Entre o escrito, o falado e o cantado passei boa parte da vida. Agora, com a bênção do tempo a revisar minhas ideias, desfruto o prazer de compartilhá-las. Seja bem-vindo; navegue,opine. fique à vontade.
segunda-feira, 2 de dezembro de 2019
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
LEVEZA
O maestro movimenta a
batuta e os belíssimos acordes de diversos instrumentos preenchem o silêncio do
grande teatro. Delicadas notas de violinos marcam a entrada de uma bailarina,
que evolui até o centro do palco. Movimentos tão elegantes quanto precisos
causam a ilusão de que a esbelta jovem flutua, como pluma ao sabor da brisa.
Cena de puro encantamento, imagem da leveza!..
Leveza: palavra que
envolve um dos aspectos mais problemáticos da vida humana. Leveza lembra
convívio, relacionamento, diferenças... Desafios do cotidiano, que denunciam o
grau de harmonia ou de conflitos na existência de cada um. Diante das
divergências de opinião ou crença, ou no enfrentamento das adversidades, é
comum a recomendação de que se aceite com leveza as diferenças e os reveses.
Mas, afinal, o que vem
a ser essa leveza? Seria a passividade sorridente? Seria o dar de ombros diante
da gravidade dos obstáculos ou do assédio da arrogância? Seria o ato de
minimizar a realidade, ou mesmo ignorá-la, sob o pretexto de buscar a paz?
Voltemos à nossa
bailarina. Seus movimentos desafiam a gravidade; sua leveza é real. Para a
plateia, o sentimento é de que a dança flui, natural e inconscientemente, como
o voo dos pássaros. Eis aí o ledo engano! A artista traz ao palco horas, dias,
meses e anos de dura disciplina, estudo diligente e dolorosos exercícios de
condicionamento físico. O bailado que cativa custou lágrimas e renúncias.
Na vida, como na dança,
a leveza não vem de graça. Na vida, como na dança, há que se corrigir posturas,
aperfeiçoar atitudes e desenvolver o discernimento. Na vida, como na dança, não
se deve confundir leveza com alienação, sob pena de se perder o compasso e
tropeçar nos próprios pés.
Que o homem seja leve. Que
conviva em harmonia com as diferenças, sem que isso lhe cause constrangimento.
Mas, diante da crueldade, da tirania e da agressão ao indefeso, que o homem
seja, antes de tudo, honesto perante a sua verdade.
Que o homem seja leve.
Mas que não faça desse ato de comedimento máscara para dissimular a indiferença
ante as incongruências de conduta, tanto alheias como próprias, tão comuns
quanto nefastas. Que sua leveza não se converta em conivência com a
desonestidade, ou mero comodismo ante o imperativo do progresso ético.
Que o homem seja leve
no trato com as próprias dores. Mas que faça brotar essa leveza da compreensão
íntima da lição contida em cada evento doloroso ou prazeroso da existência.
Leveza não é conformismo.
Leveza não deve ser
hipócrita.
Leveza não é leniência.
Na árdua tarefa de construir
o caráter, virtudes como o bom-senso, o comedimento, a tolerância, a empatia,
são conquistadas a duras penas, ao preço de erros e acertos, derrotas e
vitórias, encantamentos e desenganos. No cadinho do tempo, acontece a fusão das
experiências e a transmutação reveladora da preciosidade da alma que, agora
verdadeiramente leve, assim como a bailarina, evolui plena e bela no tablado da
vida!
Auro
1/10/2019
terça-feira, 3 de setembro de 2019
ECOLOGIA INTERIOR
É inegável que a negligência
em relação ao meio ambiente tem resultado em conseqüências trágicas para o ser
humano. Aos desastres de proporções catastróficas, que mais parecem atos de
rebelião da Natureza, juntam-se os efeitos lentos e silenciosos das diversas
formas de contaminação. Agrotóxicos, depósitos de lixo e a emissão de gases
tóxicos pelas indústrias comprometem três elementos básicos para a manutenção
de toda a vida na Terra: o ar, a água e os alimentos.
A gravidade dos problemas
ambientais, ainda que existente desde o início da civilização, só chegou à
consciência do homem muito recentemente. Agora, além da pesquisa em busca de
métodos para a preservação da natureza, a ciência tem que tentar conter os
efeitos de séculos de práticas destrutivas e contaminantes, que se refletem
tanto no clima quanto no âmago dos organismos vivos, entre os quais está o ser
humano. Este é um dos maiores problemas e desafios da humanidade atual.
Mas, paralelamente à questão
ambiental, que visa o aspecto exterior da vida, o homem moderno enfrenta outro
problema extremamente grave; a contaminação e degradação de seu ambiente
interior. A despeito do extraordinário desenvolvimento intelectual já atingido
(ou talvez por isso mesmo), não há como desconhecer a crise de personalidade
que assedia milhões de pessoas em todo o planeta. O consumo exacerbado de
álcool e drogas é a evidência gritante de que o ser humano ainda tem enorme
dificuldade em lidar consigo mesmo. Se fosse possível traçar o perfil
psicológico de todos os envolvidos em crimes e acidentes de trânsito no momento
de cada ocorrência, certamente descobriríamos em cada infrator um ser
angustiado, em conflito com sua própria natureza íntima. Conheceríamos
histórias de ausência de valores, equívocos e distorções quanto a princípios
éticos, frustrações afetivas, orgulho ferido, sintomas claros de perturbação mental e emocional.
A constatação de que esse caos
interior é, em maior ou menor grau, a condição de parte considerável da
humanidade, evoca a célebre injunção filosófica que foi inscrita no portal do
templo de Apolo, em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo.”
O começo e o fim de tudo
estão dentro do próprio eu. É o desconhecimento de si, no sentido essencial, a
matriz de todos os desacertos que o homem comete contra sua própria espécie.
Por ignorar o estreito parentesco com o seu semelhante, o homem tem sido capaz
de malversar recursos naturais em nome do lucro, gerando riscos e sofrimento
aos demais. Por não conceber a existência de uma lei natural equânime e eficaz,
cria seu próprio conceito de justiça e o aplica sempre que se sente traído,
constrangido ou ameaçado. E quando se defronta com os efeitos de suas atitudes,
tenta de todas as formas evitar o sofrimento, quase sempre sem sucesso. É o
meio ambiente interior que reage às agressões e busca o equilíbrio original,
ainda que doa.
Ao mesmo tempo em que preserva
a Natureza ao seu redor, o homem precisa preservar o equilíbrio de seu mundo
mental e emocional. Quinze minutos diários de dedicação a si mesmo costumam ser
mais eficientes para isso do que as inúmeras formas de escapismo que a
modernidade oferece. Contemplar-se diante do espelho da consciência e examinar
pensamentos, sentimentos e atos pelo princípio da reciprocidade pode ser mais
gratificante e produtivo para o crescimento pessoal do que dezenas de livros de
auto-ajuda, tão em voga nos dias de hoje.
A meditação é uma excelente
ferramenta de aprimoramento pessoal, através da elevação da consciência a
níveis superiores. Pela meditação é possível vislumbrar nosso mundo interno,
bem como realizar os ajustes que resultem em maior harmonia com as leis
naturais e cósmicas.
Auro Barreiros
segunda-feira, 2 de setembro de 2019
EQUILÍBRIO E HARMONIA
Quando
conhecemos alguém que raramente comete deslizes, que não se dá a excessos, que
mantém relativo controle sobre suas emoções e evita maiores comprometimentos,
costumamos dizer que se trata de uma pessoa equilibrada. Da mesma forma, o
homem ou a mulher cujo comportamento extrapola os limites do convencional são
vistos como desequilibrados. Mas, afinal, o que é o equilíbrio? Em relação à
vida humana, o que significa essa palavra?
Primeiramente,
consideremos a definição formal de equilíbrio: “Estado de repouso de um corpo solicitado por várias forças que se anulam.
Posição estável do corpo humano. Exibição acrobática. Ponderação, calma,
prudência: equilíbrio de espírito. Justa combinação de forças, de
elementos”. Esta sequência de conceitos
denuncia a velha dificuldade humana quanto às palavras. No primeiro caso, se um objeto qualquer for
submetido a forças iguais em sentidos opostos, permanecerá em equilíbrio, ainda
que debaixo de pressões conflitantes. Na “justa combinação de forças” não se
sabe em que proporção cada força pode ser considerada justa.
Passemos, então, à definição que se refere mais
diretamente ao ser humano: “ponderação, calma, prudência”. Aqui, como podemos ver, o equilíbrio
emocional é conceituado pelo senso comum. Quem aparenta calma é tido como
equilibrado. Na natureza, porém, não é o equilíbrio (equivalência de forças)
que produz movimento e vida, mas exatamente o rompimento dessa equivalência. As
águas correm para o mar porque o mar está abaixo do nível das nascentes. A
energia elétrica aciona máquinas e acende luzes devido à diferença de potencial
entre as polaridades.
Com o ser humano não é diferente. Os potenciais
psíquicos que determinam as manifestações emocionais e criativas permaneceriam
estagnados como um lago, se não existisse um vazio, um declive ou uma “força
oposta” que os obrigasse a fluir. Se nossos atributos espirituais fossem
“submetidos a várias forças que se anulam”, nenhuma produção intelectual,
artística ou humanitária aconteceria. A evolução não aconteceria. Assim,
imaginar que a repressão das emoções, a imposição do autocontrole sejam
demonstrações de equilíbrio é desconhecer as necessidades legítimas da alma: a
livre expressão dos sentimentos, a livre apreciação da realidade, a livre
aceitação ou rejeição daquilo que sua consciência determine.
O estado ideal é aquele em que a vida emocional não
seja regulada pelas convenções, mas pela relação harmônica entre a natureza
exterior e a natureza interior; que possamos nos alegrar com que é belo, bom e prazeroso ou nos entristecermos com o
que seja oposto a tudo isso, com a mesma liberdade, sem que a alegria gere
culpa ou a tristeza seja interpretada como pagamento de pecados.
É evidente que todo excesso é indesejável. Mas o
progressivo conhecimento de nossa própria constituição psíquica nos oferece os
mecanismos de moderação que nos permitam uma vida emocional sadia. A justa
distribuição de nossas forças interiores estabelece a condição que os místicos denominaram
“Harmonium”. Diferentemente do
equilíbrio como oposição de forças com vistas à neutralidade, o “Harmonium” é a
livre, porém ordenada relação entre essas energias, para uma existência plena
de saúde, criatividade e paz no convívio com os semelhantes.
Auro Barreiros
sábado, 10 de agosto de 2019
quinta-feira, 1 de agosto de 2019
O LEGADO DA EXISTÊNCIA
A
humanidade, no seu processo civilizatório, consagrou alguns costumes que
merecem uma análise mais acurada, como, por exemplo, as leis que regulamentam o
destino do espólio, o conjunto de bens que alguém amealhou até o momento de sua
morte. A ideia de herança, provavelmente, é consequência do conceito de família
e das responsabilidades que disso advém; a preocupação com a sobrevivência dos
que ficam ensejou o estabelecimento de normas protetivas de patrimônio e a
regulamentação de partilhas. Apesar das contendas que, muitas vezes,
transformam esse ato solene em batalha campal, a intenção de preservar a
dignidade e os direitos dos familiares justifica o costume, que é lei na maior
parte das nações.
Deixar
uma herança é, para muitos, uma das principais motivações da vida,
especialmente quando na idade madura. A consciência da finitude da jornada
terrena e o temor antecipado de possíveis dificuldades para os familiares levam
o ser humano a sacrificar alguns de seus ideais e a adotar condutas nem sempre
louváveis em relação a negócios e dinheiro.
Um belo
dia, eis que se parte desse vale de lágrimas. Findas as exéquias, abre-se o
testamento e cumpre-se a vontade do falecido, que segue em paz, na premissa de
que seus entes queridos não sofrerão privações, graças ao seu esforço e
sacrifício pessoal, quando em vida. No que diga respeito aos bens palpáveis,
missão cumprida.
Será
esse, porventura, o único ou o maior legado de uma vida? Pode-se estar seguro
de que os bens, o dinheiro, realmente serão a salvaguarda dos que aqui ficam,
em todos os aspectos da existência? Inúmeras histórias de malversação de
formidáveis heranças, de disputas ferrenhas e sangrentas e decadência de
famílias tradicionais colocam em xeque essa ideia de segurança. Ao contrário,
indicam que, na maior das vezes, é justamente o súbito enriquecimento sem labor
o mote para o esbanjamento e a consequente derrocada.
Se há
uma vida além-túmulo, e se de lá é possível observar o que aqui se passa,
certamente, amargas lágrimas têm sido vertidas por aqueles que se negaram a
própria felicidade, no empenho de construir e legar um patrimônio para o bem
dos seus amados. Talvez, ao testemunhar o solene esquecimento que lhes é
votado, almas decepcionadas rememorem os passos dados na Terra e se perguntem,
frustradas, onde teriam errado.
Saindo
da situação individual para o plano coletivo, tenhamos em mente que a
civilização é uma somatória de heranças, que podem ser distintas em três
aspectos: a herança física, cuja prevalescência começa pelo próprio corpo; a
herança cultural, decorrente do acúmulo de saberes que transmigram através das
gerações; e a herança espiritual, que se reflete na busca pela transcendência e
compreensão íntima da natureza do ser. Fisicamente, há leis naturais que, ao
longo das eras, ajustam o ser vivo ao ambiente e às necessidades de
sobrevivência, replicando esses ajustes através da hereditariedade (o nome não
foi escolhido ao acaso). O peludo Neandertal foi se refinando, na medida mesma
das alterações ambientais, até chegar ao que somos hoje. É possível que, daqui
a um ou dois milhões de anos, se não nos destruirmos antes, tenhamos algumas
diferenças físicas em relação ao que somos atualmente.
A
herança cultural, por sua vez, é produto de uma condição particular do ser
humano: a racionalidade. Aparentemente, somos os únicos seres que afetam
deliberadamente o meio em que vivem. Enquanto os animais, ainda que manifestem
inteligência, parecem obedecer a uma programação inconsciente e imutável, como
os pássaros ao construir seus ninhos, o homem manipula e transforma a matéria
segundo seus impulsos criativos. Essas diferenças básicas deram origem a
práticas como a caça, a pesca e, posteriormente, a agricultura, matriz das
primeiras comunidades e embriões de sociedades. Esse mesmo impulso criativo,
movido pelas necessidades e alimentado pela observação, promoveu (como o faz
até hoje), a evolução das práticas que, como um patrimônio imaterial, foram
sucessivamente herdadas e aprimoradas a cada geração. O surgimento da escrita
propiciou uma aceleração no progresso; o conhecimento, agora, poderia ser
registrado e perpetuado.
E a
herança espiritual, quem sabe, teve seu começo ao redor das primeiras
fogueiras. Aquecido e protegido, é possível que o homem primitivo tenha iniciado
ali o exercício das faculdades superiores da mente. Talvez tenha começado a
rememorar seus medos e encantamentos diante dos eventos naturais e esboçado as
primeiras crenças anímicas. Especulação
ou não, o certo é que as crenças primitivas também evoluíram, incorporando-se
ao processo civilizatório e sendo, como todas as demais conquistas,
transmitidas como legado às gerações posteriores. Do simples e quase irracional
temor do raio e do trovão, gradativamente se tornaram religiões organizadas,
com ontologias e dogmas. Chegou-se à filosofia, cuja forma metódica de sondar o
desconhecido findou por somar-se às religiões, aprimorando as doutrinas e
indicando uma finalidade maior: o autoconhecimento.
E então,
descobre-se que o autoconhecimento tem consequências profundas. Conhecer a si
mesmo, que é o alfa e o ômega da espiritualização, obriga o ser humano a
aprimorar seus conceitos de justiça, deixando, gradativamente, o terreno
individual, em favor do pensar coletivo e universal. Sob essa ótica, qual será
a qualidade do legado da humanidade para si mesma?
Antes de
qualquer argumento, é preciso que se estabeleça uma conceituação mais clara do
que vem a ser “civilização”. A palavra vem do latim, “civis”: cidadão, habitante da cidade, do que se depreende que, em
princípio, trata-se de uma consequência da vida coletiva. Para os antigos, isso
era relevante, tendo-se em conta a importância e os benefícios oriundos da
concentração humana em tribos e aldeias, que evoluíram para complexos urbanos.
A consequente organização social trouxe mais facilidade para a produção de
alimentos e bens de consumo; em caso de luta armada, o maior número de pessoas
aptas ao combate poderia ser decisivo na defesa do território. Ou seja, a dita
civilização teve, sob o ponto de vista puramente fenomenológico, raízes bem
pragmáticas.
Mas a
relativa tranquilidade consequente desse convívio “civilizado” fez aflorar
aspectos um tanto subjetivos da natureza humana. A inquietude intelectual
provocou o desenvolvimento das ciências e das artes; a busca espiritual elevou
o pensamento a questionamentos profundos quanto aos mistérios da natureza,
conforme expressados no próprio homem.
No
entanto, ainda que algumas luzes evolutivas brilhassem aqui e ali, certas
práticas animalescas persistiram inalteradas, no cotidiano da alegada
civilização, como se nem o tempo, nem as conquistas da mente tivessem produzido
alguma alteração no caráter primitivo.
Pelo contrário, parece que o progresso do conhecimento potencializou a
barbárie, ao sofisticar a letalidade. O refinamento da linguagem e a
prolixidade das ideologias servem, quase sempre, para oferecer razões aparentemente
plausíveis às guerras e suas consequências diretas ou indiretas: miséria, doença,
segregação, ódio racial, exploração do mais fraco, monopólios de recursos
naturais, rapinância econômica e o embrutecimento da sensibilidade aos valores
mais altos da ética e da justiça. Apenas para ilustrar, há regiões do mundo em
que povos disputam territórios há mais de dois mil anos, ao preço do sangue, numa
cascata de ódio e ressentimento que passa de geração para geração.
Em se
tratando de costumes, não há como dizer de que modo o vício da embriaguez
começou. Pode ter sido uma descoberta casual, que tenha propiciado um prazer
inédito ao homem primitivo. O que se tem de certo são os registros muito
antigos da incorporação de substancias inebriantes a práticas religiosas e ao
cotidiano das velhas civilizações. Ora
como ato de comunhão, ora como inocente recreação, o vinho, por exemplo, é
personagem onipresente em toda a História antiga, tendo presumida origem
divina. Mas, mesmo entre os devotos de Baco, sempre houve quem recomendasse
prudência e comedimento, tendo em vista os efeitos que é capaz de produzir no comportamento e na saúde humana. Como a
euforia etílica costuma ser surda, tais recomendações foram, pouco a pouco,
esquecidas. O alcoolismo progrediu vertiginosamente, abrindo portas para a adoção
do consumo de outras substancias ainda mais lesivas. Juntamente com o
tabagismo, álcool e drogas tornaram-se gravíssimo problema de saúde pública.
Paradoxalmente, porém, algumas das maiores pagadoras de impostos e geradoras de
empregos são, ironicamente, fábricas de bebidas e cigarros! O tráfico, por sua
vez, movimenta trilhões de dólares com o vício típicamente urbano do uso de
inebriantes, narcóticos, estupefacientes e alucinógenos, numa destruição
sistemática de lares e vidas.
A lista
de paradoxos e contradições em relação ao que se convencionou denominar
civilização é um pouco extensa. Sem obscurecer o progresso inegável, as nobres
conquistas nos diversos campos, não há como fechar os olhos para a realidade
que nos assedia cotidianamente, graças ao evoluído sistema moderno de
comunicações. E também não há como deixar de reconhecer que os verdadeiros
problemas que atormentam a humanidade são os mesmos de milênios atrás. O ponto
focal, portanto, é a questão inicial
dessa reflexão: qual é o legado que a humanidade está deixando para si mesma?
Pode ser
que encarar essas realidades gritantes tenha o dom de esvair esperanças e
alimentar um conformismo cínico. Isso é perigoso, pois induz a falsa premissa
de que o indivíduo é impotente diante da derrocada coletiva, restando-lhe
apenas “seguir a corrente” e compartilhar as dores do mundo. Pode ser que, pela
magnitude do caos moral, o indivíduo se exima de maiores responsabilidades e
até aceite passivamente o andar da carruagem. E, nessa conjuntura, é preciso
ter em mente que a evolução coletiva é efeito da evolução individual. A mesma
História que registra as incoerências e atrocidades humanas também informa que,
em todas as épocas, houve indivíduos que influenciaram coletividades. As
conquistas morais e espirituais de uns poucos têm sido o fermento para
formidáveis aprimoramentos na sociedade. Logo, a inércia de um povo não
sanciona a inércia pessoal. Mas a soma dos esforços individuais faz girar a
roda do progresso.
Provavelmente,
esse deve ser o grande e melhor legado, tanto da civilização, como um todo,
quanto do indivíduo, como parte indissociável desse todo. Que o espólio de cada
ser humano, ao término da jornada terrena, seja o produto de seus esforços na
construção da própria personalidade. Que os valores imateriais cultivados
possam servir de farol ético à sucessiva geração; valores que se multiplicam na
proporção em que são utilizados na economia da vida. Equanimidade, respeito a
tudo, busca incansável do conhecimento, pensamento e ação voltados para o bem
coletivo, cultura da Paz; valores cujo tamanho não se mede senão pelas
consequências que geram onde são aplicados.
“Uma
alma que se eleva, eleva o mundo inteiro”.[1]
Auro
Barreiros
25/2/2019
terça-feira, 15 de janeiro de 2019
CRÔNICAS DE NEANDERTHAL
Crônicas de
Neanderthal
(ou “No
tempo dos dinossauros falantes”)
No
princípio, era a pedra.
Lascada,
polida,
Que, se
arremessada,
Feria de
morte.
E as pedras
rolaram,
Se sofisticaram,
No curso das
eras.
Agora ligeiras,
Precisas,
Letais,
Como nunca o
foram,
Jamais,
Não mais
abatem feras;
Abatem princípios
Morais.
Auro
15/1/2019
segunda-feira, 31 de dezembro de 2018
CRONOS
Renovar é
lei da vida.
Transformar,
talvez, a única certeza.
É a rotina
do Cosmo, o perpétuo vir-a-ser, que garante a perenidade das coisas efêmeras. Ao
contrário da imutabilidade, que cristaliza e estanca, a transitoriedade é o
cenário perfeito para o aprendizado da Alma. Na impermanência é que se colhem fragmentos
de eternidade.
Se renovar
costuma ser prazeroso, transmutar pode doer. A incerteza do novo provoca
receios obscuros, frutos do temor irracional que se tem do desconhecido. O que
será? O que virá? O painel do futuro, encoberto pelo véu do tempo, pode causar
uma dolorosa expectativa e o desejo inconsciente de não mudar o que já se conhece,
de não se afastar do modesto cercado que cada um constrói em torno de sua limitada
realidade.
Mas,
goste-se ou não, a lei se cumpre. No processo de reorganização dos elementos,
gera novas expressões da Inteligência oculta no âmago de todas as coisas. E a
vivência do novo desvenda propriedades insuspeitas, possibilidades ainda
inimaginadas, motivações e horizontes para a Alma. É como se a paleta do
artista apresentasse, a cada amanhecer, um novo pigmento, ampliando o
repertório de cores e inspiração para sua tela. Dramaticamente, de ciclo em
ciclo, entre lágrimas e sorrisos, prossegue a Alma a execução de sua
obra-prima.
Pode até
doer. Mas nada paga o júbilo de contemplar seu auto-retrato e reconhecer-se
plenamente, descobrir-se por inteiro, integrar-se à perfeição da Lei e ter para
si o Universo como o quintal de sua infância.
Auro
31/12/2018
domingo, 16 de dezembro de 2018
domingo, 25 de novembro de 2018
UTOPIAS TRANSFORMADORAS
Ainda
que a palavra “utopia” seja de origem relativamente recente, um retrospecto da
história da humanidade parece indicar que a idealização de tempos mais felizes
é uma prática quase tão antiga quanto o próprio homem. Talvez, ao redor das primeiras fogueiras,
impulsionado pelo mistério da luz, entre as expressões do presente imediato,
despontassem tímidas projeções do dia de amanhã, nas quais o alimento fosse
mais tranquilamente obtido, as ameaças à vida deixassem de existir e o embrião
do conceito de paz tomasse forma em seu cotidiano. Comida e segurança; pode ter
sido essa a primeira utopia do homo
sapiens.
Utopia é
resultado da imaginação, atributo decorrente da autoconsciência que,
aparentemente, é a principal distinção entre o homem e as demais espécies de
vida. Com os elementos da experiência, armazenados na memória, somos capazes de
reinventar a realidade e aperfeiçoar procedimentos, com vistas a um estado
ideal, denominado “felicidade”. Certamente, a imaginação criativa é o atributo
responsável por tudo o que somos hoje, como civilização. É provável que
estaríamos ainda em cavernas ou árvores, caso não tivéssemos imaginado e
perseguido o aperfeiçoamento das condições para a existência. Imaginação depende da observação, que leva à
reflexão e à formação de parâmetros necessários à construção de conceitos; eis
a base da filosofia e da ciência.
Atualmente,
porém, talvez em função de um progresso desenfreado, a tal “felicidade”
adquiriu tantas definições quanto o número de interesses que movem a sociedade;
assim como um camaleão, o conceito de felicidade muda de enunciado segundo a
ideologia política, a dominação religiosa ou os investimentos do sistema de
produção e consumo. O resultado desse modelo é uma humanidade ansiosa, por ter
que pagar um preço de submissão para alcançar os objetos que simbolizam a
felicidade moderna. Uma humanidade frustrada por diferenças sociais tidas como
intransponíveis. Uma humanidade infeliz.
Ao longo
de incontáveis milênios, é o que temos como resultado de nossas projeções de
futuro? Costuma-se dizer que a colheita é o produto da semeadura. Teríamos,
então, semeado um futuro de angústia, frustração e medo?
Sim e
não.
Sim,
pois os fatos estão à vista de todos. As guerras e possessões que acontecem
desde a pré-história não são mais do que a tentativa de imposição de conceitos
excludentes de paz, prosperidade e felicidade. Todo invasor acredita que a sua
versão do bem é a verdadeira e que, para que prevaleça, é preciso eliminar as
demais versões.
Sim,
pois quando a fé obscurece a razão, altera-se a conduta em relação ao outro; o
mundo então se divide em fiéis e infiéis, crentes e descrentes, nós e eles. O
Paraíso passa a ser propriedade particular de um grupo. Postura frágil, pois
esbarra sempre em aspectos prosaicos de interdependência. Mas, até que se
perceba o lamentável equívoco, muitos desencontros, em variados graus,
contribuem para a infelicitação do ser humano.
Sim,
pois, desde os primórdios, o homem tem associado a felicidade ao quanto pode
acumular em torno de si, como posse. Quem, por exemplo, tinha mais ovelhas,
negociava as melhores tendas ou jovens da tribo como esposas. Um senhor feudal
era invejado pelo número de cavalos e pela extensão de terras que possuía,
constituindo um padrão de felicidade a ser almejado. Com o passar dos séculos,
parece que nada mudou em relação a isso. Há os demasiadamente ricos, que são
invejados pelos demasiadamente pobres.
E não.
Não semeamos apenas a amargura decorrente do egoísmo. Antes de sermos severos
conosco mesmos, precisamos rever a nossa condição de seres racionais, em
processo evolutivo. E quando abordamos o tema “evolução”, consideremos em que
bases esta acontece, especialmente para nós, humanos. Assim como aos demais
seres vivos, a dor, a fome, o medo e o prazer são, para o homem, instrumentos
de estímulo da consciência. E, assim como os animais, aprendemos a evitar o que
nos maltrata e a buscar o que nos dá prazer. Para os bichos, a barriga cheia, o
acasalamento e a toca aconchegante resolvem as questões existenciais. Mas o
homem, por conta de seus atributos mentais, vai além da satisfação momentânea;
ele registra, assimila e elabora a experiência, transformando-a em conhecimento
aplicável. Isso, porém, não ocorre da noite para o dia. Na realidade, o
amadurecimento das experiências pode custar milênios de dolorosas repetições da
mesma lição.
As
aspirações utópicas têm raiz nas consequências de experiências. O prazer
vivenciado pela gratificação dos sentidos, do intelecto ou do espírito, é
registrado pela memória como um estado ideal no curso da existência, do qual
não se deseja sair ou se distanciar. É, figuradamente, o Jardim do Éden,
símbolo da felicidade plena, pela ausência de contrastes que desafiem a
estabilidade e tragam a preocupação com um estado futuro. Mas a impermanência
natural, o eterno vir-a-ser que caracteriza a dinâmica do Cosmo, não comporta
imutabilidades; cedo ou tarde, inexoravelmente, o cenário paradisíaco muda. A
natureza exuberante fenece e se recolhe, o calor e a luminosidade solar cedem a
vez aos rigores do inverno. Toda a vida na Terra é submetida às alterações
decorrentes do ciclo das estações. Mas o homem enfrenta o inverno como uma
provação. O frio é fonte de sofrimento e aguça a memória dos dias cálidos e
ensolarados, da fartura de alimentos, do conforto. Certamente os povos
primitivos, especialmente os que viviam nas regiões mais próximas dos polos,
tinham o inverno como uma espécie de castigo, de abandono. Mas foi justamente o
rigor do inverno que os ensinou a produzir agasalho e residências mais
adequadas às variações climáticas. É possível que, nas noites gélidas,
primitivos utopistas visualizavam um futuro de calor, fartura e segurança que,
gradativamente, materializou-se pelos esforços da inteligência em direção a
essa utopia.
Mas a
evolução do pensamento provocou o processo civilizatório, inicialmente motivado
pela necessidade da convivência em grupos. Aliás, isso pode ter razões bem
prosaicas: enquanto indivíduo, o homem não era o maior, o mais forte e nem o
mais veloz dos seres vivos, o que fazia dele alvo fácil de predadores. Sozinho,
nem sempre suas habilidades como caçador lhe garantiam a refeição do dia. Mas,
em grupo, os humanos tornavam-se capazes de enfrentar e até mesmo derrotar as
feras, transformando-as em almoço. Para isso, porém, se fazia necessário um
mínimo de harmonia entre os membros do grupo. Estava lançada a semente das leis
sociais, que, aos poucos, tornaram-se mais complexas e abrangentes.
Com o advento
da agricultura e a fixação desses grupos em regiões como a Mesopotâmia, a
civilização propriamente dita tomou impulso. Com relativa segurança física e
alimentar, a mente humana ganhou serenidade suficiente para aperfeiçoar suas
utopias; eis que surgem ciências matemáticas, como produtos da observação e da
reflexão, permitindo a troca das tendas pelas construções projetadas com vistas
ao maior conforto e proteção. Não mais acossado pelo medo das feras e a incerteza do alimento, o homem testemunhava
a realização de sua primeira utopia.
Todo
esse progresso, porém, trouxe consigo novos e grandes desafios. A vida tribal,
com regras mínimas e simples, foi substituída pela sociedade, com linguagem,
crenças, relações políticas e comerciais e leis com as quais se pretendia
regular todo esse conjunto de interações. E o homem percebeu que sua maior
dificuldade, agora, não era sobreviver, mas conviver.
Hoje,
milênios depois, o foco da utopia é exatamente esse: a convivência. A ciência,
que foi capaz de conectar o mundo à palma de nossa mão, é impotente para
remover as barreiras invisíveis do fanatismo, do preconceito, da intolerância.
A mesma ciência que devassa o cosmo ainda desconhece os meandros do coração e
não tem argumentos para demover o egoísmo. Nosso planeta é hoje uma colcha de
retalhos, feita de fronteiras e interesses. As relações internacionais, ainda
que envernizadas por aparentes motivações altruísticas e solidárias têm, quase
sempre, motivações vinculadas ao lucro material ou político. O homem ainda é
o lobo do homem.
Este
desafio, no entanto, é bem-vindo, assim como o inverno, a tempestade e as
feras, foram imensamente úteis à humanidade em seus primórdios. Nossa nova
utopia é vencer o frio da indiferença e ver brilhar o Sol da fraternidade. É
eliminar as fronteiras do coração, descobrindo e nos rejubilando com o estreito
parentesco entre nós. É transformar, definitivamente, a ciência em um
instrumento para a paz. E então ver a Paz como a linguagem universal,
conciliando as diferenças, promovendo o despertar das consciências e a tão
desejada felicidade.
Sim, é
uma utopia. Pode parecer um propósito inatingível. Mas, provavelmente o nosso
ancestral que imaginava, diante da fogueira, uma vida melhor, não saberia dizer
se e quando seu sonho poderia se concretizar. No entanto, aqui estamos nós,
vivendo as utopias de nossos antepassados!
Auro
Barreiros
26/11/2018
segunda-feira, 10 de setembro de 2018
O PALANQUE
Estamos vivendo dias eleitoreiros. Na caça aos votos, os
candidatos desdobram-se no esforço de convencimento. É quando a expressão “poder
da palavra” ganha nova dimensão, para além da subjetividade filosófica. Na arte
de angariar apoiadores, o discurso bem articulado é fundamental.
E por falar em fundamentos, quais são os alicerces que
sustentam o discurso proselitista?
Primeiramente, para fins práticos, vamos estabelecer uma
classificação simples para os tipos de discursos.
Temos a fala do idealismo, cujo apelo é a compreensão de
valores éticos. Descortina uma visão utópica, levando o ouvinte à concepção de
uma vida tão perfeita quanto a natureza humana seja capaz de conquistar,
individual e coletivamente.
Há, porém, a proposta tecnicista, que tenta demonstrar, em
termos práticos e com o patrimônio da experiência, a margem de viabilidade dos
projetos de futuro.
Tanto uma quanto a outra abordagem cobram, para entendimento
e possível aceitação, um esforço intelectual; demandam análise, pesquisa,
referências e comparações, para que o convencimento esteja vinculado à razão,
ainda que emocionalmente, toquem a sensibilidade e despertem esperanças.
Por fim, temos o mais poderoso e temerário tipo de discurso:
o populismo. Os fundamentos do discurso populista, embora mesclados aos toques
decorativos do intelecto, estão assentados no que há de mais primitivo na
psique humana; o medo, a fé, o ódio, com seus desdobramentos e nuances, formam um
substrato quase irresistível de convencimento.
Tomemos o medo como o pilar central da construção do discurso
populista: você já passou fome? Já sentiu o estômago doer, ciente de que não
teria alimento? Se a resposta é sim, é pouco provável que deseje passar
novamente por essa experiência. Você tem medo da fome. Nada de errado, pois
todo ser vivo sofre ao ser privado de seu sustento. E o populista, o que faz
com o seu medo da fome? Ele o reforça, pintando um quadro calamitoso, identifica
culpados e promete lutar pelo seu direito a refeições dignas, desde que possa
contar com o seu apoio.
Você já viveu algum episódio de violência? Já foi assaltado,
ou presenciou algum crime? Se sim, você teme a violência. Aliás, mesmo nunca
tendo sido alvo direto de ações violentas, você as testemunha, todos os dias,
em todos os meios de comunicação. E isso amedronta, preocupa e faz pensar na
segurança dos seus. O populista entende muito bem o seu sentimento; ele o
transforma em promessa de campanha, levando a crer que, com ele, você estará
seguro (desde que o apoie, pois ele, e só ele tem a competência para enfrentar
o problema da violência).
Fome, insegurança, desemprego, doença, são faces do medo subconsciente
que todos temos da dor e do sofrimento moral. Sentimentos que se sobrepõem à
racionalidade e vulnerabilizam as pessoas, forçando-as a permanecer girando em
torno do momento presente. Por conta do medo o homem se torna refratário ao
idealismo. Seus projetos, de curto alcance, visam à obtenção de uma seguridade
mínima, como a aranha que tece uma teia com o fim específico de capturar
insetos e se alimentar. Em uma palavra,
isso é o fisiologismo em seu estágio mais elementar. O populista compreende
esse processo. Ele o potencializa, focando o discurso nos objetos do medo. E como
o faz?
Uma das formas de alimentar o sentimento de esperança é a construção de
expressões conhecidas como “palavras de ordem”. Na Idade Média, por exemplo,
uma pequena frase foi o estopim da mais demorada e sangrenta campanha de guerra
que se conhece. “Deus o quer”, bradou emocionado o Papa Urbano II, diante de
uma multidão ensandecida pelo ódio aos muçulmanos que ocupavam a Terra
Santa. “Deus o quer”, gritava Pedro, o
Eremita, circulando entre os revoltados aldeões. Em poucos segundos, todos
gritavam “Deus o quer!” e ali mesmo se engajavam na luta armada, originando as
Cruzadas, que ensanguentaram a Europa.
Mas, para haver luta, precisa-se de inimigo. E então, o líder
populista usa o expediente do maniqueísmo. Principia por identificar os
responsáveis, segundo ele, pela crise atual. Normalmente, esses responsáveis
são os opositores políticos. A seguir, trata de demonizá-los, segundo a lógica maniqueísta
de “luz e trevas”. Assim, brota o mais deletério
elemento da manipulação populista: o ódio.
O ódio é uma mistura irracional de todos os sentimentos de
medo, que se personifica no opositor. O “outro” é o causador das desventuras
individuais transportadas ao coletivo. Tem que ser rejeitado, desprezado,
desqualificado e, em última instância, destruído. Essa é a lógica implícita do
discurso populista, ainda que o autor da fala não o admita. A dissimulação
também faz parte do jogo.
Caudilhos, líderes, heróis, salvadores da pátria, são
personagens do imaginário infantil, daquele tempo em que, quando em desvantagem
nas brigas de rua, a gente corria contar pro papai ou pro irmão mais velho, na
esperança de que alguém tomasse as nossas dores. Crescemos, nos tornamos adultos e nos é
imputada uma carga de responsabilidades pessoais. Teoricamente, não há mais
lugar para o pensamento infantil de “vou contar pro meu pai”. Mas o
subconsciente, às vezes, é traiçoeiro; basta que alguém use as palavras-chave e
toque nos pontos sensíveis de nossa experiência, para que, sem perceber, nos
peguemos repetindo palavras de ordem e alimentando expectativas de mudança. Esse
é o sustentáculo dos políticos profissionais. Graças a essa característica da
mente humana, muitos inúteis perpetuam-se em cargos públicos.
Mas, como dissemos, estamos em tempo de eleições. Diante dessa
reflexão, há perguntas que se pode fazer a si mesmo:
Qual é o discurso do meu
candidato? É um idealismo utópico, sem alicerces definidos?
É um tecnicismo
frio, onde tudo se resume a dados, estatísticas e percentuais?
Leva em conta as
carências individuais do caráter humano?
Estabelece pilares de honestidade,
transparência, impessoalidade, justiça social?
É tendencioso, na direção de
suas crenças particulares?
É fundamentado exclusivamente nos erros dos
adversários?
É conciliador?
A soma de suas propostas aponta para um estado de
paz e justiça?
Há respeito humano em suas atitudes e ideias?
É um discurso
tolerante, plural e sereno?
É alarmista?
É tranquilizador?
Reflitamos.
E boas eleições!
Auro Barreiros
10/9/2018
quarta-feira, 15 de agosto de 2018
ARMADILHAS MENTAIS
Na construção do pensamento, a palavra pode ser comparada à
argamassa que reúne as ideias. Quanto maior a precisão do vocábulo, tanto mais
coerente é a comunicação, pois o discurso reflete, em algum grau, a elaboração
mental e emocional sobre os conteúdos. Numa expressão conhecida, “pintamos com
palavras”; é como se o outro, que tanto pode ser um indivíduo como uma plateia,
um ouvinte ou um leitor, fosse uma tela em branco onde se deseja retratar as
paisagens, objetos ou cenas que pertencem ao mundo interior.
Ao longo do tempo, técnicas foram desenvolvidas para aumentar
a eficiência dessa “pintura” com palavras; a oratória, desde remotas eras, teve
grandes expoentes. Da mesma forma, a palavra escrita alcançou elevado
refinamento, ainda na antiguidade, perpetuando os saberes e inspirações, até os
nossos dias.
O estudo da Literatura demonstra que há padrões de linguagem
para cada época, do que resulta a necessidade da adequação de textos antigos
para melhor compreensão das atuais gerações. Um escrito de Platão[1]
ou de Francis Bacon[2],
por exemplo, seria quase incompreensível em seu original, sem um conhecimento
prévio que o contextualizasse. O modo de falar de suas épocas era o reflexo da
cultura, das crenças e até da ordem política de seus povos. No entanto, uma vez
assimilada essa característica de estilo, pode se perceber a exatidão com que
as ideias eram construídas. Isso se deve a que tais autores dominavam os temas
que abordavam. Não é a toa que são conhecidos como mestres, gênios, filósofos.
Em todas as épocas, sempre houve autores de discursos
rebuscados, de construções elegantes, de sofismas desafiadores. Aliás, o
sofisma arremete aos dias de Sócrates[3],
cujo embate com os Sofistas[4]
é conhecido de quem estuda a vida daquele sábio. O sofista era hábil em
construir pensamentos lapidares, cuja elaboração parecia selá-los como verdades
incontestáveis, mas que não resistiam à Maiêutica[5]
de Sócrates; ele os levava a desconstruir a própria tese, através de perguntas
perfeitamente interligadas pela “argamassa” do raciocínio filosófico. Despindo o discurso dos adereços de presumida
ciência, o Parteiro de Almas extraia a verdade ou desnudava a falácia.
Essa reflexão conduz a uma questão basilar para quem se
propõe a construir com palavras; especialmente aquele que pretende transmitir
suas verdades pessoais. Qual é o limite ou dosagem da elaboração e ornamentação
de um texto ou discurso?
E lá vamos nós à Grécia antiga, quando um discípulo de Platão
afirmara que “o homem é um bípede sem penas”. Diógenes[6],
conhecido como O Cínico, surge com um frango depenado e replica: “Eis o homem
de Platão”! A anedota traz em si o fato de que sempre é possível “depenar” um
discurso, de modo a expor seus fundamentos, por mais poético e erudito que
seja. Logo, o limite ou a dosagem de
adereços retóricos é a plausibilidade do cerne daquilo que se propõe. O enfeite
no chapéu não acrescenta sabedoria à cabeça. Apenas cumpre a missão de
embelezar, no que pode não ser bem sucedido, se o restante do conjunto não for
estéticamente bem posto.
Por outro lado, há também a expressão enigmática, que parece
encerrar um mistério. Por exemplo, muitos já devem ter ouvido ou lido a frase
“Deus é”. Na aura transcendental que a
envolve, essa afirmação parece bastar a si mesma. Seria o desvendar do primeiro
e último segredo do Universo, a natureza de Deus. Mas, o verbo “ser” é auxiliar;
sua presença requer um complemento (substantivo, adjetivo), ainda que
subentendido ou disseminado no processo argumentativo. Portanto, Deus é o quê? Espírito, energia,
plasma, matéria, pensamento? Para a filosofia,
não basta o impacto emocional de uma citação. É preciso fundamentar o que se
afirma. Imagine um filósofo, que conhece o conceito do Não-ser, contido na
doutrina védica, bem como os ensinamentos herméticos, que sugerem a
atemporalidade de Deus; provavelmente, a simples afirmativa “Deus é” não lhe
bastaria. Com certeza, esse pensador iria questioná-la, e caberia a quem a
empregou o trabalho de fornecer uma explicação razoável. Ou por outra, admitir
que apenas empregou uma frase de efeito, um sofisma, sobre o que não detém
conhecimento mais profundo.
Tanto o simplismo quanto o pedantismo são cruéis armadilhas a
quem deseja expor seus pensamentos de forma pública. O simplismo é reducionista
e denota estreiteza de raciocínio. O pedantismo é imprudente ao se exibir,
sujeitando quem o pratica ao escrutínio mais severo de quem o ouve ou lê.
O Caminho do Meio, tão bem descrito por Sidarta, serve também
para esse caso. Como diz a canção popular, “uma flor é uma flor e não tem outro
jeito da gente dizer[7]”.
Auro Barreiros
10/01/2018
[2]
Francis
Bacon, Visconde de Alban, também referido como Bacon de
Verulâmio (Londres, 22 de janeiro de 1561 — Londres, 9 de abril de 1626) foi um político, filósofo, ensaísta
inglês, barão de Verulam (ou Verulamo ou ainda Verulâmio) e visconde de Saint
Alban. É considerado como o fundador da ciência moderna.
(Fonte: Wikipedia)
[3] Sócrates (Atenas, 469 a.C. -
Atenas, 399 a.C.) foi um filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga. Creditado
como um dos fundadores da filosofia ocidental, é até hoje uma figura enigmática,
conhecida principalmente através dos relatos em obras de escritores que viveram
mais tarde, especialmente dois de seus alunos, Platão e Xenofonte, bem como
pelas peças teatrais de seu contemporâneo Aristófanes. Muitos
defendem que os diálogos de Platão seriam o relato mais abrangente de
Sócrates a ter perdurado da Antiguidade aos
dias de hoje. (Fonte: Wikipedia)
[4]
A Escola Sofística e seu
pensamento surgiram em um momento de transição na forma de interpretar e pensar
da sociedade grega quando o mythos deixava de ser a explicação e
justificativa fundamental para cada fenômeno e ação, configurando o Homem e o
logos – aqui tratado como razão – a destaque e fundamentação do discurso.
Autores modernos,[1] colocam como característica
mais marcante do movimento sofista a racionalidade como pressuposto de
compreensão de processos tanto racionais quanto irracionais. Porém, cabe
ressaltar, que, apesar da ampla gama de objetos de estudos e discussão dos
sofistas, ainda assim, tais figuras, geralmente, não são e nem foram admitidas
como filósofas, caso se considere a definição de filosofia pelo platonismo. Para Platão, os sofistas
rejeitavam a verdade e relativizavam a realidade resumindo o universo a partir,
somente, de seus aspectos fenomenais. (Fonte:
Wikipedia)
[5]
A maiêutica socrática tem como significado “dar à luz”, “parir” o conhecimento (em grego, μαιευτικη — maieutike —
significa “arte de partejar”). É um método ou técnica que pressupõe que a verdade está latente em todo ser humano, podendo aflorar aos
poucos na medida em que se responde a uma série de perguntas simples, quase
ingênuas, porém perspicazes.
Sócrates conduzia este “parto” em duas etapas:
·
Na primeira, levava o interlocutor a duvidar de seu próprio saber sobre
determinado assunto, revelando as contradições presentes em sua atual forma de
pensar, normalmente baseadas em valores e preconceitos sociais.
·
Na segunda, levava o interlocutor a vislumbrar novos conceitos, novas
opiniões sobre o assunto em pauta, estimulando-o a pensar por si mesmo. (Fonte: Wikipedia)
[6]
O filósofo helenístico Diógenes de Sínope, viveu do ano 413 – 323 a.C., aluno de
Antístenes (discípulo de Sócrates), de uma linha de pensamento Naturalista, foi
destaque e símbolo do Cinismo pois tornou sua filosofia uma forma de viver
radical. Seu mestre Antístenes, criador da escola Cínica (do grego Kynikos,
cão, como os atenienses se referiam a eles como cães de rua, sem riquezas, e
bens materiais), sua escola é o próprio mundo, ágoras, praças públicas, montes
e campos. Mas Diógenes foi o maior destilador de pérolas em sua indiferença
perante os valores da sociedade da qual fazia parte. (Fonte: http://socientifica.com.br)
[7] “Eu
quero mesmo” – Raul dos Santos Seixas – Cantor e compositor brasileiro (Salvador, 28 de junho de 1945 — São Paulo, 21 de agosto de 1989).
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