domingo, 27 de fevereiro de 2011

OLHOS NOS OLHOS


 
NO MEU TEMPO DE CRIANÇA, em um canto de meu quarto, eu guardava uma grande caixa de papelão cheia de brinquedos. Era ali o endereço de meu reino de fantasia; com a formidável miscelânea de carros, aviões e navios de plástico, soldadinhos e animais, bolas de gude, molas e parafusos, lápis de cores e gravuras de revistas, eu encenava o mundo em acordo com a ótica de um menino. Promovia animadas guerras contra os bandidos, ocasião em que o bem sempre vencia; mandava homens e animais para Marte, Júpiter e até outras galáxias, não para colonizá-las, mas apenas em visita cordial, pois, no “meu” universo, todos os planetas eram habitados por gente muito evoluída e pacífica!

Muitas vezes, para dar mais realismo às minhas encenações, usava óculos de brinquedo, aqueles com lentes coloridas de acrílico. Eram lentes azuis, vermelhas, amarelas, verdes; cada cor propiciava um clima diferente aos meus devaneios, e eu tinha a ilusão de que o mundo ao meu redor pudesse modificar-se por uma simples troca de óculos!..

Mais tarde, já na adolescência, aprendi na escola que quando olhamos através de uma lente colorida temos uma visão incompleta das coisas, pois algumas cores são anuladas, modificando a percepção visual. Por exemplo, com um filtro vermelho aos olhos, os objetos verdes ficam azuis, quase negros; o amarelo fica quase branco, enquanto o que é vermelho simplesmente desaparece!
O fenômeno se repete com as outras cores, já que a luz branca é o resultado da mistura homogênea de todo o espectro, sendo que cada objeto reflete sua freqüência de onda, absorvendo as demais.

Agora, adulto, ao me defrontar com as diferenças de compreensão humana, recordo-me de minhas brincadeiras com as lentes e faço uma analogia entre a vida e o fenômeno ótico. Alguns contemplam a vida pelas lentes cinzentas do pessimismo; para tais pessoas, tudo é difícil, por se acreditarem deserdadas pela Providencia, incapazes de concretizar seus ideais por imaginar que lhes foram negados os atributos de inteligência que invejam em outros. Por conta das lentes cinzentas, que anulam a visão do belo, julgam a tudo e a todos depreciativamente, duvidando da sinceridade alheia, escarnecendo dos propósitos elevados e das nobres realizações. São, portanto, infelizes por livre e espontânea vontade!..
Outros olham a vida com lentes vermelhas de paixão, sensualidade e violência; centrados na plena satisfação de seus desejos e instintos, movem céus e terras para realizar os caprichos. A carne os comanda, obsessivamente, reagindo de forma dolorosa a qualquer tentativa de disciplina moral; o sexo fala mais alto que a razão, e somente o temor do castigo é capaz de frear-lhes os impulsos. A lente que empregam anula o senso de respeito à liberdade do outro; por esse motivo, quando chamados à ordem, costumam explodir nos inqualificáveis gestos de violência que alimentam as manchetes dos jornais.

Existem ainda os que se deleitam olhando tudo por lentes cor-de-rosa do otimismo irracional. Tudo vai bem com eles, de modo que tudo vai bem com todos!.. Para estes, não há fome nem guerra no mundo, já que não lhes falta o pão à mesa e têm assegurada sua liberdade individual. E porque não almejam mais que seu doce estado vegetativo, a lente que usam lhes nega a visão da realidade.

Meu professor de Ciências Naturais, dos bons tempos de colégio, dizia que a lente mais perfeita que existe está em nossos olhos: o maior grau de transparência, a maior sensibilidade à variação de tons e luz, o equipamento mais sofisticado para o nosso contato com a realidade.
Nossos olhos físicos respondem a todas as cores do espectro visível; já os olhos espirituais refletem apenas a cor da lente que escolhemos para encarar a vida!
Essa é uma grave escolha, vital para a conquista da paz e felicidade que tanto desejamos.
Que Deus nos ilumine.


29/08/1985
Auro

NÃO SÓ PARA BAIXINHOS



Aproxima-se o Dia da Criança: um dia em que se convencionou a celebração dessa bela fase da existência humana.

Até parece que criança é um ser à parte, e a gente costuma esquecer de que passou pelo mesmo caminho. Criam-se métodos e psicologias de relacionamento entre nós, os adultos, e eles, os futuros adultos. E percebe-se que, apesar do esforço, nem sempre há sucesso nesse diálogo, talvez porque, inconscientemente ou não, quase sempre tentamos impor nossas idéias às crianças, na crença de temos conclusões mais acertadas graças à maturidade. E o embaraço começa quando nos falta argumento e lógica para responder aos “por quê”, usados pelas crianças para fulminar nossa pretensão de sabedoria. É o caso do garoto que pergunta ao pai:

-Paiê, por que eu não posso fumar nem beber cerveja?
-Ora, filhão, porque fumar faz mal aos pulmões, ao coração e ao cérebro. E a bebida alcoólica também prejudica a saúde, estraga a inteligência e encurta a vida. Além disso, é muito feio pra uma criança!
O garoto abre mais os olhos e balança a cabeça, com ar de quem entendeu tudo. Trinta segundos depois, ataca novamente:
-Paiê! Cigarro e bebida só fazem mal pra criança?
-Não, filho! São vícios e fazem mal a qualquer um, seja criança ou adulto.
Envolvido com os brinquedos, o menino se dá por satisfeito.

Dias depois, inesperadamente, o guri volta à carga:
-Paiê! Por que o senhor fuma e bebe cerveja?
Pego de surpresa, o pai rebusca desesperadamente a memória, à caça de uma resposta capaz de liquidar o assunto, sem sucesso. Responde então, contrafeito:
-Ora, porque sim!
-Não vale, paiê! O senhor já me disse que “porque sim” não é resposta!
-Tá bem; eu fumo e bebo porque gosto, entendeu?
-Mas o senhor me disse que isso faz mal à saúde, lembra? Como é que o senhor pode gostar de uma coisa que faz mal?
-Eu disse que faz mal pra criança e acontece que eu sou gente grande!
-Ah, mas o senhor disse que os vícios fazem mal a qualquer um...Quer dizer que, quando eu crescer, daí posso beber e fumar que não faz mal, não é isso?
Na fronteira entre o desespero, a vergonha e a raiva, o infeliz pai resmunga:
-Não, não é bem isso!
Depois de um pigarrear nervoso, olhando com cara de bobo o pequeno cilindro fumegante encaixado entre os dedos da mão direita, o adulto tenta consertar:
-Você não entendeu bem; o que eu quis dizer é o seguinte...Ora, vá cuidar de seus cadernos e não amole!
E arremata, sentencioso;
-Você é muito criança pra compreender essas coisas!
E devolve o cigarro aos lábios, evitando encarar o filho, cujo rostinho reflete uma dúvida atroz quanto à sinceridade daquele a quem considera seu mestre, seu herói, o mais que perfeito: seu pai.

Bem, mas, como eu dizia, aproxima-se o Dia da Criança.
Nós, os pais,correremos às lojas comprar presentes;carrinhos teleguiados, bonecas que falam, jogos de inteligência, instrumentos musicais, livros de contos e aventuras...
Presentes que terão duração variável, segundo suas qualidades e resistência à curiosidade infantil. Dificilmente algum chegará inteiro à idade adulta de nossos filhos. Há, porém, um tipo de presente que os acompanhará por toda a vida, participante e decisivo em seus destinos: a educação.
Educação: semente composta de palavras e exemplos, sendo estes bem mais convincentes que aquelas.
As boas palavras só se confirmam pelos bons exemplos.
Os bons exemplos dispensam palavras.

Auro Barreiros, década de 80

domingo, 20 de fevereiro de 2011

A melhor religião

Hoje, assistindo o trabalho artístico de um religioso a quem admiro, comecei a pensar na grave questão das convicções e seus reflexos na sociedade humana.

No que diz respeito a religiões, filosofias e visões de mundo, vivemos literalmente envolvidos por uma imensa colcha de retalhos. O mundo ocidental contemporâneo, predominantemente cristão, tem a falsa noção de que, no passado, o politeísmo era uma confusão de crenças, devido ao considerável número de divindades a serem adoradas. Mas os críticos do paganismo antigo costumam passar ao largo de um detalhe fundamental: se os povos primitivos adoravam diversos deuses, isso fazia de cada culto uma religião ou convicção distinta, porém normalmente atrelada a um conceito de panteon e uma ontologia que dava a cada deidade um papel no drama da criação e no desenrolar dos eventos naturais. Atualmente, porém o que se vê é a adoção de um mesmo conteúdo de doutrina e a proliferação de interpretações, do que resultam deuses diferentes de nomes iguais. Qual seria a conseqüência imediata desse procedimento?

Bem, a julgar pelos sermões e discursos acalorados, nos quais cada grupo considera equivocada a compreensão dos demais, temos como primeiro resultado o distanciamento entre as pessoas.  
De todas as diferenças, parece que a menos tolerada é a de convicções religiosas ou filosóficas. Ainda que sob a presumida unção do sagrado, a rejeição sistemática e irrefletida ao que pareça contraditório vai, pouco a pouco, criando no indivíduo uma segunda natureza, em nível subconsciente. A simples constatação de que o “outro” não comunga a mesma crença cria uma cortina invisível que, como um vidro embaçado, distorce a imagem do próximo. Desse ponto em diante, com base no pré-julgamento de valores, há uma tendência inconsciente de duvidar do seu caráter ou da sua competência, ainda que o chamado “verniz social” reprima a manifestação ostensiva dessa rejeição.

No entanto, em todos os grupos é possível encontrar homens e mulheres realmente notáveis pelo devotamento e atitudes. Pessoas que abraçam uma causa e fazem dela sua motivação de vida. Seres humanos empenhados em contribuir para a edificação de uma sociedade mais justa. Hospitais, presídios e favelas recebem suas visitas, em nome de Jesus, Buda, Kardec ou Krishna, ou mesmo sem rótulos que os identifiquem. Cada um ao seu modo, segundo os princípios adotados, conforme lhe ordena o coração, busca vivenciar a essência da doutrina que lhe serve como guia.

Observando essa aparente incongruência, busco agora uma definição para o que se tem por desenvolvimento espiritual ou auto-aperfeiçoamento. A cada dia mais me convenço de que progredir interiormente é adestrar a visão para ver além da forma, apurar os ouvidos para ir além da mera audição das palavras. Esse treinamento de percepção permitirá ver que, por trás dos símbolos, vestes e rituais particulares, há uma motivação universal para a prática do bem. Será possível então ouvir a solidariedade que vibra além do som do que se diz, o propósito fraterno que se oculta nas entrelinhas das orações e leituras de textos sagrados.

Dia virá em que a diversidade será apenas um detalhe desimportante no concerto fraternal entre os homens. Enquanto esse dia não chega, que cada um seja fiel ao que acredita e vivencie a sua fé, exercitando a tolerância, praticando o bem e crescendo espiritualmente.

Auro Barreiros – 20/2/2011

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

DA EMBALAGEM E DO CONTEÚDO

  

O COMÉRCIO de todo produto ou serviço obedece a certas técnicas que são determinantes para sua afirmação nos meios de consumo. O sucesso ou fracasso nas vendas depende muito de fatores tais como a campanha publicitária de lançamento, o nome de fantasia e, com especial destaque, a embalagem que o revestirá, desde a fábrica até as mãos do consumidor. Por esta razão, inúmeros artigos de excelente qualidade estragam nas prateleiras ou têm suas fábricas falidas devido à mediocridade e falta de atrativos da embalagem que os envolve!

As potências industriais e comerciais conhecem bem isso. Tanto que dedicam profundo interesse na apresentação de seus produtos, dotando-os de artísticos envoltórios de cores escolhidas cientificamente, com base em suas influências diferenciadas no subconsciente humano. E quando, talvez devido a concorrência, as vendas caem, eis que ressurge, tal como a lendária Fênix, o mesmo detergente ou a mesma goma de mascar, “agora em nova embalagem, mais prática e funcional”, o que pouco ou nada revela quanto à melhora de qualidade ou da eficiência do conteúdo.

Com o ser humano as coisas acontecem de modo muito parecido. Cruzamos, todos os dias, com dramas e comédias ambulantes encerrados no peito de nossos semelhantes, sendo nós mesmos portadores de dramas e comédias a se desenrolar no palco do nosso foro íntimo. Facínoras e virtuosos, depravados e castos, religiosos, fanáticos, ateus, místicos e mistificadores compartilham do mesmo ar e da mesma luz, desconhecendo-se mutuamente!

Cada um de nós envolve-se com uma embalagem, que é a personalidade exterior; um instrumento de relação social, que se aprimora pelo acréscimo de experiências, absorvendo a cultura do ambiente. Esse aprimoramento acontece na razão direta da necessidade, embora seja, na maior das vezes, grandemente prejudicado pelo livre-arbítrio que, em algumas ocasiões, não a reconhece de imediato, demorando-se mais que o necessário para absorver as lições da vida.

Numa visão otimista, a personalidade exterior está, para a vida social, como a embalagem para os produtos no mercado; quanto mais agradável à vista, quanto mais impressionante aos sentidos, quanto mais convincente ao intelecto, tanto maiores as probabilidades de sucesso, já que tais características fazem de seu possuidor momentaneamente o centro das atenções, seja pela roupa em dia com a moda, seja pela melifluidade das palavras, ou pelo brilhantismo do encadeamento de raciocínios, ou pela habilidade na utilização de aforismos, excertos filosóficos e citações de autores conceituados na defesa de suas posições e opiniões.

Há, porém, algo a ser considerado quanto à personalidade exterior; tal como a embalagem, pouco ou nada revela sobre o conteúdo. Por este motivo, vez por outra somos desmentidos em nossa tábua de valores, quando uma embalagem aparentemente medíocre deixa transparecer uma centelha de genialidade ou um intrigante reflexo de paz interior; ou quando uma figura humana ricamente ajaezada, solidamente assentada em bases intelectuais, filosóficas ou religiosas de comprovada fidedignidade, minuciosamente lapidada por um convívio seleto, repentinamente, descamba para a agressão, verbal ou até física, por motivos, ao nosso ver, comezinhos. Ou quando da doçura aparente brota o azedume ante o confronto de idéias ou de responsabilidades, azedume facilmente perceptível, a despeito das boas maneiras e do polido vocabulário!

Este intrigante dilema é gerado pela equivocada concepção de termos como evolução, progresso, personalidade e sucesso. Muitos confundem evolução com desenvolvimento intelectual, quando este é apenas um dos aspectos decorrentes daquela.  Outros entendem progresso como acúmulo de bens, quando os bens acumulados, a mais das vezes, atravancam o progresso enquanto ferem a lei do uso. Há os que definem personalidade como o conjunto de informações e comportamentos amealhado pelo indivíduo, quando as legítimas bases da personalidade fundamentam-se no íntimo do ser, independendo de níveis de cultura e informação, por serem paulatinamente erigidas pelas conseqüências morais dos atos.

Já o sucesso é interpretado pela maioria como a súmula de fatos que enaltecem o ego, tais como a fortuna, o prestígio, a satisfação dos sentidos. Mas, desde que o mundo é mundo, pobres e ricos, belos e feios, reis e escravos, sábios e ignorantes buscam a felicidade e reclamam a falta de paz. O suicídio ocorre com muito maior freqüência na alta roda social do que no submundo, onde se morre mais de fome  do que de tédio!

Portanto, o que é o sucesso?
Seria, por acaso, a propalada iluminação?

Ou seria a indiferença absoluta aos altos e baixos da vida, um estado de graça que nos alienasse do meio-ambiente, pelo vislumbre de um paraíso além-fronteira de nossa percepção habitual?

Ou seria ainda o fruto final da existência plenamente vivida, com a aceitação do esmerilhamento moral para eliminar as arestas que ainda impedem a efetiva harmonização do “eu comigo mesmo”, de modo a romper o frágil verniz que pretende disfarçar as falhas decorrentes da ignorância?

Afinal, o que é o sucesso para você?..


Auro

       Década de 80







UMA REFLEXÃO SOBRE O MAL E O BEM



Embora em constante mutação, o Universo tem uma característica notável; a permanência da ação das leis. A matéria orgânica, por exemplo, se mantém coesa enquanto nela existir vida. Tão logo a força vital a abandone, começa a desagregação das moléculas e o retorno ao estado original dos elementos. Se nenhuma vontade interferir, “a Terra e o Universo vão cumprindo seu destino”, como bem diz a Desiderata. A evolução se dá em ciclos de diferentes durações, em obediência a uma espécie de regulamento cósmico. Ou seja, se o homem não existisse, a Terra e o cosmo continuariam existindo.

Mas o homem existe e, dos seres vivos, é o único que tenta impor sua vontade à ordem natural, graças ao arbítrio relativamente livre de que dispõe, além da autopercepção e as faculdades mentais que resultam na chamada racionalidade. Sua compreensão da realidade é circunscrita aos limites dos sentidos, que formam um arquivo de impressões para situá-lo no meio em que habita. Quente, frio, sombra, luz, dor e prazer, fome e saciedade, seriam talvez as primeiras balizas de interpretação da vida.  Ora, os sentidos funcionam segundo as mesmas leis que regem o restante do conjunto. É por eles que o ser vivo tem consciência de quando alguma coisa fugiu à harmonia geral do funcionamento fisiológico, do que é avisado pelo alarme da dor. Certamente, a dor, o desconforto em suas gradações mais contundentes, foi a primeira noção de “mal” para o homem primitivo. Por oposição, o “bem” era o estado de harmonia, prazer e saciedade.

Com o desenvolvimento do intelecto surge a organização comunitária; com esta, as regras de convivência e respeito aos territórios individuais ou coletivos. Estas regras vieram como fruto de experiências, por vezes desagradáveis, que provocariam o nascimento dos embriões do senso ético; mais tarde seriam revistas, ampliadas, aperfeiçoadas, no compasso da evolução mental e emocional.

A vida em comunidade implica na manutenção da segurança dos indivíduos diante dos perigos naturais ou provocados, obtenção do sustento e abrigo, medidas que visam manter a harmonia física e emocional. E neste ponto da evolução brota o conceito de “crime”. Sempre que um indivíduo ou grupo contrariassem alguma dessas premissas, expondo os demais à insegurança e à dor, estariam infringindo as regras máximas da comunidade e, consequentemente, praticando o “mal”.  Nesse contexto, por exemplo, apropriar-se dos pertences de outrem sem o seu consentimento é “roubo”, e seus praticantes, “ladrões”. 

E eis a grande pergunta: o ser humano primitivo praticava o “mal” por desejo consciente de prejudicar o semelhante ou por ainda não saber lidar com as regras de convivência que ele mesmo criou?

E nos dias de hoje, milhares ou milhões de anos desde as cavernas, já nos educamos interiormente a ponto de reconhecer a totalidade do direito alheio?

Considerando que a natureza não tem compromisso com as regras humanas e cumpre fielmente seu papel de reguladora da matéria, podemos inferir que há criações “boas” e criações “más”?

Não seria plausível admitir que o “mal” é criação do homem, em face de sua atual incompreensão das Leis naturais, especialmente em relação à vida?

Auro Barreiros
2010

sábado, 23 de outubro de 2010

NOITE FELIZ...

A cidade inteira está com um aspecto diferente. Nas ruas, faixas e enfeites relembram o famoso “espírito de Natal”. Nas residências, bolas de vidro espelhadas, coloridas e brilhantes, em sugestivos arranjos, podem ser vistas à porta de entrada.

Mas é nas lojas que o clima natalino se faz mais evidente, pela decoração e as frases convidativas, entre brilhos e purpurinas, lâmpadas que se acendem e apagam intermitentes, curiosos brinquedos eletrônicos movimentando-se nas vitrines, mágico espetáculo para uma sempre renovada platéia de crianças que colam os narizes no vidro, no desejo ardente de tocar seu sonho com as mãos!..
No vai-e-vem dos balcões, somas de dinheiro são trocadas por presentes. O motivo é o Natal, mas as razões ocultas são as mais diversas. Aquele senhor espera reconciliar-se com sua esposa; este outro quer apenas evitar mais uma discussão. O maduro funcionário deseja dividir sua solidão com os colegas do trabalho; aquela jovem pretende reforçar alguns laços, com vistas a um breve matrimônio!

Muitas as razões, diferentes os presentes. Adultos trocam jóias, bebidas, livros, objetos que julgam necessários ou de bom-gosto. E as crianças ganham brinquedos que tanto podem despertar virtudes e induzir saudáveis costumes como réplicas perfeitas de armas, através das quais o desrespeito à vida se insinua de forma alegre e inocente.

Natal, a data magna da cristandade; Natal, o dia dos mais gritantes contrastes! Ao longo de um ano o homem foi lobo do homem, mas agora se faz uma trégua, marcada por cartões e presentes, ceias e comoventes mensagens reafirmando os ideais do aniversariante, Jesus!..

Natal; dia em que costumamos desejar uns aos outros alegria e paz. Este é o Natal das famílias, com todos os parentes em volta da mesa, compartilhando a reciprocidade dos afetos.

Há, porém, o Natal dos mendigos, nas furnas, ao relento ou debaixo das pontes. É o Natal dos que perderam a estrela guia de sua dignidade pessoal e resignam-se à fome de alimento e solidariedade.
Há o Natal dos encarcerados, que perderam o sol de sua liberdade e remoem nas sombras os endurecidos espinhos da consciência.
Há o natal dos marginais, que perderam o farol da confiança no próximo e perambulam entre a cruz e a espada, no labirinto das emoções, sem direito à paz de um sono tranqüilo.
Há o Natal das meretrizes, que se privaram da luz da honradez e mascaram debaixo de pesada maquiagem sua fome de amor e de respeito, escondendo sob cosméticos as marcas do sofrimento e do desespero das noites insones.
Há o Natal das crianças sem teto, sem o reflexo aconchegante de um lar, que circulam pelos arrabaldes da vida, tentando saciar a fome e fugir do abandono entre marginais e meretrizes!
Há o Natal dos asilos, onde desgastados exemplares da espécie humana foram privados do direito elementar de morrer entre aqueles a quem deram a vida, e consomem-se em silenciosas lágrimas de saudade...
........
Eis o Natal de Jesus; o Príncipe da paz, o socorro dos desvalidos, a Luz do Mundo!..
Que nossas preces te encontrem, Jesus; e que, à força de tanto orar, nos façamos melhores.
Pode ser que, trabalhando, orando e amando, permitiremos  acontecer a Paz na Terra, aos homens de Boa Vontade!
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Auro
Década de 80                                                                                    

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

CRONOS E EU (O memorável encontro)

                  

Eu gostava muito de filosofar. Sentencioso, meu prazer maior consistia em tornar públicas minhas conclusões quanto a questões ainda insolvidas, como a origem da vida, a natureza do espírito, os limites do Universo e a existência de Deus. Horas insones mergulhava eu no milenar, insondável e caótico  oceano das empoeiradas tradições místicas, esotéricas e religiosas, questionando Hermes (o Três Vezes Grande), justapondo Tomás de Aquino a Eliphas Levi, ponderando gravemente sobre Zoroastro (ou Zaratustra, se preferirem), ou anatematizando o Corão e algumas duvidosas doutrinas orientalistas, para depois reunir a platéia e proferir o “meu” veredito sobre o trabalho de meus velhos e ilustres colegas de arte.
Tanto os elogios quanto as inevitáveis contestações “em nível de” equivaliam  a doces e emplumadas caricias ao meu nada modesto ego.

Mas o tempo passa. Mesmo suspeito de inexistência e rotulado como mero fragmento de percepção objetiva, ele passa. E eu, absorto que estava em profundas indagações quanto à ambigüidade dos postulados filosóficos, pouco ou nada notava da ação envelhecedora, destruidora e mumificante do tempo.
Num dado momento, porém, me ocorreu um estalo. Daqueles estalos que parecem definitivos; insólito como se encerrasse o segredo da Pedra Filosofal. E EU DESCOBRI no tempo a chave que me faltava, para abrir de vez a porta dos mistérios!

Daí, corei de vergonha!..
Corei, a despeito de minha mística palidez, quando o Tempo, de alfanje (foice de ceifar, para os leigos) em punho, me perguntou grave e sério:
- Quanto já praticaste (o Tempo só se dirige aos mortais na segunda pessoa) de toda erudição filosófica com que te empanturraste ao longo de tua ociosa vida?
-Bem, eu...(cof, cof!)
- Quanto imaginas custar à Natureza cada Onça Cúbica (medida alquímica) do ar que respiras?
- (silêncio suspeito)...

- Ouve, pois, ó ignorante: verdade é somente aquilo que permanece incólume diante da perpétua mutação universal, mantendo-se aplicável  a todas as épocas e aberto ao espírito investigador. Tu podes conhecer o peso de uma doutrina ou filosofia, vivenciando-a em tua carne; assim, e somente assim, terás a autoridade moral para pregá-la!

(Humilhante pausa de efeito).

- Portanto, deixa de empáfia, fala com economia e vive de tal forma que tuas palavras não te desmintam os atos!


..................
01/06/1983
Auro

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O TEMPO E O RIO





AO LONGO DA VIDA freqüentemente nos defrontamos com o imperativo de tomar decisões. Momentos de gravidade, situações constrangedoras, fatos que obrigam a uma escolha, uma definição; ocasiões em que ficamos “entre a cruz e a espada”, como se costuma dizer. Figuradamente, é como se a vida fosse um rio, onde nosso barco navega ao sabor da correnteza, numa linha mais ou menos reta. Da proa do barco vislumbramos um futuro linear, previsível, cujos percalços, por serem facilmente visíveis, podem ser contornados sem maiores tropeços. Entorpecidos pela prolongada tranqüilidade, seguros de que nada se opõe à marcha de nossa nau, adormecemos placidamente, até que os clarões da aurora nos despertem. Então, ao abrir os olhos, nos deparamos com uma novidade: bem ali, à frente, o rio faz uma curva. Já não é possível vasculhar o caminho adiante e o temor do desconhecido começa a invadir-nos o coração.

O que há depois da curva do rio? Uma cachoeira a despencar-se no abismo? Um enorme redemoinho, sugando para as profundezas qualquer coisa que lhe caia no vórtice? Uma corredeira pedregosa e veloz, com força suficiente para despedaçar uma embarcação?
Ou, quem sabe se, após a curva, a vista descortine um imenso lago onde o barco tem seu impulso amortecido e somos brindados com a suavidade e o marasmo próprios das águas paradas; pode ser também que adentremos outro rio, maior e mais veloz, acelerando a viagem. Mas, pode ser ainda que, após a fatídica curva, o rio simplesmente prossiga seu destino, exatamente como antes, e toda a ansiedade, todos os temores e prospecções não passaram de meras conjecturas.

ANSIEDADE; eis a palavra que define o estado do ser humano ante a premissa de alterar hábitos, conceitos, crenças ou convicções. Ansiedade que oprime, sempre que obriga a romper com a rotina mental e emocional que determina o modo de ser e agir. Ansiedade que sugere o medo do futuro!

Mas, afinal, o que é o futuro?

Conte até três. Quando chegar à ultima sílaba dessa curta contagem, toda ela já será passado. No entanto, há três segundos apenas, tratava-se de um projeto cuja execução situava-se no futuro que agora já é passado!

Tente imaginar agora o que pode ter acontecido em todo o planeta enquanto você contava até três; há de convir que se trata de uma tarefa extremamente difícil, senão impossível de ser concretizada. Em três imperceptíveis segundos nasceram centenas ou milhares de crianças, morreram outros tantos indivíduos de todas as idades, navios naufragaram, aviões decolaram, decretos foram assinados, homens de ciência realizaram notáveis descobertas, países entraram em guerra, muitos choraram, muitos sorriram, o impulso afetivo uniu milhares de casais, o egoísmo separou outros tantos; o pensamento girou o mundo em busca de catalogar o maior número possível de eventos. Houve treva e houve luz, e você... bem, você contou até três!

No curso da vida, assim como na física, o futuro depende da ação das leis naturais e universais e sua relação com o arbítrio humano. A gravidade, por exemplo, determina a queda dos corpos; se alguém resolve saltar de um trampolim em uma piscina sem água, nem é preciso ser profeta para adivinhar seu futuro. Juntar fogo à pólvora tem como futuro uma explosão; desrespeitar a liberdade e o direito alheio tem como resultado o conflito e a violência entre indivíduos e nações.

Assim sendo, a sensatez recomenda prudência ao lidar com misturas explosivas, para evitar o risco desnecessário.

Mas evoluir é um impulso interior que nos empurra à frente, na incessante busca de experiências enriquecedoras. Chorando ou sorrindo, errando ou acertando, o ser humano é o que conquista como conhecimento vivenciado.

Fujamos do comodismo e do medo de mudar. Mesmo porque, mudar é lei a que nada resiste no Universo. Ter essa consciência é um excelente antídoto para a ansiedade e um poderoso tônico para a criatividade.

Auro
1998

A EMOCIONANTE SAGA DE INOCÊNCIO DAS DORES (ou Como encurtar a vida sem fazer força)

  
INOCÊNCIO DAS DORES FOI AO MÉDICO. Há dias vinha se queixando de umas dores de cabeça e problemas no estômago; nervos abalados pelos incômodos, irritava-se com facilidade, o que lhe causava ainda mais dor de cabeça e distúrbios estomacais!

Na sala de espera do consultório, folheava uma revista enquanto aguardava a vez. Correndo os olhos pelas páginas coloridas, sua atenção estancou sobre grande foto de uma linda jovem, nua e sorridente. Afivelou ao rosto nova expressão, meio deboche, meio censura e, com uma cotovelada, despertou de um cochilo outro paciente a seu lado. Dedo em riste, mostrou-lhe a foto, exclamando:
- Veja você até onde vai a pouca-vergonha! Imagine se no meu tempo uma despudorada como esta teria tamanho destaque! É o fim dos tempos, meu amigo! A moral do mundo foi por água abaixo!
E o nosso Inocêncio proferiu longo e exaltado discurso contra a liberação dos costumes, não poupando os mais ásperos adjetivos aos que apóiam a nova moralidade. Tão apaixonado estava que nem percebeu que seu ouvinte voltara a cochilar, totalmente desinteressado pelo assunto.
Porém, desde quando vira a foto na revista, sensíveis alterações físicas e emocionais atingiram o estado geral do Inocêncio. Primeiro, uma súbita alta de pressão, devido ao acelerar do batimento cardíaco provocado pela contemplação de um atraente exemplar do sexo oposto. Depois, leve falta de ar, por conta do choque entre o instinto e o preconceito. Congestionados os vasos sanguíneos da região gástrica pela descarga inesperada de hormônios, fruto da exaltação, bloqueiam-se os processos digestivos, cobrando ao cérebro e sistema nervoso providências imediatas para evitar um colapso. Têmporas latejantes, rosto afogueado, mãos frias e suadas, olhos injetados, Inocêncio era o desastre em pessoa!
E tudo por causa de uma simples fotografia...
.....
Em presença do médico, Inocêncio das Dores desfiou um rosário de lamentações. Alegava não entender o porquê de tantos distúrbios, já que levava uma vida bastante comedida e praticamente não tinha vícios. Minutos depois, com a receita nas mãos, deixa o consultório, rumo à farmácia, esbravejando entredentes devido ao preço da consulta.

Depois de algumas dezenas de comprimidos hipotensores, calmantes, soníferos, relaxantes, antiácidos e similares, lá vem o Inocêncio rua acima, jornal debaixo do braço e cara de poucos amigos. Alguém o cumprimenta:
- E aí, tudo bem, Inocêncio?
- Qual nada, rapaz! Como pode alguma coisa andar bem com tanta roubalheira? Veja só esta manchete (agita o jornal); é justo que se permitam ladrões como este no comando? Olha, vou contar pra você só um pouquinho do que eu sei a respeito deste e de outros crápulas de colarinho branco!...
Após meia hora de difamação, Inocêncio faz uma pausa para respirar e o interlocutor pergunta sobre sua saúde.
- Mesma coisa, mesma coisa. Tenho gastado rios de dinheiro com os médicos que, diga-se de passagem, estão metendo a mão, e nada melhora. Parece até coisa feita!
.....
Dia seguinte, encontramos o Inocêncio num bairro de subúrbio, procurando a casa do curandeiro indicado pelo amigo, que lhe garantiu ser o homem bem “entendido nessas coisas”. Não que ele, o Inocêncio, acreditasse em feitiço, encosto, etc, mas, de repente, quem sabe?..
Durante a entrevista com o comerciante de ilusões, outra vez Inocêncio desfia seu rosário de queixas. Uma hora depois, sai dali mais leve, sorridente até, convencido de que fora vítima de bruxaria, mas, nada que sete velas vermelhas e uma galinha preta não resolvessem!
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Semanas depois, flagramos o Inocêncio e um amigo no seguinte diálogo:
- Mesma coisa, Inocêncio?
- Mesma coisa, meu caro! Não consigo entender; sou até calmo, não tenho grandes vícios e sofro desse jeito!
- Sabe, Inocêncio, tem um especialista amigo meu que sabe das coisas; porque você não o experimenta?..


10/03/1986                                                                                                                      
Auro

A FAMÍLIA DO DIABO



O Diabo (aqui com letra maiúscula, para distingui-lo da expressão popular), também conhecido por Satanás, Capeta, Cão Coxo (nada contra os cachorros), Belzebu e outros apelidos esdrúxulos, tem uma família numerosa e complicada. Paradoxalmente, o ser em questão é casado com uma santa. Santa esta que tem milhões de devotos espalhados pelos continentes afora. Esta donzela recebeu a canonização muito cedo, ainda em vida. Pelo seu incrível dom de nada entender, o maior milagre que realizou e ainda continua fazendo é sobreviver. É a Santa Ignorância, venerada por ricos e pobres, em todas as raças e classes sociais do planeta. Pois bem; deste inusitado casal brotou uma prole não menos inusitada, cujo perfil trataremos de estabelecer.

O Fanatismo é um dos filhos mais velhos; iracundo, tem acessos de cólera sempre que é contradito naquilo que julga ser a verdade. Dono de uma memória prodigiosa, grava livros inteiros, palavra por palavra, deleitando-se com a repetição sistemática de capítulos e versículos que, a seu ver, pulverizam os argumentos de seus adversários de fé. No entanto, é de uma ingenuidade que chega a ser dolorosa; encanta-se com discursos inflamados e promessas mirabolantes que, embora nunca se cumpram, tem para ele peso de sentenças divinas.

Arrogância, sua irmã, o tem como espelho de conduta. Por compactuar com as idéias do Fanatismo, julga-se dona de uma inexplicada superioridade, olhando o mundo de cima para baixo. Acha-se no direito de verberar contra o que bem entender, sem se preocupar com as conseqüências de sua atitude. Mas, apesar dessa pose, é extremamente insegura. Quando lhe falta o recurso verbal e o conhecimento de causa, apela para uma de suas mais truculentas irmãs; a Intolerância.
Esta jovem (a Intolerância) tem sérios problemas mentais. Incapaz de raciocínios mais elaborados, tenta impor à força os argumentos do Fanatismo ecoados na Arrogância. Para ela, toda cor é permitida, desde que seja a vermelha. Padece, porém de uma dicotomia interior, talvez em conseqüência da debilidade mental. Frequentemente se pega em concessões internas que contradizem sua própria postura. Daí se defende com a batida frase: “Faça o que eu mando, não o que eu faço.”

E quando o Fanatismo, a Arrogância e a Intolerância falham em suas investidas contra os inimigos (todo aquele que pensa diferente é inimigo), buscam o concurso do mais intelectualizado de seus irmãos; o Preconceito.

O rapaz costuma ser melhor sucedido onde os irmãos vacilaram. Hábil com as palavras (aprendeu com sua tia, a Maledicência), mascara os argumentos do Fanatismo e da Intolerância com citações e aforismos colhidos aqui e ali, como se o saber do mundo existisse apenas para justificar seus devaneios. À primeira vista, passa a impressão de que tem a melhor das intenções: desmascarar a falsidade, evitar o engano e destruir a mentira. Isso até defrontar-se com quem o conheça de longa data e saiba de seus desvios de conduta. Sim, pois o Preconceito costuma condenar publicamente o que mais deseja em secreto, adotando vida dupla para satisfazer-se sem dar na vista. É como certos personagens da Idade Média, que levavam as bruxas à fogueira mas roubavam-lhes os livros, para depois tentar encantamentos e invocações na calada da noite. Bem por isso, o Preconceito é um forte candidato a sofredor, pois corre o sério risco de lutar contra o que deseja e ficar com o que não quer. Ao ver-se desnudado em suas intenções, falta-lhe a fortaleza moral que permite o sincero reconhecimento dos erros e a dignidade para consertá-los (e consertar-se).

Fanatismo, Arrogância, Intolerância, Preconceito, Maledicência; legítimos descendentes do Diabo. E da Santa Ignorância.


Auro Barreiros - 2008