentro do abalo, no fundo do Oceano Índico, ondas concêntricas foram se deslocando em grande velocidade, aumentando em tamanho e força na medida em que se distanciavam das águas profundas. Ao chegar às costas extremamente populosas dos países asiáticos, varreram prédios, casas, gente, com inenarrável fúria, deixando um rastro de destruição e dor em seu retorno ao mar. Mais de cem mil vidas foram ceifadas em poucos minutos, sendo incalculável o prejuízo ao patrimônio.

Mais uma vez a Natureza deixa claro o absoluto domínio de suas leis, com total indiferença às prerrogativas humanas. O que para nós configura uma catástrofe, para o planeta não passou de manutenção rotineira, em obediência a certos ciclos cósmicos, como acontece desde sempre. Hoje não mais ignoramos que a face terrestre não é atualmente como foi há cem ou duzentos mil anos, e certamente será diferente daqui a mais alguns milênios. Lentamente, como as petrificações de árvores, ou subitamente, como nas erupções vulcânicas e terremotos, as mudanças estão sempre ocorrendo diante de nossos olhos, que nem sempre as percebem. Graças a elas, a Terra foi ajustada em todos os aspectos para servir de berço para a manifestação da vida e morada para o ser humano, de tal forma que basta uma leve alteração em alguns dos elementos básicos para que, em curto, médio ou longo prazo, a vida em geral se ressinta. O ar que respiramos, por exemplo, é constituído por um delicado equilíbrio entre certos gases; isoladamente, nenhum de seus componentes é suficiente para a perfeita sobrevivência. A água, magistral casamento entre imponderáveis, possui, na sua singeleza, dotes verdadeiramente alquímicos, que a permitem dissolver, condensar, transportar e modificar a estrutura dos diversos elementos envolvidos no processo vital, em nível molecular. Mas, nem sempre foi assim; em seu período de formação, a atmosfera do planeta era um caos de metano, ácidos vaporizados e água, uma mistura irrespirável por qualquer tipo de ser vivente de nossos dias. As pavorosas tempestades da época, com suas inconcebíveis descargas elétricas, bem como o desaquecimento da crosta, ao que se supõe, foram co-responsáveis pela gradual transformação do ar, da água e do solo até as condições que ora usufruímos.

Mas, como afirmamos antes, a Natureza não tem compromisso com as vontades humanas. O fato de sermos inquilinos desse orbe por algum tempo não é garantia de que o seremos para sempre. À semelhança dos organismos vivos, um planeta “nasce”, tem sua infância, juventude, maturidade e declínio. Assim sendo, como conciliar a evolução do homem com a realidade natural e cósmica?

Na concepção mística, as leis universais regulam o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, manifestando-se de modo proporcional à dimensão de cada coisa. Mesmo contrariando as aparências, tudo se relaciona e interage, explícita ou sutilmente. Nesse caso, poderíamos imaginar uma correlação entre os ciclos de existência do planeta que habitamos e o processo evolutivo da consciência? Uma Vontade superior poderia ter “sincronizado” a marcha do progresso humano à ordem muito mais ampla dos ciclos cósmicos, de modo que, a cada transformação da Terra correspondesse uma alteração na estrutura física, mental e psíquica do homem, fruto de evolução, como mecanismo adaptativo às novas condições vigentes? Se a resposta a esses questionamentos for afirmativa, é razoável imaginar que a atual organização fisiológica humana é um tanto diferente da de cem mil anos atrás e, presumivelmente, será mais diferente ainda dentro de alguns milênios, porque o planeta também será muito diferente!

Quanto ao aspecto físico, isso é fácil de ser verificado, com uma simples consulta a livros de paleontologia contendo gravuras de fósseis e reconstituições que possibilitam uma imagem do que pode ter sido o homem pré-histórico. Mas resta ainda o aspecto mental e psíquico. Paralelamente à história das formas, acontece a história do pensamento, com suas conseqüências. Entre as inscrições rupestres e as viagens espaciais há um torvelinho de eventos nos quais os dotes investigativos do intelecto, somados à reflexão e a experimentação, foram os protagonistas da extraordinária aventura da mente humana em busca do conhecimento. E, a julgar pelos registros de que o mundo cientifico dispõe, a Natureza tem sido a primeira e grande mestra do homem, seja pelo seu incessante movimento de construção e destruição ou pela forma imperiosa como se manifesta em cada ser vivente, cobrando a manutenção, preservação e perpetuação da espécie.

A religiosidade, por exemplo, deve, em grande parte, sua origem aos fenômenos mais portentosos, onde as forças naturais exibiam seu poder avassalador; tempestades, raios, furacões, terremotos, erupções vulcânicas, ganharam estatura divina diante das mentes primitivas, que já aventavam causas teleológicas para cada acontecimento impressionante, que afetasse de alguma forma o equilíbrio da vida, sendo oportuno acrescentar que mesmo nos tempos atuais ainda persiste essa conduta mental e emocional. O homem moderno, da era da informática, que se tem na conta de racional, científico, muitas vezes se flagra no ato de persignar-se ao ouvir o estrondo de um trovão, sem conseguir sufocar de todo a idéia de que Deus é o mandante dos cataclismos, com o objetivo de castigar ou advertir seus filhos cá na superfície da Terra. Vê-se nessa atitude a persistência inconsciente da crença de que o mundo, com tudo o que nele há, foi feito para o homem, ou, pelo menos, por causa do homem. Perante esse conceito, há estreita correlação entre os eventos e o destino humano; um dilúvio puniria um povo devasso e incrédulo, como relata a conhecida história de Noé; um ciclone teria a missão de nos ensinar a humildade ante o poder divino. Uma prolongada seca seria a conseqüência da não-observância de certas práticas religiosas, como os antigos ritos de fertilidade, celebrados após as colheitas.

Tais especulações, que findaram por ganhar foro de princípios religiosos, têm seu fulcro na concepção de Deus. Fundamentando os raciocínios na premissa de um ser supremo com características humanas, tem-se como resultado lógico a suposição de que este ser manuseia os comandos do cosmo e da natureza por razões idênticas às de suas criaturas: impulso criativo, necessidade de auto-afirmação, alegria, tristeza, ira, brios feridos, compaixão, bondade e até mesmo senso de humor, conforme é possível perceber no contexto de todos os livros sagrados das principais religiões.

É fato inegável que certos eventos naturais têm o dom de forçar reflexões e tomadas de consciência por parte do ser humano. Desde muito cedo se percebeu o papel da alternância entre chuva e sol e sua relação com o crescimento das plantas, mormente as que nos servem de alimento; observar a coincidência entre a mudança de estações e as transformações ocasionadas na fauna e flora, como o acasalamento dos animais silvestres e o desabrochar das flores, foi o começo da elaboração de um cabedal de conhecimento empírico. Tribos pastoris moviam seus rebanhos para campos de pastagem renovada, tenra e nutritiva; jovens uniam-se em casamento, na esperança de uma prole numerosa e saudável porque, devido a séculos de experiência, o homem primitivo “sabia” que o ciclo vital se renova a cada primavera. E não demorou muito para que mentes especulativas expandissem suas reflexões para o campo religioso, sobrenatural; os mistérios insolvidos na existência humana, como o nascimento, a reprodução, o declínio e a morte, foram projetados a uma dimensão maior. O Sol surge das trevas, crescendo em poder e luz na medida em que cruza o espaço, até o zênite, quando alcança a plenitude de sua magnificência, iniciando seu declínio exatamente nesse ponto, até “morrer” no oeste, retornando às trevas de onde veio.

Mas, sem dúvida, os cataclismos têm o dom de abalar nossas estruturas mentais e emocionais. Pela sua terrível grandiosidade, provocam medo, em tal intensidade que suplanta convicções e obriga a procedimentos desesperados. Durante as catástrofes de vulto, não se pensa em outra coisa senão salvar a vida, que passa a ser prioridade na escala de valores. Inimizades raciais, pendengas políticas ou religiosas, tudo isso tende a ficar em segundo plano, pelo menos enquanto durem as conseqüências do desastre. Os conflitos internacionais de nossos dias, tão preocupantes, perdem espaço nos veículos de comunicação, para que noções como a solidariedade e o amor ao próximo sejam recordadas com veemência. Concomitantemente, há um recrudescimento das manifestações religiosas, ocasião em que os vaticínios dos fundadores e profetas de cada grupo se convertem no tema central das discussões, reflexões, palestras e pregações, sendo os desvios no cumprimento de regras morais apontados como a causa do tormento coletivo. Mais uma vez tenta-se vincular o propósito humano à ordem geral da natureza.

Parece que, sob o ponto de vista moral e espiritual, o homem sai das catástrofes quase sempre um pouco melhor, apesar do quão traumatizantes aquelas possam ser. A impressão que se tem é de que, conscientes ou não, formamos um imenso organismo, que, como um todo, se ressente do que sofra alguma parte. Mesmo hoje, com o conhecimento científico amortecendo o impacto psicológico, acontecimentos como o maremoto na Ásia geram consternação e compaixão, mobilizando nações e indivíduos na tarefa de socorro às vitimas.

Deveríamos, portanto, com base na observação, inferir que há uma intenção moral na raiz das tragédias coletivas? Ou teria essa Consciência superior aproveitado, por assim dizer, o poder destruidor de tais acontecimentos, reunindo, de alguma forma cujo mecanismo nos escapa, certo número de seres comprometidos perante alguma de suas Leis, para ajuste em massa?

A bem da verdade, precisamos reconhecer a exigüidade do conhecimento acerca da mecânica do Universo e da natureza. Segundo os próprios homens de ciência, sabe-se mais da superfície da Lua do que do interior da Terra, em que pesem os louváveis esforços de superação que vêm, a cada dia, nos surpreendendo com mais e mais avanços tecnológicos que oferecem instrumentos de extraordinária sofisticação, destinados à pesquisa nos diversos ramos do saber científico. Para sermos justos, conhecemos mais o sistema solar do que nosso próprio corpo! Senão, vejamos: até bem pouco tempo desconhecíamos a circulação do sangue. Durante milênios especulou-se quanto à origem de certas doenças e, ainda hoje, há quem as creia produto de influencias sobrenaturais malignas. Só muito recentemente a medicina começou a admitir a hipótese da ação da mente e das emoções sobre o equilíbrio fisiológico humano. Parece que foi ontem que biólogos conseguiram traçar um mapa genético do homem, surgindo daí mais perguntas que respostas. Timidamente, a neurologia, a psiquiatria e a psicologia ensaiam os primeiros passos no extenso caminho a ser desbravado que são os segredos do pensamento e funções mentais e psíquicas. E a vida, como fenômeno manifesto, continua sendo o maior enigma!

“Cada um de nós é um universo!” Do pouco que conhecemos desse microcosmo, há um aspecto digno de nota: somos organicamente regidos por ciclos. A fecundação, a gestação, o parto, o desenvolvimento físico e mental de uma pessoa, acontecem em conformidade com o pulsar do chamado “relógio biológico”, que tem um tempo para cada coisa. As transições entre as fases da vida costumam ser marcadas externa e internamente, como no caso da passagem da infância para a adolescência e desta para a idade adulta. A parte notável de tudo isso é que tais ciclos independem de nossa vontade para se desenrolar. No momento preciso, o sistema endócrino entra em ação e acrescenta caracteres que fazem da menina uma mulher e do garoto um homem, aptos à perpetuação de sua espécie. Da mesma forma, após atingir a plenitude de seus atributos, começa para o ser vivente o declínio, até a inevitável separação dos elementos que o constituem, no evento da morte. E tudo se dá em acordo com a Lei natural, que também não nos consulta para se cumprir. Vemos nisso a total semelhança entre o funcionamento das leis no cosmo, na natureza e no homem.

Resta, portanto, o questionamento inicial: existirá, porventura, relação intencional entre os imensuráveis movimentos cíclicos naturais e cósmicos e o processo evolutivo humano? O princípio hermético que afirma ser “em cima como é embaixo” responderia a essa pergunta?

Janeiro, 2005

Auro Barreiros

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