quinta-feira, 3 de outubro de 2019

LEVEZA



O maestro movimenta a batuta e os belíssimos acordes de diversos instrumentos preenchem o silêncio do grande teatro. Delicadas notas de violinos marcam a entrada de uma bailarina, que evolui até o centro do palco. Movimentos tão elegantes quanto precisos causam a ilusão de que a esbelta jovem flutua, como pluma ao sabor da brisa. Cena de puro encantamento, imagem da leveza!..

Leveza: palavra que envolve um dos aspectos mais problemáticos da vida humana. Leveza lembra convívio, relacionamento, diferenças... Desafios do cotidiano, que denunciam o grau de harmonia ou de conflitos na existência de cada um. Diante das divergências de opinião ou crença, ou no enfrentamento das adversidades, é comum a recomendação de que se aceite com leveza as diferenças e os reveses.

Mas, afinal, o que vem a ser essa leveza? Seria a passividade sorridente? Seria o dar de ombros diante da gravidade dos obstáculos ou do assédio da arrogância? Seria o ato de minimizar a realidade, ou mesmo ignorá-la, sob o pretexto de buscar a paz?

Voltemos à nossa bailarina. Seus movimentos desafiam a gravidade; sua leveza é real. Para a plateia, o sentimento é de que a dança flui, natural e inconscientemente, como o voo dos pássaros. Eis aí o ledo engano! A artista traz ao palco horas, dias, meses e anos de dura disciplina, estudo diligente e dolorosos exercícios de condicionamento físico. O bailado que cativa custou lágrimas e renúncias.

Na vida, como na dança, a leveza não vem de graça. Na vida, como na dança, há que se corrigir posturas, aperfeiçoar atitudes e desenvolver o discernimento. Na vida, como na dança, não se deve confundir leveza com alienação, sob pena de se perder o compasso e tropeçar nos próprios pés.

Que o homem seja leve. Que conviva em harmonia com as diferenças, sem que isso lhe cause constrangimento. Mas, diante da crueldade, da tirania e da agressão ao indefeso, que o homem seja, antes de tudo, honesto perante a sua verdade.
Que o homem seja leve. Mas que não faça desse ato de comedimento máscara para dissimular a indiferença ante as incongruências de conduta, tanto alheias como próprias, tão comuns quanto nefastas. Que sua leveza não se converta em conivência com a desonestidade, ou mero comodismo ante o imperativo do progresso ético.
Que o homem seja leve no trato com as próprias dores. Mas que faça brotar essa leveza da compreensão íntima da lição contida em cada evento doloroso ou prazeroso da existência.

Leveza não é conformismo.
Leveza não deve ser hipócrita.
Leveza não é leniência.
Na árdua tarefa de construir o caráter, virtudes como o bom-senso, o comedimento, a tolerância, a empatia, são conquistadas a duras penas, ao preço de erros e acertos, derrotas e vitórias, encantamentos e desenganos. No cadinho do tempo, acontece a fusão das experiências e a transmutação reveladora da preciosidade da alma que, agora verdadeiramente leve, assim como a bailarina, evolui plena e bela no tablado da vida!



Auro
1/10/2019




terça-feira, 3 de setembro de 2019

ECOLOGIA INTERIOR



É inegável que a negligência em relação ao meio ambiente tem resultado em conseqüências trágicas para o ser humano. Aos desastres de proporções catastróficas, que mais parecem atos de rebelião da Natureza, juntam-se os efeitos lentos e silenciosos das diversas formas de contaminação. Agrotóxicos, depósitos de lixo e a emissão de gases tóxicos pelas indústrias comprometem três elementos básicos para a manutenção de toda a vida na Terra: o ar, a água e os alimentos.

A gravidade dos problemas ambientais, ainda que existente desde o início da civilização, só chegou à consciência do homem muito recentemente. Agora, além da pesquisa em busca de métodos para a preservação da natureza, a ciência tem que tentar conter os efeitos de séculos de práticas destrutivas e contaminantes, que se refletem tanto no clima quanto no âmago dos organismos vivos, entre os quais está o ser humano. Este é um dos maiores problemas e desafios da humanidade atual.

Mas, paralelamente à questão ambiental, que visa o aspecto exterior da vida, o homem moderno enfrenta outro problema extremamente grave; a contaminação e degradação de seu ambiente interior. A despeito do extraordinário desenvolvimento intelectual já atingido (ou talvez por isso mesmo), não há como desconhecer a crise de personalidade que assedia milhões de pessoas em todo o planeta. O consumo exacerbado de álcool e drogas é a evidência gritante de que o ser humano ainda tem enorme dificuldade em lidar consigo mesmo. Se fosse possível traçar o perfil psicológico de todos os envolvidos em crimes e acidentes de trânsito no momento de cada ocorrência, certamente descobriríamos em cada infrator um ser angustiado, em conflito com sua própria natureza íntima. Conheceríamos histórias de ausência de valores, equívocos e distorções quanto a princípios éticos, frustrações afetivas, orgulho ferido, sintomas claros de perturbação mental e emocional.

A constatação de que esse caos interior é, em maior ou menor grau, a condição de parte considerável da humanidade, evoca a célebre injunção filosófica que foi inscrita no portal do templo de Apolo, em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo.” 

O começo e o fim de tudo estão dentro do próprio eu. É o desconhecimento de si, no sentido essencial, a matriz de todos os desacertos que o homem comete contra sua própria espécie. Por ignorar o estreito parentesco com o seu semelhante, o homem tem sido capaz de malversar recursos naturais em nome do lucro, gerando riscos e sofrimento aos demais. Por não conceber a existência de uma lei natural equânime e eficaz, cria seu próprio conceito de justiça e o aplica sempre que se sente traído, constrangido ou ameaçado. E quando se defronta com os efeitos de suas atitudes, tenta de todas as formas evitar o sofrimento, quase sempre sem sucesso. É o meio ambiente interior que reage às agressões e busca o equilíbrio original, ainda que doa.

Ao mesmo tempo em que preserva a Natureza ao seu redor, o homem precisa preservar o equilíbrio de seu mundo mental e emocional. Quinze minutos diários de dedicação a si mesmo costumam ser mais eficientes para isso do que as inúmeras formas de escapismo que a modernidade oferece. Contemplar-se diante do espelho da consciência e examinar pensamentos, sentimentos e atos pelo princípio da reciprocidade pode ser mais gratificante e produtivo para o crescimento pessoal do que dezenas de livros de auto-ajuda, tão em voga nos dias de hoje.

A meditação é uma excelente ferramenta de aprimoramento pessoal, através da elevação da consciência a níveis superiores. Pela meditação é possível vislumbrar nosso mundo interno, bem como realizar os ajustes que resultem em maior harmonia com as leis naturais e cósmicas.




Auro Barreiros



segunda-feira, 2 de setembro de 2019

EQUILÍBRIO E HARMONIA




Quando conhecemos alguém que raramente comete deslizes, que não se dá a excessos, que mantém relativo controle sobre suas emoções e evita maiores comprometimentos, costumamos dizer que se trata de uma pessoa equilibrada. Da mesma forma, o homem ou a mulher cujo comportamento extrapola os limites do convencional são vistos como desequilibrados. Mas, afinal, o que é o equilíbrio? Em relação à vida humana, o que significa essa palavra?

Primeiramente, consideremos a definição formal de equilíbrio: “Estado de repouso de um corpo solicitado por várias forças que se anulam. Posição estável do corpo humano. Exibição acrobática. Ponderação, calma, prudência: equilíbrio de espírito. Justa combinação de forças, de elementos”.  Esta sequência de conceitos denuncia a velha dificuldade humana quanto às palavras.  No primeiro caso, se um objeto qualquer for submetido a forças iguais em sentidos opostos, permanecerá em equilíbrio, ainda que debaixo de pressões conflitantes. Na “justa combinação de forças” não se sabe em que proporção cada força pode ser considerada justa.
Passemos, então, à definição que se refere mais diretamente ao ser humano: “ponderação, calma, prudência”.  Aqui, como podemos ver, o equilíbrio emocional é conceituado pelo senso comum. Quem aparenta calma é tido como equilibrado. Na natureza, porém, não é o equilíbrio (equivalência de forças) que produz movimento e vida, mas exatamente o rompimento dessa equivalência. As águas correm para o mar porque o mar está abaixo do nível das nascentes. A energia elétrica aciona máquinas e acende luzes devido à diferença de potencial entre as polaridades.

Com o ser humano não é diferente. Os potenciais psíquicos que determinam as manifestações emocionais e criativas permaneceriam estagnados como um lago, se não existisse um vazio, um declive ou uma “força oposta” que os obrigasse a fluir. Se nossos atributos espirituais fossem “submetidos a várias forças que se anulam”, nenhuma produção intelectual, artística ou humanitária aconteceria. A evolução não aconteceria. Assim, imaginar que a repressão das emoções, a imposição do autocontrole sejam demonstrações de equilíbrio é desconhecer as necessidades legítimas da alma: a livre expressão dos sentimentos, a livre apreciação da realidade, a livre aceitação ou rejeição daquilo que sua consciência determine.

O estado ideal é aquele em que a vida emocional não seja regulada pelas convenções, mas pela relação harmônica entre a natureza exterior e a natureza interior; que possamos nos alegrar com que é belo,  bom e prazeroso ou nos entristecermos com o que seja oposto a tudo isso, com a mesma liberdade, sem que a alegria gere culpa ou a tristeza seja interpretada como pagamento de pecados.

É evidente que todo excesso é indesejável. Mas o progressivo conhecimento de nossa própria constituição psíquica nos oferece os mecanismos de moderação que nos permitam uma vida emocional sadia. A justa distribuição de nossas forças interiores estabelece a condição que os místicos denominaram “Harmonium”.  Diferentemente do equilíbrio como oposição de forças com vistas à neutralidade, o “Harmonium” é a livre, porém ordenada relação entre essas energias, para uma existência plena de saúde, criatividade e paz no convívio com os semelhantes.


Auro Barreiros

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O LEGADO DA EXISTÊNCIA




A humanidade, no seu processo civilizatório, consagrou alguns costumes que merecem uma análise mais acurada, como, por exemplo, as leis que regulamentam o destino do espólio, o conjunto de bens que alguém amealhou até o momento de sua morte. A ideia de herança, provavelmente, é consequência do conceito de família e das responsabilidades que disso advém; a preocupação com a sobrevivência dos que ficam ensejou o estabelecimento de normas protetivas de patrimônio e a regulamentação de partilhas. Apesar das contendas que, muitas vezes, transformam esse ato solene em batalha campal, a intenção de preservar a dignidade e os direitos dos familiares justifica o costume, que é lei na maior parte das nações.

Deixar uma herança é, para muitos, uma das principais motivações da vida, especialmente quando na idade madura. A consciência da finitude da jornada terrena e o temor antecipado de possíveis dificuldades para os familiares levam o ser humano a sacrificar alguns de seus ideais e a adotar condutas nem sempre louváveis em relação a negócios e dinheiro.
Um belo dia, eis que se parte desse vale de lágrimas. Findas as exéquias, abre-se o testamento e cumpre-se a vontade do falecido, que segue em paz, na premissa de que seus entes queridos não sofrerão privações, graças ao seu esforço e sacrifício pessoal, quando em vida. No que diga respeito aos bens palpáveis, missão cumprida.

Será esse, porventura, o único ou o maior legado de uma vida? Pode-se estar seguro de que os bens, o dinheiro, realmente serão a salvaguarda dos que aqui ficam, em todos os aspectos da existência? Inúmeras histórias de malversação de formidáveis heranças, de disputas ferrenhas e sangrentas e decadência de famílias tradicionais colocam em xeque essa ideia de segurança. Ao contrário, indicam que, na maior das vezes, é justamente o súbito enriquecimento sem labor o mote para o esbanjamento e a consequente derrocada.

Se há uma vida além-túmulo, e se de lá é possível observar o que aqui se passa, certamente, amargas lágrimas têm sido vertidas por aqueles que se negaram a própria felicidade, no empenho de construir e legar um patrimônio para o bem dos seus amados. Talvez, ao testemunhar o solene esquecimento que lhes é votado, almas decepcionadas rememorem os passos dados na Terra e se perguntem, frustradas, onde teriam errado.

Saindo da situação individual para o plano coletivo, tenhamos em mente que a civilização é uma somatória de heranças, que podem ser distintas em três aspectos: a herança física, cuja prevalescência começa pelo próprio corpo; a herança cultural, decorrente do acúmulo de saberes que transmigram através das gerações; e a herança espiritual, que se reflete na busca pela transcendência e compreensão íntima da natureza do ser. Fisicamente, há leis naturais que, ao longo das eras, ajustam o ser vivo ao ambiente e às necessidades de sobrevivência, replicando esses ajustes através da hereditariedade (o nome não foi escolhido ao acaso). O peludo Neandertal foi se refinando, na medida mesma das alterações ambientais, até chegar ao que somos hoje. É possível que, daqui a um ou dois milhões de anos, se não nos destruirmos antes, tenhamos algumas diferenças físicas em relação ao que somos atualmente.
A herança cultural, por sua vez, é produto de uma condição particular do ser humano: a racionalidade. Aparentemente, somos os únicos seres que afetam deliberadamente o meio em que vivem. Enquanto os animais, ainda que manifestem inteligência, parecem obedecer a uma programação inconsciente e imutável, como os pássaros ao construir seus ninhos, o homem manipula e transforma a matéria segundo seus impulsos criativos. Essas diferenças básicas deram origem a práticas como a caça, a pesca e, posteriormente, a agricultura, matriz das primeiras comunidades e embriões de sociedades. Esse mesmo impulso criativo, movido pelas necessidades e alimentado pela observação, promoveu (como o faz até hoje), a evolução das práticas que, como um patrimônio imaterial, foram sucessivamente herdadas e aprimoradas a cada geração. O surgimento da escrita propiciou uma aceleração no progresso; o conhecimento, agora, poderia ser registrado e perpetuado.

E a herança espiritual, quem sabe, teve seu começo ao redor das primeiras fogueiras. Aquecido e protegido, é possível que o homem primitivo tenha iniciado ali o exercício das faculdades superiores da mente. Talvez tenha começado a rememorar seus medos e encantamentos diante dos eventos naturais e esboçado as primeiras crenças anímicas.  Especulação ou não, o certo é que as crenças primitivas também evoluíram, incorporando-se ao processo civilizatório e sendo, como todas as demais conquistas, transmitidas como legado às gerações posteriores. Do simples e quase irracional temor do raio e do trovão, gradativamente se tornaram religiões organizadas, com ontologias e dogmas. Chegou-se à filosofia, cuja forma metódica de sondar o desconhecido findou por somar-se às religiões, aprimorando as doutrinas e indicando uma finalidade maior: o autoconhecimento.
E então, descobre-se que o autoconhecimento tem consequências profundas. Conhecer a si mesmo, que é o alfa e o ômega da espiritualização, obriga o ser humano a aprimorar seus conceitos de justiça, deixando, gradativamente, o terreno individual, em favor do pensar coletivo e universal. Sob essa ótica, qual será a qualidade do legado da humanidade para si mesma?

Antes de qualquer argumento, é preciso que se estabeleça uma conceituação mais clara do que vem a ser “civilização”. A palavra vem do latim, “civis”: cidadão, habitante da cidade, do que se depreende que, em princípio, trata-se de uma consequência da vida coletiva. Para os antigos, isso era relevante, tendo-se em conta a importância e os benefícios oriundos da concentração humana em tribos e aldeias, que evoluíram para complexos urbanos. A consequente organização social trouxe mais facilidade para a produção de alimentos e bens de consumo; em caso de luta armada, o maior número de pessoas aptas ao combate poderia ser decisivo na defesa do território. Ou seja, a dita civilização teve, sob o ponto de vista puramente fenomenológico, raízes bem pragmáticas.

Mas a relativa tranquilidade consequente desse convívio “civilizado” fez aflorar aspectos um tanto subjetivos da natureza humana. A inquietude intelectual provocou o desenvolvimento das ciências e das artes; a busca espiritual elevou o pensamento a questionamentos profundos quanto aos mistérios da natureza, conforme expressados no próprio homem.

No entanto, ainda que algumas luzes evolutivas brilhassem aqui e ali, certas práticas animalescas persistiram inalteradas, no cotidiano da alegada civilização, como se nem o tempo, nem as conquistas da mente tivessem produzido alguma alteração no caráter primitivo.  Pelo contrário, parece que o progresso do conhecimento potencializou a barbárie, ao sofisticar a letalidade. O refinamento da linguagem e a prolixidade das ideologias servem, quase sempre, para oferecer razões aparentemente plausíveis às guerras e suas consequências diretas ou indiretas: miséria, doença, segregação, ódio racial, exploração do mais fraco, monopólios de recursos naturais, rapinância econômica e o embrutecimento da sensibilidade aos valores mais altos da ética e da justiça. Apenas para ilustrar, há regiões do mundo em que povos disputam territórios há mais de dois mil anos, ao preço do sangue, numa cascata de ódio e ressentimento que passa de geração para geração.

Em se tratando de costumes, não há como dizer de que modo o vício da embriaguez começou. Pode ter sido uma descoberta casual, que tenha propiciado um prazer inédito ao homem primitivo. O que se tem de certo são os registros muito antigos da incorporação de substancias inebriantes a práticas religiosas e ao cotidiano das velhas civilizações.  Ora como ato de comunhão, ora como inocente recreação, o vinho, por exemplo, é personagem onipresente em toda a História antiga, tendo presumida origem divina. Mas, mesmo entre os devotos de Baco, sempre houve quem recomendasse prudência e comedimento, tendo em vista os efeitos que é capaz de produzir no comportamento e na saúde humana. Como a euforia etílica costuma ser surda, tais recomendações foram, pouco a pouco, esquecidas. O alcoolismo progrediu vertiginosamente, abrindo portas para a adoção do consumo de outras substancias ainda mais lesivas. Juntamente com o tabagismo, álcool e drogas tornaram-se gravíssimo problema de saúde pública. Paradoxalmente, porém, algumas das maiores pagadoras de impostos e geradoras de empregos são, ironicamente, fábricas de bebidas e cigarros! O tráfico, por sua vez, movimenta trilhões de dólares com o vício típicamente urbano do uso de inebriantes, narcóticos, estupefacientes e alucinógenos, numa destruição sistemática de lares e vidas.

A lista de paradoxos e contradições em relação ao que se convencionou denominar civilização é um pouco extensa. Sem obscurecer o progresso inegável, as nobres conquistas nos diversos campos, não há como fechar os olhos para a realidade que nos assedia cotidianamente, graças ao evoluído sistema moderno de comunicações. E também não há como deixar de reconhecer que os verdadeiros problemas que atormentam a humanidade são os mesmos de milênios atrás. O ponto focal, portanto,  é a questão inicial dessa reflexão: qual é o legado que a humanidade está deixando para si mesma?

Pode ser que encarar essas realidades gritantes tenha o dom de esvair esperanças e alimentar um conformismo cínico. Isso é perigoso, pois induz a falsa premissa de que o indivíduo é impotente diante da derrocada coletiva, restando-lhe apenas “seguir a corrente” e compartilhar as dores do mundo. Pode ser que, pela magnitude do caos moral, o indivíduo se exima de maiores responsabilidades e até aceite passivamente o andar da carruagem. E, nessa conjuntura, é preciso ter em mente que a evolução coletiva é efeito da evolução individual. A mesma História que registra as incoerências e atrocidades humanas também informa que, em todas as épocas, houve indivíduos que influenciaram coletividades. As conquistas morais e espirituais de uns poucos têm sido o fermento para formidáveis aprimoramentos na sociedade. Logo, a inércia de um povo não sanciona a inércia pessoal. Mas a soma dos esforços individuais faz girar a roda do progresso.

Provavelmente, esse deve ser o grande e melhor legado, tanto da civilização, como um todo, quanto do indivíduo, como parte indissociável desse todo. Que o espólio de cada ser humano, ao término da jornada terrena, seja o produto de seus esforços na construção da própria personalidade. Que os valores imateriais cultivados possam servir de farol ético à sucessiva geração; valores que se multiplicam na proporção em que são utilizados na economia da vida. Equanimidade, respeito a tudo, busca incansável do conhecimento, pensamento e ação voltados para o bem coletivo, cultura da Paz; valores cujo tamanho não se mede senão pelas consequências que geram onde são aplicados.

Uma alma que se eleva, eleva o mundo inteiro”.[1]



Auro Barreiros
25/2/2019


[1] ELIZABETH LESEUR (1866-1914)
Mística e escritora francesa, nascida em Paris.


terça-feira, 15 de janeiro de 2019

CRÔNICAS DE NEANDERTHAL




Crônicas de Neanderthal
(ou “No tempo dos dinossauros falantes”)

No princípio, era a pedra.
Lascada, polida,
Que, se arremessada,
Feria de morte.

E as pedras rolaram,
Se sofisticaram,
No curso das eras.

Agora ligeiras,
Precisas,
Letais,
Como nunca o foram,
Jamais,

Não mais abatem feras;
Abatem princípios
Morais.



Auro
15/1/2019



segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

CRONOS





Renovar é lei da vida.
Transformar, talvez, a única certeza.
É a rotina do Cosmo, o perpétuo vir-a-ser, que garante a perenidade das coisas efêmeras. Ao contrário da imutabilidade, que cristaliza e estanca, a transitoriedade é o cenário perfeito para o aprendizado da Alma. Na impermanência é que se colhem fragmentos de eternidade.

Se renovar costuma ser prazeroso, transmutar pode doer. A incerteza do novo provoca receios obscuros, frutos do temor irracional que se tem do desconhecido. O que será? O que virá? O painel do futuro, encoberto pelo véu do tempo, pode causar uma dolorosa expectativa e o desejo inconsciente de não mudar o que já se conhece, de não se afastar do modesto cercado que cada um constrói em torno de sua limitada realidade.

Mas, goste-se ou não, a lei se cumpre. No processo de reorganização dos elementos, gera novas expressões da Inteligência oculta no âmago de todas as coisas. E a vivência do novo desvenda propriedades insuspeitas, possibilidades ainda inimaginadas, motivações e horizontes para a Alma. É como se a paleta do artista apresentasse, a cada amanhecer, um novo pigmento, ampliando o repertório de cores e inspiração para sua tela. Dramaticamente, de ciclo em ciclo, entre lágrimas e sorrisos, prossegue a Alma a execução de sua obra-prima.

Pode até doer. Mas nada paga o júbilo de contemplar seu auto-retrato e reconhecer-se plenamente, descobrir-se por inteiro, integrar-se à perfeição da Lei e ter para si o Universo como o quintal de sua infância.



Auro
31/12/2018

domingo, 25 de novembro de 2018

UTOPIAS TRANSFORMADORAS



Ainda que a palavra “utopia” seja de origem relativamente recente, um retrospecto da história da humanidade parece indicar que a idealização de tempos mais felizes é uma prática quase tão antiga quanto o próprio homem.  Talvez, ao redor das primeiras fogueiras, impulsionado pelo mistério da luz, entre as expressões do presente imediato, despontassem tímidas projeções do dia de amanhã, nas quais o alimento fosse mais tranquilamente obtido, as ameaças à vida deixassem de existir e o embrião do conceito de paz tomasse forma em seu cotidiano. Comida e segurança; pode ter sido essa a primeira utopia do homo sapiens.

Utopia é resultado da imaginação, atributo decorrente da autoconsciência que, aparentemente, é a principal distinção entre o homem e as demais espécies de vida. Com os elementos da experiência, armazenados na memória, somos capazes de reinventar a realidade e aperfeiçoar procedimentos, com vistas a um estado ideal, denominado “felicidade”. Certamente, a imaginação criativa é o atributo responsável por tudo o que somos hoje, como civilização. É provável que estaríamos ainda em cavernas ou árvores, caso não tivéssemos imaginado e perseguido o aperfeiçoamento das condições para a existência.  Imaginação depende da observação, que leva à reflexão e à formação de parâmetros necessários à construção de conceitos; eis a base da filosofia e da ciência.

Atualmente, porém, talvez em função de um progresso desenfreado, a tal “felicidade” adquiriu tantas definições quanto o número de interesses que movem a sociedade; assim como um camaleão, o conceito de felicidade muda de enunciado segundo a ideologia política, a dominação religiosa ou os investimentos do sistema de produção e consumo. O resultado desse modelo é uma humanidade ansiosa, por ter que pagar um preço de submissão para alcançar os objetos que simbolizam a felicidade moderna. Uma humanidade frustrada por diferenças sociais tidas como intransponíveis. Uma humanidade infeliz.

Ao longo de incontáveis milênios, é o que temos como resultado de nossas projeções de futuro? Costuma-se dizer que a colheita é o produto da semeadura. Teríamos, então, semeado um futuro de angústia, frustração e medo?

Sim e não.

Sim, pois os fatos estão à vista de todos. As guerras e possessões que acontecem desde a pré-história não são mais do que a tentativa de imposição de conceitos excludentes de paz, prosperidade e felicidade. Todo invasor acredita que a sua versão do bem é a verdadeira e que, para que prevaleça, é preciso eliminar as demais versões.
Sim, pois quando a fé obscurece a razão, altera-se a conduta em relação ao outro; o mundo então se divide em fiéis e infiéis, crentes e descrentes, nós e eles. O Paraíso passa a ser propriedade particular de um grupo. Postura frágil, pois esbarra sempre em aspectos prosaicos de interdependência. Mas, até que se perceba o lamentável equívoco, muitos desencontros, em variados graus, contribuem para a infelicitação do ser humano.
Sim, pois, desde os primórdios, o homem tem associado a felicidade ao quanto pode acumular em torno de si, como posse. Quem, por exemplo, tinha mais ovelhas, negociava as melhores tendas ou jovens da tribo como esposas. Um senhor feudal era invejado pelo número de cavalos e pela extensão de terras que possuía, constituindo um padrão de felicidade a ser almejado. Com o passar dos séculos, parece que nada mudou em relação a isso. Há os demasiadamente ricos, que são invejados pelos demasiadamente pobres.

E não. Não semeamos apenas a amargura decorrente do egoísmo. Antes de sermos severos conosco mesmos, precisamos rever a nossa condição de seres racionais, em processo evolutivo. E quando abordamos o tema “evolução”, consideremos em que bases esta acontece, especialmente para nós, humanos. Assim como aos demais seres vivos, a dor, a fome, o medo e o prazer são, para o homem, instrumentos de estímulo da consciência. E, assim como os animais, aprendemos a evitar o que nos maltrata e a buscar o que nos dá prazer. Para os bichos, a barriga cheia, o acasalamento e a toca aconchegante resolvem as questões existenciais. Mas o homem, por conta de seus atributos mentais, vai além da satisfação momentânea; ele registra, assimila e elabora a experiência, transformando-a em conhecimento aplicável. Isso, porém, não ocorre da noite para o dia. Na realidade, o amadurecimento das experiências pode custar milênios de dolorosas repetições da mesma lição.

As aspirações utópicas têm raiz nas consequências de experiências. O prazer vivenciado pela gratificação dos sentidos, do intelecto ou do espírito, é registrado pela memória como um estado ideal no curso da existência, do qual não se deseja sair ou se distanciar. É, figuradamente, o Jardim do Éden, símbolo da felicidade plena, pela ausência de contrastes que desafiem a estabilidade e tragam a preocupação com um estado futuro. Mas a impermanência natural, o eterno vir-a-ser que caracteriza a dinâmica do Cosmo, não comporta imutabilidades; cedo ou tarde, inexoravelmente, o cenário paradisíaco muda. A natureza exuberante fenece e se recolhe, o calor e a luminosidade solar cedem a vez aos rigores do inverno. Toda a vida na Terra é submetida às alterações decorrentes do ciclo das estações. Mas o homem enfrenta o inverno como uma provação. O frio é fonte de sofrimento e aguça a memória dos dias cálidos e ensolarados, da fartura de alimentos, do conforto. Certamente os povos primitivos, especialmente os que viviam nas regiões mais próximas dos polos, tinham o inverno como uma espécie de castigo, de abandono. Mas foi justamente o rigor do inverno que os ensinou a produzir agasalho e residências mais adequadas às variações climáticas. É possível que, nas noites gélidas, primitivos utopistas visualizavam um futuro de calor, fartura e segurança que, gradativamente, materializou-se pelos esforços da inteligência em direção a essa utopia.

Mas a evolução do pensamento provocou o processo civilizatório, inicialmente motivado pela necessidade da convivência em grupos. Aliás, isso pode ter razões bem prosaicas: enquanto indivíduo, o homem não era o maior, o mais forte e nem o mais veloz dos seres vivos, o que fazia dele alvo fácil de predadores. Sozinho, nem sempre suas habilidades como caçador lhe garantiam a refeição do dia. Mas, em grupo, os humanos tornavam-se capazes de enfrentar e até mesmo derrotar as feras, transformando-as em almoço. Para isso, porém, se fazia necessário um mínimo de harmonia entre os membros do grupo. Estava lançada a semente das leis sociais, que, aos poucos, tornaram-se mais complexas e abrangentes.

Com o advento da agricultura e a fixação desses grupos em regiões como a Mesopotâmia, a civilização propriamente dita tomou impulso. Com relativa segurança física e alimentar, a mente humana ganhou serenidade suficiente para aperfeiçoar suas utopias; eis que surgem ciências matemáticas, como produtos da observação e da reflexão, permitindo a troca das tendas pelas construções projetadas com vistas ao maior conforto e proteção. Não mais acossado pelo medo das feras e  a incerteza do alimento, o homem testemunhava a realização de sua primeira utopia.

Todo esse progresso, porém, trouxe consigo novos e grandes desafios. A vida tribal, com regras mínimas e simples, foi substituída pela sociedade, com linguagem, crenças, relações políticas e comerciais e leis com as quais se pretendia regular todo esse conjunto de interações. E o homem percebeu que sua maior dificuldade, agora, não era sobreviver, mas conviver.

Hoje, milênios depois, o foco da utopia é exatamente esse: a convivência. A ciência, que foi capaz de conectar o mundo à palma de nossa mão, é impotente para remover as barreiras invisíveis do fanatismo, do preconceito, da intolerância. A mesma ciência que devassa o cosmo ainda desconhece os meandros do coração e não tem argumentos para demover o egoísmo. Nosso planeta é hoje uma colcha de retalhos, feita de fronteiras e interesses. As relações internacionais, ainda que envernizadas por aparentes motivações altruísticas e solidárias têm, quase sempre, motivações vinculadas ao lucro material ou político. O homem ainda é o lobo do homem.

Este desafio, no entanto, é bem-vindo, assim como o inverno, a tempestade e as feras, foram imensamente úteis à humanidade em seus primórdios. Nossa nova utopia é vencer o frio da indiferença e ver brilhar o Sol da fraternidade. É eliminar as fronteiras do coração, descobrindo e nos rejubilando com o estreito parentesco entre nós. É transformar, definitivamente, a ciência em um instrumento para a paz. E então ver a Paz como a linguagem universal, conciliando as diferenças, promovendo o despertar das consciências e a tão desejada felicidade.

Sim, é uma utopia. Pode parecer um propósito inatingível. Mas, provavelmente o nosso ancestral que imaginava, diante da fogueira, uma vida melhor, não saberia dizer se e quando seu sonho poderia se concretizar. No entanto, aqui estamos nós, vivendo as utopias de nossos antepassados!



Auro Barreiros
26/11/2018





segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O PALANQUE




Estamos vivendo dias eleitoreiros. Na caça aos votos, os candidatos desdobram-se no esforço de convencimento. É quando a expressão “poder da palavra” ganha nova dimensão, para além da subjetividade filosófica. Na arte de angariar apoiadores, o discurso bem articulado é fundamental.

E por falar em fundamentos, quais são os alicerces que sustentam o discurso proselitista?

Primeiramente, para fins práticos, vamos estabelecer uma classificação simples para os tipos de discursos.
Temos a fala do idealismo, cujo apelo é a compreensão de valores éticos. Descortina uma visão utópica, levando o ouvinte à concepção de uma vida tão perfeita quanto a natureza humana seja capaz de conquistar, individual e coletivamente.
Há, porém, a proposta tecnicista, que tenta demonstrar, em termos práticos e com o patrimônio da experiência, a margem de viabilidade dos projetos de futuro.
Tanto uma quanto a outra abordagem cobram, para entendimento e possível aceitação, um esforço intelectual; demandam análise, pesquisa, referências e comparações, para que o convencimento esteja vinculado à razão, ainda que emocionalmente, toquem a sensibilidade e despertem esperanças.
Por fim, temos o mais poderoso e temerário tipo de discurso: o populismo. Os fundamentos do discurso populista, embora mesclados aos toques decorativos do intelecto, estão assentados no que há de mais primitivo na psique humana; o medo, a fé, o ódio, com seus desdobramentos e nuances, formam um substrato quase irresistível de convencimento.

Tomemos o medo como o pilar central da construção do discurso populista: você já passou fome? Já sentiu o estômago doer, ciente de que não teria alimento? Se a resposta é sim, é pouco provável que deseje passar novamente por essa experiência. Você tem medo da fome. Nada de errado, pois todo ser vivo sofre ao ser privado de seu sustento. E o populista, o que faz com o seu medo da fome? Ele o reforça, pintando um quadro calamitoso, identifica culpados e promete lutar pelo seu direito a refeições dignas, desde que possa contar com o seu apoio.

Você já viveu algum episódio de violência? Já foi assaltado, ou presenciou algum crime? Se sim, você teme a violência. Aliás, mesmo nunca tendo sido alvo direto de ações violentas, você as testemunha, todos os dias, em todos os meios de comunicação. E isso amedronta, preocupa e faz pensar na segurança dos seus. O populista entende muito bem o seu sentimento; ele o transforma em promessa de campanha, levando a crer que, com ele, você estará seguro (desde que o apoie, pois ele, e só ele tem a competência para enfrentar o problema da violência).

Fome, insegurança, desemprego, doença, são faces do medo subconsciente que todos temos da dor e do sofrimento moral. Sentimentos que se sobrepõem à racionalidade e vulnerabilizam as pessoas, forçando-as a permanecer girando em torno do momento presente. Por conta do medo o homem se torna refratário ao idealismo. Seus projetos, de curto alcance, visam à obtenção de uma seguridade mínima, como a aranha que tece uma teia com o fim específico de capturar insetos e se alimentar.  Em uma palavra, isso é o fisiologismo em seu estágio mais elementar. O populista compreende esse processo. Ele o potencializa, focando o discurso nos objetos do medo. E como o faz? 

Uma das formas de alimentar o sentimento de esperança é a construção de expressões conhecidas como “palavras de ordem”. Na Idade Média, por exemplo, uma pequena frase foi o estopim da mais demorada e sangrenta campanha de guerra que se conhece. “Deus o quer”, bradou emocionado o Papa Urbano II, diante de uma multidão ensandecida pelo ódio aos muçulmanos que ocupavam a Terra Santa.  “Deus o quer”, gritava Pedro, o Eremita, circulando entre os revoltados aldeões. Em poucos segundos, todos gritavam “Deus o quer!” e ali mesmo se engajavam na luta armada, originando as Cruzadas, que ensanguentaram a Europa.

Mas, para haver luta, precisa-se de inimigo. E então, o líder populista usa o expediente do maniqueísmo. Principia por identificar os responsáveis, segundo ele, pela crise atual. Normalmente, esses responsáveis são os opositores políticos. A seguir, trata de demonizá-los, segundo a lógica maniqueísta de “luz e trevas”.  Assim, brota o mais deletério elemento da manipulação populista: o ódio.

O ódio é uma mistura irracional de todos os sentimentos de medo, que se personifica no opositor. O “outro” é o causador das desventuras individuais transportadas ao coletivo. Tem que ser rejeitado, desprezado, desqualificado e, em última instância, destruído. Essa é a lógica implícita do discurso populista, ainda que o autor da fala não o admita. A dissimulação também faz parte do jogo.

Caudilhos, líderes, heróis, salvadores da pátria, são personagens do imaginário infantil, daquele tempo em que, quando em desvantagem nas brigas de rua, a gente corria contar pro papai ou pro irmão mais velho, na esperança de que alguém tomasse as nossas dores.  Crescemos, nos tornamos adultos e nos é imputada uma carga de responsabilidades pessoais. Teoricamente, não há mais lugar para o pensamento infantil de “vou contar pro meu pai”. Mas o subconsciente, às vezes, é traiçoeiro; basta que alguém use as palavras-chave e toque nos pontos sensíveis de nossa experiência, para que, sem perceber, nos peguemos repetindo palavras de ordem e alimentando expectativas de mudança. Esse é o sustentáculo dos políticos profissionais. Graças a essa característica da mente humana, muitos inúteis perpetuam-se em cargos públicos.

Mas, como dissemos, estamos em tempo de eleições. Diante dessa reflexão, há perguntas que se pode fazer a si mesmo: 


Qual é o discurso do meu candidato? É um idealismo utópico, sem alicerces definidos? 
É um tecnicismo frio, onde tudo se resume a dados, estatísticas e percentuais? 
Leva em conta as carências individuais do caráter humano? 
Estabelece pilares de honestidade, transparência, impessoalidade, justiça social? 
É tendencioso, na direção de suas crenças particulares? 
É fundamentado exclusivamente nos erros dos adversários? 
É conciliador? 
A soma de suas propostas aponta para um estado de paz e justiça? 
Há respeito humano em suas atitudes e ideias? 
É um discurso tolerante, plural e sereno? 
É alarmista? 
É tranquilizador?

Reflitamos.
E boas eleições!



Auro Barreiros

10/9/2018

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

ARMADILHAS MENTAIS



Na construção do pensamento, a palavra pode ser comparada à argamassa que reúne as ideias. Quanto maior a precisão do vocábulo, tanto mais coerente é a comunicação, pois o discurso reflete, em algum grau, a elaboração mental e emocional sobre os conteúdos. Numa expressão conhecida, “pintamos com palavras”; é como se o outro, que tanto pode ser um indivíduo como uma plateia, um ouvinte ou um leitor, fosse uma tela em branco onde se deseja retratar as paisagens, objetos ou cenas que pertencem ao mundo interior.
Ao longo do tempo, técnicas foram desenvolvidas para aumentar a eficiência dessa “pintura” com palavras; a oratória, desde remotas eras, teve grandes expoentes. Da mesma forma, a palavra escrita alcançou elevado refinamento, ainda na antiguidade, perpetuando os saberes e inspirações, até os nossos dias.


O estudo da Literatura demonstra que há padrões de linguagem para cada época, do que resulta a necessidade da adequação de textos antigos para melhor compreensão das atuais gerações. Um escrito de Platão[1] ou de Francis Bacon[2], por exemplo, seria quase incompreensível em seu original, sem um conhecimento prévio que o contextualizasse. O modo de falar de suas épocas era o reflexo da cultura, das crenças e até da ordem política de seus povos. No entanto, uma vez assimilada essa característica de estilo, pode se perceber a exatidão com que as ideias eram construídas. Isso se deve a que tais autores dominavam os temas que abordavam. Não é a toa que são conhecidos como mestres, gênios, filósofos.

Em todas as épocas, sempre houve autores de discursos rebuscados, de construções elegantes, de sofismas desafiadores. Aliás, o sofisma arremete aos dias de Sócrates[3], cujo embate com os Sofistas[4] é conhecido de quem estuda a vida daquele sábio. O sofista era hábil em construir pensamentos lapidares, cuja elaboração parecia selá-los como verdades incontestáveis, mas que não resistiam à Maiêutica[5] de Sócrates; ele os levava a desconstruir a própria tese, através de perguntas perfeitamente interligadas pela “argamassa” do raciocínio filosófico.  Despindo o discurso dos adereços de presumida ciência, o Parteiro de Almas extraia a verdade ou desnudava a falácia.

Essa reflexão conduz a uma questão basilar para quem se propõe a construir com palavras; especialmente aquele que pretende transmitir suas verdades pessoais. Qual é o limite ou dosagem da elaboração e ornamentação de um texto ou discurso? 

E lá vamos nós à Grécia antiga, quando um discípulo de Platão afirmara que “o homem é um bípede sem penas”. Diógenes[6], conhecido como O Cínico, surge com um frango depenado e replica: “Eis o homem de Platão”! A anedota traz em si o fato de que sempre é possível “depenar” um discurso, de modo a expor seus fundamentos, por mais poético e erudito que seja.  Logo, o limite ou a dosagem de adereços retóricos é a plausibilidade do cerne daquilo que se propõe. O enfeite no chapéu não acrescenta sabedoria à cabeça. Apenas cumpre a missão de embelezar, no que pode não ser bem sucedido, se o restante do conjunto não for estéticamente  bem posto.

Por outro lado, há também a expressão enigmática, que parece encerrar um mistério. Por exemplo, muitos já devem ter ouvido ou lido a frase “Deus é”.  Na aura transcendental que a envolve, essa afirmação parece bastar a si mesma. Seria o desvendar do primeiro e último segredo do Universo, a natureza de Deus. Mas, o verbo “ser” é auxiliar; sua presença requer um complemento (substantivo, adjetivo), ainda que subentendido ou disseminado no processo argumentativo.  Portanto, Deus é o quê? Espírito, energia, plasma, matéria, pensamento?  Para a filosofia, não basta o impacto emocional de uma citação. É preciso fundamentar o que se afirma. Imagine um filósofo, que conhece o conceito do Não-ser, contido na doutrina védica, bem como os ensinamentos herméticos, que sugerem a atemporalidade de Deus; provavelmente, a simples afirmativa “Deus é” não lhe bastaria. Com certeza, esse pensador iria questioná-la, e caberia a quem a empregou o trabalho de fornecer uma explicação razoável. Ou por outra, admitir que apenas empregou uma frase de efeito, um sofisma, sobre o que não detém conhecimento mais profundo.

Tanto o simplismo quanto o pedantismo são cruéis armadilhas a quem deseja expor seus pensamentos de forma pública. O simplismo é reducionista e denota estreiteza de raciocínio. O pedantismo é imprudente ao se exibir, sujeitando quem o pratica ao escrutínio mais severo de quem o ouve ou lê.

O Caminho do Meio, tão bem descrito por Sidarta, serve também para esse caso. Como diz a canção popular, “uma flor é uma flor e não tem outro jeito da gente dizer[7]”.


Auro Barreiros
10/01/2018
 



[1] Platão (348/347 a.C.), filósofo ateniense, discípulo de Sócrates.


[2] Francis Bacon, Visconde de Alban, também referido como Bacon de Verulâmio (Londres22 de janeiro de 1561 — Londres, 9 de abril de 1626) foi um político, filósofo, ensaísta inglês, barão de Verulam (ou Verulamo ou ainda Verulâmio) e visconde de Saint Alban. É considerado como o fundador da ciência moderna. (Fonte: Wikipedia)


[3] Sócrates (Atenas469 a.C. - Atenas, 399 a.C.) foi um filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga. Creditado como um dos fundadores da filosofia ocidental, é até hoje uma figura enigmática, conhecida principalmente através dos relatos em obras de escritores que viveram mais tarde, especialmente dois de seus alunos, Platão e Xenofonte, bem como pelas peças teatrais de seu contemporâneo Aristófanes. Muitos defendem que os diálogos de Platão seriam o relato mais abrangente de Sócrates a ter perdurado da Antiguidade aos dias de hoje. (Fonte: Wikipedia)



[4] A Escola Sofística e seu pensamento surgiram em um momento de transição na forma de interpretar e pensar da sociedade grega quando o mythos deixava de ser a explicação e justificativa fundamental para cada fenômeno e ação, configurando o Homem e o logos – aqui tratado como razão – a destaque e fundamentação do discurso. Autores modernos,[1] colocam como característica mais marcante do movimento sofista a racionalidade como pressuposto de compreensão de processos tanto racionais quanto irracionais. Porém, cabe ressaltar, que, apesar da ampla gama de objetos de estudos e discussão dos sofistas, ainda assim, tais figuras, geralmente, não são e nem foram admitidas como filósofas, caso se considere a definição de filosofia pelo platonismo. Para Platão, os sofistas rejeitavam a verdade e relativizavam a realidade resumindo o universo a partir, somente, de seus aspectos fenomenais. (Fonte: Wikipedia)


[5] A maiêutica socrática tem como significado “dar à luz”, “parir” o conhecimento (em grego, μαιευτικη — maieutike — significa “arte de partejar”). É um método ou técnica que pressupõe que verdade está latente em todo ser humano, podendo aflorar aos poucos na medida em que se responde a uma série de perguntas simples, quase ingênuas, porém perspicazes.
Sócrates conduzia este “parto” em duas etapas:
·       Na primeira, levava o interlocutor a duvidar de seu próprio saber sobre determinado assunto, revelando as contradições presentes em sua atual forma de pensar, normalmente baseadas em valores e preconceitos sociais.
·       Na segunda, levava o interlocutor a vislumbrar novos conceitos, novas opiniões sobre o assunto em pauta, estimulando-o a pensar por si mesmo. (Fonte: Wikipedia)


[6] O filósofo helenístico Diógenes de Sínope, viveu do ano 413 – 323 a.C., aluno de Antístenes (discípulo de Sócrates), de uma linha de pensamento Naturalista, foi destaque e símbolo do Cinismo pois tornou sua filosofia uma forma de viver radical. Seu mestre Antístenes, criador da escola Cínica (do grego Kynikos, cão, como os atenienses se referiam a eles como cães de rua, sem riquezas, e bens materiais), sua escola é o próprio mundo, ágoras, praças públicas, montes e campos. Mas Diógenes foi o maior destilador de pérolas em sua indiferença perante os valores da sociedade da qual fazia parte. (Fonte: http://socientifica.com.br)


[7] “Eu quero mesmo” – Raul dos Santos Seixas – Cantor e compositor brasileiro (Salvador28 de junho de 1945  — São Paulo21 de agosto de 1989).