sexta-feira, 20 de março de 2020

A ÁRVORE À BEIRA DO CCAMINHO



Quantos vão passando e vão passando,
E eu parada no mesmo lugar!
Quantos no destino estão chegando,
E vem à minha sombra repousar!

Alguns, desiludidos, vão voltando,
E eu não faço mais que lamentar
A sina dos que lutam sem vitória,
A triste história que alguns tem pra contar!

Cobertos vêm alguns de ouro e glória,
E eu não faço mais que meditar;
Enquanto o braço é forte o rei é posto,
Rei morto não tem trono pra reinar!

Quando a chuva cai do céu purificando,
Vêm as aves nos meus galhos se abrigar.
Passa o tempo e eu prossigo imaginando,
Levando a vida tão somente a imaginar!...



Auro



sábado, 14 de março de 2020

POR UMA PÁSCOA MAIS FELIZ




A Páscoa, para o mundo cristão, é a síntese de toda a mensagem evangélica; é o resumo da fé. Enquanto o nascimento de Jesus representa a esperança de libertação na figura do Deus menino, a Páscoa é a certificação da liberdade espiritual, sacramentada pela ressurreição. É a vitória contra o maior temor do homem, o renascimento para a vida gloriosa por diversas vezes relembrada no texto bíblico. É um dos mais significativos símbolos de renovação.

Para o místico, símbolos constituem a linguagem ideal da alma. As tribulações da vida terrena representadas pelo braço horizontal da cruz, são aspectos de uma condição passiva;  todo homem partilha o seu quinhão de sofrimento, seja de ordem física ou moral, uma vez que a carne é perecível.  Não há como fugir da realidade constatada por Sidarta Gautama, o Buda: tudo o que tem começo tem fim. Isso, inclusive, é a régua que iguala os seres humanos perante as leis naturais.
No entanto, o homem não se resume ao corpo. Seja qual for o termo empregado ou a teoria adotada, é certo que expressamos outra fase da vida que se reflete na consciência, no pensamento e no psiquismo. Esta manifestação é de natureza intangível, ainda que dependa dos órgãos físicos. Desta fase imponderável, que poderia ser chamada de alma, brota o impulso em direção ao que a ela se assemelha, ou, por outra, aquilo que a alma presente ser a sua fonte original; a espiritualidade. Como que sujeita à poderosa força gravitacional de um gigantesco sol, a alma é atraída para o alto, para níveis mais refinados e abrangentes de percepção. É o braço vertical da cruz, a ascensão da consciência ao plano divino.

Mas qualquer subida exige esforço. Quem escala uma montanha costuma levar consigo apenas o essencial à sua sobrevivência, ainda que isso implique na renúncia ao conforto. A cada lance da subida, o alpinista revê sua bagagem e decide abrir mão de algum objeto cujo peso, somado às dificuldades causadas pela rarefação da atmosfera, o faça despender mais energia do que o necessário.  Da mesma forma, a espiritualização exige uma periódica e minuciosa reavaliação da bagagem psíquica que o homem acumula na experiência mundana. Essa reavaliação pode não ser prazerosa, devido ao apego que costumamos ter às nossas características de personalidade. Pode acontecer que a opinião que temos a nosso próprio respeito sofra alguns golpes de realidade e descubramos que o que julgávamos ser uma virtude é apenas uma forma disfarçada de vaidade. Pode ser que algumas atitudes que nos pareceram corretas no passado ressurjam na memória como lamentáveis equívocos.  Pode ser que essa revisão da vida nos cause algum sofrimento moral.

São João da Cruz, grande místico e religioso espanhol (1542 – 1591) definiu esse tipo de sofrimento como “a noite negra da alma”, o período de purgação moral que antecede o renascimento espiritual, misticamente denominado “o Áureo Alvorecer”.  Após a noite de convívio com as próprias trevas, remexendo os escaninhos de sua própria consciência, confrontando a si mesmo e questionando seus valores, na solidão do recolhimento interior, o homem morre para si mesmo em sua anterior condição, para renascer purificado e pronto para mais uma jornada rumo à verdadeira espiritualização.  Seria, na visão mística, a “Páscoa nossa de cada dia”, no cumprimento da lei de evolução.

Que o símbolo maior da Páscoa, a renovação do Amor no coração, seja compreendido e concretizado por toda a humanidade; que os indesejáveis pesos da ambição, da arrogância, da intolerância e do ódio sejam arremessados ao abismo, para que o mundo se eleve um pouco mais em direção a Deus.


Auro Barreiros


quinta-feira, 3 de outubro de 2019

LEVEZA



O maestro movimenta a batuta e os belíssimos acordes de diversos instrumentos preenchem o silêncio do grande teatro. Delicadas notas de violinos marcam a entrada de uma bailarina, que evolui até o centro do palco. Movimentos tão elegantes quanto precisos causam a ilusão de que a esbelta jovem flutua, como pluma ao sabor da brisa. Cena de puro encantamento, imagem da leveza!..

Leveza: palavra que envolve um dos aspectos mais problemáticos da vida humana. Leveza lembra convívio, relacionamento, diferenças... Desafios do cotidiano, que denunciam o grau de harmonia ou de conflitos na existência de cada um. Diante das divergências de opinião ou crença, ou no enfrentamento das adversidades, é comum a recomendação de que se aceite com leveza as diferenças e os reveses.

Mas, afinal, o que vem a ser essa leveza? Seria a passividade sorridente? Seria o dar de ombros diante da gravidade dos obstáculos ou do assédio da arrogância? Seria o ato de minimizar a realidade, ou mesmo ignorá-la, sob o pretexto de buscar a paz?

Voltemos à nossa bailarina. Seus movimentos desafiam a gravidade; sua leveza é real. Para a plateia, o sentimento é de que a dança flui, natural e inconscientemente, como o voo dos pássaros. Eis aí o ledo engano! A artista traz ao palco horas, dias, meses e anos de dura disciplina, estudo diligente e dolorosos exercícios de condicionamento físico. O bailado que cativa custou lágrimas e renúncias.

Na vida, como na dança, a leveza não vem de graça. Na vida, como na dança, há que se corrigir posturas, aperfeiçoar atitudes e desenvolver o discernimento. Na vida, como na dança, não se deve confundir leveza com alienação, sob pena de se perder o compasso e tropeçar nos próprios pés.

Que o homem seja leve. Que conviva em harmonia com as diferenças, sem que isso lhe cause constrangimento. Mas, diante da crueldade, da tirania e da agressão ao indefeso, que o homem seja, antes de tudo, honesto perante a sua verdade.
Que o homem seja leve. Mas que não faça desse ato de comedimento máscara para dissimular a indiferença ante as incongruências de conduta, tanto alheias como próprias, tão comuns quanto nefastas. Que sua leveza não se converta em conivência com a desonestidade, ou mero comodismo ante o imperativo do progresso ético.
Que o homem seja leve no trato com as próprias dores. Mas que faça brotar essa leveza da compreensão íntima da lição contida em cada evento doloroso ou prazeroso da existência.

Leveza não é conformismo.
Leveza não deve ser hipócrita.
Leveza não é leniência.
Na árdua tarefa de construir o caráter, virtudes como o bom-senso, o comedimento, a tolerância, a empatia, são conquistadas a duras penas, ao preço de erros e acertos, derrotas e vitórias, encantamentos e desenganos. No cadinho do tempo, acontece a fusão das experiências e a transmutação reveladora da preciosidade da alma que, agora verdadeiramente leve, assim como a bailarina, evolui plena e bela no tablado da vida!



Auro
1/10/2019




terça-feira, 3 de setembro de 2019

ECOLOGIA INTERIOR



É inegável que a negligência em relação ao meio ambiente tem resultado em conseqüências trágicas para o ser humano. Aos desastres de proporções catastróficas, que mais parecem atos de rebelião da Natureza, juntam-se os efeitos lentos e silenciosos das diversas formas de contaminação. Agrotóxicos, depósitos de lixo e a emissão de gases tóxicos pelas indústrias comprometem três elementos básicos para a manutenção de toda a vida na Terra: o ar, a água e os alimentos.

A gravidade dos problemas ambientais, ainda que existente desde o início da civilização, só chegou à consciência do homem muito recentemente. Agora, além da pesquisa em busca de métodos para a preservação da natureza, a ciência tem que tentar conter os efeitos de séculos de práticas destrutivas e contaminantes, que se refletem tanto no clima quanto no âmago dos organismos vivos, entre os quais está o ser humano. Este é um dos maiores problemas e desafios da humanidade atual.

Mas, paralelamente à questão ambiental, que visa o aspecto exterior da vida, o homem moderno enfrenta outro problema extremamente grave; a contaminação e degradação de seu ambiente interior. A despeito do extraordinário desenvolvimento intelectual já atingido (ou talvez por isso mesmo), não há como desconhecer a crise de personalidade que assedia milhões de pessoas em todo o planeta. O consumo exacerbado de álcool e drogas é a evidência gritante de que o ser humano ainda tem enorme dificuldade em lidar consigo mesmo. Se fosse possível traçar o perfil psicológico de todos os envolvidos em crimes e acidentes de trânsito no momento de cada ocorrência, certamente descobriríamos em cada infrator um ser angustiado, em conflito com sua própria natureza íntima. Conheceríamos histórias de ausência de valores, equívocos e distorções quanto a princípios éticos, frustrações afetivas, orgulho ferido, sintomas claros de perturbação mental e emocional.

A constatação de que esse caos interior é, em maior ou menor grau, a condição de parte considerável da humanidade, evoca a célebre injunção filosófica que foi inscrita no portal do templo de Apolo, em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo.” 

O começo e o fim de tudo estão dentro do próprio eu. É o desconhecimento de si, no sentido essencial, a matriz de todos os desacertos que o homem comete contra sua própria espécie. Por ignorar o estreito parentesco com o seu semelhante, o homem tem sido capaz de malversar recursos naturais em nome do lucro, gerando riscos e sofrimento aos demais. Por não conceber a existência de uma lei natural equânime e eficaz, cria seu próprio conceito de justiça e o aplica sempre que se sente traído, constrangido ou ameaçado. E quando se defronta com os efeitos de suas atitudes, tenta de todas as formas evitar o sofrimento, quase sempre sem sucesso. É o meio ambiente interior que reage às agressões e busca o equilíbrio original, ainda que doa.

Ao mesmo tempo em que preserva a Natureza ao seu redor, o homem precisa preservar o equilíbrio de seu mundo mental e emocional. Quinze minutos diários de dedicação a si mesmo costumam ser mais eficientes para isso do que as inúmeras formas de escapismo que a modernidade oferece. Contemplar-se diante do espelho da consciência e examinar pensamentos, sentimentos e atos pelo princípio da reciprocidade pode ser mais gratificante e produtivo para o crescimento pessoal do que dezenas de livros de auto-ajuda, tão em voga nos dias de hoje.

A meditação é uma excelente ferramenta de aprimoramento pessoal, através da elevação da consciência a níveis superiores. Pela meditação é possível vislumbrar nosso mundo interno, bem como realizar os ajustes que resultem em maior harmonia com as leis naturais e cósmicas.




Auro Barreiros



segunda-feira, 2 de setembro de 2019

EQUILÍBRIO E HARMONIA




Quando conhecemos alguém que raramente comete deslizes, que não se dá a excessos, que mantém relativo controle sobre suas emoções e evita maiores comprometimentos, costumamos dizer que se trata de uma pessoa equilibrada. Da mesma forma, o homem ou a mulher cujo comportamento extrapola os limites do convencional são vistos como desequilibrados. Mas, afinal, o que é o equilíbrio? Em relação à vida humana, o que significa essa palavra?

Primeiramente, consideremos a definição formal de equilíbrio: “Estado de repouso de um corpo solicitado por várias forças que se anulam. Posição estável do corpo humano. Exibição acrobática. Ponderação, calma, prudência: equilíbrio de espírito. Justa combinação de forças, de elementos”.  Esta sequência de conceitos denuncia a velha dificuldade humana quanto às palavras.  No primeiro caso, se um objeto qualquer for submetido a forças iguais em sentidos opostos, permanecerá em equilíbrio, ainda que debaixo de pressões conflitantes. Na “justa combinação de forças” não se sabe em que proporção cada força pode ser considerada justa.
Passemos, então, à definição que se refere mais diretamente ao ser humano: “ponderação, calma, prudência”.  Aqui, como podemos ver, o equilíbrio emocional é conceituado pelo senso comum. Quem aparenta calma é tido como equilibrado. Na natureza, porém, não é o equilíbrio (equivalência de forças) que produz movimento e vida, mas exatamente o rompimento dessa equivalência. As águas correm para o mar porque o mar está abaixo do nível das nascentes. A energia elétrica aciona máquinas e acende luzes devido à diferença de potencial entre as polaridades.

Com o ser humano não é diferente. Os potenciais psíquicos que determinam as manifestações emocionais e criativas permaneceriam estagnados como um lago, se não existisse um vazio, um declive ou uma “força oposta” que os obrigasse a fluir. Se nossos atributos espirituais fossem “submetidos a várias forças que se anulam”, nenhuma produção intelectual, artística ou humanitária aconteceria. A evolução não aconteceria. Assim, imaginar que a repressão das emoções, a imposição do autocontrole sejam demonstrações de equilíbrio é desconhecer as necessidades legítimas da alma: a livre expressão dos sentimentos, a livre apreciação da realidade, a livre aceitação ou rejeição daquilo que sua consciência determine.

O estado ideal é aquele em que a vida emocional não seja regulada pelas convenções, mas pela relação harmônica entre a natureza exterior e a natureza interior; que possamos nos alegrar com que é belo,  bom e prazeroso ou nos entristecermos com o que seja oposto a tudo isso, com a mesma liberdade, sem que a alegria gere culpa ou a tristeza seja interpretada como pagamento de pecados.

É evidente que todo excesso é indesejável. Mas o progressivo conhecimento de nossa própria constituição psíquica nos oferece os mecanismos de moderação que nos permitam uma vida emocional sadia. A justa distribuição de nossas forças interiores estabelece a condição que os místicos denominaram “Harmonium”.  Diferentemente do equilíbrio como oposição de forças com vistas à neutralidade, o “Harmonium” é a livre, porém ordenada relação entre essas energias, para uma existência plena de saúde, criatividade e paz no convívio com os semelhantes.


Auro Barreiros